“Mar sem leis”: quem fiscaliza de verdade o mar brasileiro?”
Depois de mais de 50 anos navegando e observando todo tipo de absurdo na costa brasileira, ainda não sou capaz de responder a esta pergunta. Quem, afinal, fiscaliza este mar sem leis? Se a questão fosse na América do Norte a resposta estaria na ponta da língua: a agência NOAA, e a Guarda-costeira. Isso para não mencionar um sem-número de outras instituições, universidades, ONGs, etc. Na França, por exemplo, qualquer decreto relativo à gestão do domínio público marítimo, deve antes passar pelo Conselho Nacional do Mar e do Litoral, já se o assunto for pesca ou aquicultura, então o pacote encontra filtro na Direção-Geral dos Assuntos Marítimos, Pesca e Aquicultura (DGAMPA), e ainda há a Guarda-costeira. Claro que ambos são países ricos o que torna injusta a comparação.

Então, pesquisamos como é a fiscalização no Chile. Ali a responsabilidade é da Direção Geral do Território Marítimo e Marinha Mercante, órgão de alto nível da Marinha do Chile cuja missão é zelar pelo cumprimento das leis e acordos internacionais vigentes, para garantir a segurança da navegação, proteger a vida humana no mar, preservar o meio ambiente. E o Chile ainda tem a sua Polícia Marítima.

7.500 km de litoral, e 5,7 milhões de Km2 de mar
A tarefa não é fácil, nem simples. Temos 7.500 km de litoral, e nada menos que 5,7 milhões de km2 na Amazônia Azul, em outras palavras, uma imensidão. Porém, experimente pesquisar ‘fiscalização no mar’, ou fiscalização no litoral’, e você verá a pobreza que a análise apresenta.
Em resumo, achamos poucas informações, entre elas a Lei nº 9.537/1997 que determina que compete à Marinha do Brasil, como Autoridade Marítima Brasileira, fiscalizar o tráfego aquaviário. Isso significa que cabe à MB supervisionar 936 mil embarcações do País, divididas em 67 tipos diferentes.
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Para fiscalizar um cenário que vai da represa de Guarapiranga, aos milhares de rios navegáveis do País, só a Amazônia Legal tem 25 mil quilômetros de rios navegáveis, além dos 5,7 milhões de km2 da Amazônia Azul, a Marinha do Brasil sequer tem combustível, que dizer da quantidade de lanchas e navios?
Ainda em 2023 comentamos o desabafo do ministro da Marinha, almirante Marcos Sampaio Olsen, em palestra no Senado quando alertou que ‘dentro de cinco anos a Marinha vai ter que se desfazer de pelo menos 40% dos seus meios operativos’.
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Em outras palavras, em 2028 40% da frota da MB, que já é mínima e antiga, será forçosamente aposentada por tempo de serviço. Então, o que já era ruim ficará muito pior.
Ao falar no Senado sobre a fiscalização que cabe a MB, Marcos Olsen disse que “Esse gerenciamento, essa proteção dos recursos de maneira a propiciar a sua exploração sustentável requer a presença de meios. E a realidade hoje é esta: por imposição e por restrições severas de orçamento, que impedem a devida manutenção ou reaparelhamento da Força, vejam as senhoras e os senhores que eu, até 2028, darei baixa em 40% da Força.”
O almirante, de maneira idêntica, confirmou a falta de verbas para combustível: “… eu preciso de combustíveis, manutenção e munição. É inadmissível uma Força que não tenha capacidade de causar dano, e capacidade de causar dano exige treinamento, exige munição, exige óleo, exige manutenção dos seus bens. Então, exatamente em função daquele quadro orçamentário, nós temos perdido capacidade de atuação em todo aquele espaço.”
País corre o risco de se tornar piada
Por causa destas carências, e falta de visão e vontade política, o País corre o risco de se tornar uma piada sem graça. Por exemplo, em 2022 o navio polar da MB, Ary Rongel, sofreu uma pane no Drake, um dos piores lugares para a navegação do globo. Então, a MB designou o segundo navio polar que temos, o Almirante Maximiano, para a área.
Contudo, o velho Max também apresentou falhas no caminho e não pôde participar do resgate que acabou sendo feito por navios chilenos e argentinos. Esta é a realidade da Marinha do Brasil. O leitor pode ter certeza que neste exato momento uma frota de grandes pesqueiros está dentro de nossa ZEE, ou seja, nosso mar sem leis, pescando atuns e afins. Enquanto isso, parte significativa dos rios da Amazônia estão na mão de traficantes internacionais. Com o ínfimo aparato que tem à disposição é simplesmente impossível para a MB fiscalizar seja o que for.
E o litoral, a quem cabe fiscalizar?
Só por desencargo pesquisei no ‘Oráculo do século 21’, o Google. Para minha total surpresa, encontrei no site da FAB a matéria ‘Há 80 anos, sua missão é vigiar e proteger o litoral brasileiro (referindo-se à Força Aérea Brasileira)’.
A primeira frase é: ‘Vigiar e proteger, 24 horas por dia, uma área de aproximadamente 13,5 milhões de quilômetros quadrados. Essa é a missão dos três Esquadrões que compõem a Aviação de Patrulha da Força Aérea Brasileira’.
Mas não se engane, a sequência do texto demonstra que não é bem assim: ‘No dia 22 de maio de 1942, pilotos brasileiros utilizaram uma aeronave B-25 Mitchell para atacar, durante a Segunda Guerra Mundial, o submarino italiano Barbarigo, que, quatro dias antes, havia lançado torpedos contra o navio mercante brasileiro Comandante Lyra, que resultou na entrada do Brasil no conflito. A partir de então, a FAB iniciou as atividades de cobertura de todo o litoral nacional’.
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Ou seja, é claro que se a MB detectar algum problema ela pode recorrer aos aviões da FAB. Mas a ‘fiscalização’ resume-se a isto: ações durante a Segunda Grande Guerra, e apoio à Marinha em casos especiais. Perguntamos de novo, quem fiscaliza este mar sem leis?
A fiscalização da pesca artesanal e industrial
Para controlar os quase 30 mil barcos de pesca, sendo que 90% são embarcações artesanais, portanto não se afastam muito da costa, a responsabilidade recaiu sobre o Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS), instituído em 2006.
O objetivo, segundo o governo, ‘é gerar dados sobre a atividade pesqueira através do monitoramento remoto da embarcação de pesca e auxiliar na salvaguarda da vida humana no mar e nas ações de fiscalização. A participação no PREPS é obrigatória para todas as embarcações de pesca com Arqueação Bruta (AB) igual ou superior a 50 ou com comprimento total igual ou superior a 15 metros’.
Contudo, segundo a Oceana, de acordo com a “Auditoria da Pesca no Brasil –2020” publicada pela ONG, 2.894 embarcações nacionais têm obrigação legal de aderir ao PREPS; entretanto, dados fornecidos pela GFW destacam que desse total, apenas 1,4 mil embarcações aderiram efetivamente ao Programa, o que representa cerca de 6% do total de barcos inscritos no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP).
O problema do PREPS é claro: quando uma embarcação se recusa a instalar o equipamento que mostra sua posição, praticamente nada acontece. Mesmo criado em 2006, o programa manteve os dados fechados por 15 anos. Só em 2021 o Brasil passou a publicá-los na plataforma Global Fishing Watch. Vale lembrar: o país foi um dos últimos das Américas a aderir ao sistema.
O IBAMA e a fiscalização do litoral
Cabe ao IBAMA fiscalizar o litoral em certos casos. Segundo o site da autarquia, ‘O Ibama coloca-se hoje como uma instituição de excelência para o cumprimento de seus objetivos institucionais relativos ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental’.
O site ainda expõe as principais atribuições do IBAMA: Exercer o poder de polícia ambiental é uma delas. A outra é ‘Executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente’. E, finamente, ‘Executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente’.
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Experimente, caro leitor, pesquisar no Google “quem fiscaliza o litoral?” Além da matéria da FAB e do IBAMA, há outra da Folha de S. Paulo com o título, Ibama tem apenas três barcos para fiscalizar 7.300 km do litoral brasileiro. É isso, ou seja, é tudo ficção. O papel aceita tudo porém a realidade é outra. Embora a matéria da Folha seja de 2015, as coisas não mudaram muito de lá para cá.
Segundo o Portal da Transparência o IBAMA conta com 3.994 servidores em exercício. Se considerarmos que a maior parte destes quase 4 mil funcionários trabalham em gabinetes de Brasília, chega-se a conclusão que é impossível fiscalizar como era de esperar.
Segundo matéria de O Globo, de 2024, ‘São 1.698 fiscais, entre os do Ibama e do ICMBio, que precisam cuidar não só da área de 1,7 milhão de quilômetros quadrados de florestas protegidas, mas combater crimes em todos os biomas e inspecionar cargas em aeroportos, portos e indústrias poluidoras’.
Um déficit de pessoal estrutural


Vale lembrar que os 1.700 fiscais do IBAMA pararam de trabalhar em 2024, em greve, porque não há reestruturação de carreira e os salários estavam baixos demais.
Ministério de Meio Ambiente a partir de 1992
Saiba ainda que desde que temos um Ministério de Meio Ambiente, a partir de 1992, e seus vários órgãos e autarquias, há um tremendo déficit de pessoal e verbas para a pasta. Em 2025 não foi diferente. Segundo o Portal UOL, o ministério do Meio Ambiente deve receber R$ 4.131,8.
Segundo o orçamento para 2025, o MMA com seus R$ 4.131,8, está na frente apenas dos ministérios da Cultura, Planejamento, Indústria e Comércio, das Comunicações, Povos Indígenas, Turismo, Esporte, Direitos Humanos, Pesca, Mulheres, Igualdade Racial e, finalmente, o ministério do Empreendedorismo -Microempresa – Empresa de Pequeno Porte.
Enquanto isso acontece o nosso maior ativo, aquilo que nos diferencia de outros países, ou seja, a biodiversidade e recursos naturais, ficam a ver navios. O governo federal, desde 1988, sempre deixou o MMA na rabeira dos orçamentos. Não me recordo de nenhum governo, desde a redemocratização, ter agido de forma diferente e colocado à disposição de quem deveria zelar por nossa biodiversidade os recursos necessários.
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Orçamento Geral da União para 2025
Lula não foi diferente. O orçamento geral da União para 2025, que ele sancionou em abril, estabelece um teto de despesas de R$ 5,9 trilhões. Deste total, R$ 4.131,8 (bi) foram destinados ao MMA, caso não haja ‘contingenciamentos’, o que é uma merreca que mal paga os custos fixos dum ministério capenga há décadas.
Assim, mesmo com foco total na Amazônia, é possível que o governo não consiga atingir a meta de diminuição de desmatamento no bioma até o final do ano, quando acontecerá a COP30 em Belém. É cedo para esta afirmação, entramos no quinto mês do ano e, em 2024, houve diminuição do desmatamento nos bioma terrestres. Contudo, dados do Imazon revelam que a área desmatada da Amazônia teve um aumento de 18% entre agosto de 2024 e março de 2025.
Cansamos de alertar sobre a falta de fiscalização
Este escriba alerta sobre a falta de fiscalização desde a primeira viagem pela costa brasileira, entre 2005 e 2007. Posteriormente, entre 2014 e 2016, em nova viagem ao largo da costa brasileira, visitamos TODAS as unidades de conservação federais do bioma marinho, do Chuí ao Oiapoque. Em ambas as viagens, em conversas com os nativos da costa, e mesmo com funcionários do ICMBio, o que mais ouvi, quase um mantra, foi: falta fiscalização no litoral…
Por estes motivos, visão míope dos governantes sobre o mar e a zona costeira, aliada à absoluta falta de pessoal e equipamentos, o litoral está, e continuará, ao deus-dará. Os poucos fiscais do IBAMA mal dão conta dos biomas terrestres. Assim, os 7.500 km de litoral estão na mão de especuladores, e dos setores da construção civil, e do turismo.
A consequência desta situação de descaso é que continuamos a perder mangues, restingas, dunas, e até mesmo praias, enquanto a erosão costeira cresce de maneira alarmante sem os ecossistemas que protegem a costa.
O que você acha? O Brasil trata o mar e o litoral como deve? Sua opinião pode ampliar esse debate.