Itacaré e Uruçuca, BA, onde a inteligência prevalece no litoral
Depois de décadas navegando ao largo do litoral, e acompanhando sua transformação de uma costa prístina e exuberante para algo parecido com um melancólico cortiço em pouco mais de 50 anos, perdi a esperança de ver inteligência na gestão da zona costeira. Ainda existem algumas praias onde a ocupação segue de forma sensata e sustentável, mas o crescimento descontrolado avança ao redor, altera a paisagem e destrói os principais ecossistemas para abrir espaço a prédios, casas de veraneio, resorts, hotéis, condomínios, marinas, etc. Tudo isso fruto de arrogância e, acima de tudo, muita ignorância sobre a importância vital deste espaço. Além disso, a maioria dos prefeitos adora a “verticalização”… Por isso, visitar Itacaré e Uruçuca, no sul da Bahia, foi uma grata surpresa.

Dois exemplos para o Brasil
Apesar de navegar há mais de meio século, ainda há trechos do litoral que não conheci nas viagens anteriores. Um deles, que se convencionou chamar de Costa do Cacau, a terra de Jorge Amado, inclui os municípios de Ilhéus, Itacaré, Ipiaú, Una, Canavieiras e Uruçuca.

O nome da região vem do cultivo do cacau, que se fortaleceu ali desde meados do século 18, até 1988 quando chegou a praga vassoura-de-bruxa. Eu conhecia apenas superficialmente o trecho entre Ilhéus e Itacaré, mas fiquei extremamente feliz e esperançoso com o que vi.
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O sul da Bahia sempre se destacou como o grande hotspot da Mata Atlântica. O que ainda resta dessa beleza monumental se concentra em Itacaré e nos municípios vizinhos. A exuberância da paisagem impressiona os turistas a cada praia visitada, muitas delas com a forma perfeita de ferradura e cercadas por promontórios cobertos por viçosa Mata Atlântica —um contraste marcante em relação às praias do Sudeste e Nordeste, geralmente degradadas pela ocupação humana.
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Dorival Caymmi e Jorge Amado ficariam orgulhosos
Não sou místico, mas, no fundo da alma imagino que Jorge Amado, baiano apaixonado pelo litoral, e o autor das Canções Praieiras, Dorival Caymmi, sentiriam orgulho desta orla.
Sim, ainda existe inteligência, dignidade, comedimento, generosidade e ética no litoral! E desta vez não em um ponto isolado, mas em toda a região de Itacaré, localizada a 70 km ao norte de ilhéus e 240 km ao sul de Salvador. O município, com 27.700 habitantes (IBGE 2022), ainda não foi ‘atacado’ pela horda de turistas que tomaram de Porto Seguro até Trancoso, no sul do Estado. Visitei dezenas de lindas praias no trajeto, todas ocupadas por casas de segunda residência, condomínios, ou hotéis, resorts e pousadas.
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Qual a diferença, se as praias mencionadas contam com o mesmo aparato das milhares de outras consideradas ‘cortiços’? Bom senso. Todas as praias desse trecho contam com esses equipamentos, mas com uma grande diferença: eu diria até que muito raramente eles ficam visíveis.

Preservação ambiental dos ecossistemas do litoral
Isso demonstra que os principais ecossistemas da região, como praias, costões, restingas, dunas, manguezais, etc, permaneceram em muito bom estado de conservação.

Quem usa essas praias demonstrou não ser tão mesquinho e egoísta, quanto à maioria dos que apossaram-se de outras áreas da zona costeira mesmo com sua ocupação ‘proibida’ pela legislação (a maioria são APPs), invadidas e destruídas por uma horda de inconsequentes.

Estamos aqui de passagem…(não é possível NÃO reconhecer)
Aparentemente, as pessoas que frequentam e ocupam a Costa do Cacau entendem que estão aqui de passagem e que ninguém tem o direito de destruir algo que pertence a todos, como a biodiversidade marinha, áreas públicas, e a paisagem — que, vale lembrar, tem sua proteção garantida por todas as Constituições republicanas desde 1934 até 1988.

A ética, cada vez mais rara neste mundo distópico, também define aqueles que ocupam este trecho da zona costeira. Eles utilizam as praias, mas sem provocar mudanças ao redor. Pode-se dizer que elas seguem intocadas desde o tempo de Cabral e, assim, continuarão preservadas para as futuras gerações.

A vasta maioria dos que frequenta o litoral se cala
O que mais me impressiona, no entanto, é que a vasta maioria dos brasileiros que frequentam o litoral não faz ideia do que estamos falando.
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Não canso de lembrar que nossas praias foram o lar de nativos e caiçaras desde o século 16, até meados do século 20.

E ainda assim, quando foram expulsos pela especulação imobiliária, um vício sem-vergonha de irresponsáveis, entregaram os espaços da mesma forma que os receberam. Em outras palavras, sem alteração significativa.
Inconsequentes da costa brasileira
Por outro lado, a maioria dos caras-pálidas que tomaram o lugar dos nativos e caiçaras parece que disputam um concurso de burrice e ignorância, quanto mais suas mansões se sobreporem à paisagem, melhor. Quanto mais os condomínios, hotéis, resorts, prédios e que tais, deixarem sua marca de concreto armado para o resto da vida, melhor.

Não é preciso ir muito longe para ver as sequelas. Em São Paulo, por exemplo, basta dar uma rápida olhada nos condomínios de ricos e seu desmedido egoísmo para perceber a herança que deixarão. Iporanga, por exemplo, é um deles.

A surpreendente região do Cacau
O mais impressionante na Costa do Cacau é a consistência na ocupação—nenhuma exceção saltou aos meus olhos. Ainda custo a acreditar. Será que outro trecho da costa brasileira preserva as mesmas características? Creio que não. Nenhum se compara a este.

O que diferencia os moradores de Itacaré, Uruçuca, Cairu e outros municípios? Que DNA eles carregam para preservar o que tantos destroem?

Em breve voltarei à região para conversar com mais pessoas—moradores, turistas e autoridades, como prefeitos e vereadores. Quero entender por que a especulação imobiliária, esse flagelo nacional, ainda não tomou conta deste pedaço da costa.
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O litoral brasileiro está ao deus-dará
Além disso, em vez de hotéis como o da Praia dos Ingleses, que mutilou a paisagem, os de lá seguem o caminho oposto. Até então, eu só conhecia o Txai, um dos primeiros a se instalar na Costa do Cacau, de forma exemplar, sem alterar sequer um traço da paisagem. Agora, percebi que há muitos outros, discretos a ponto de seus nomes passarem despercebidos. Eles não se impõem—deixam a paisagem brilhar.

Portanto, a indústria do turismo também carrega grande responsabilidade pela degradação do litoral. Entre as dezenas de hotéis que conheci, poucos se preocuparam em se integrar ao ambiente, valorizando a Mata Atlântica, a biodiversidade e a paisagem espetacular ao redor. A maioria impõe sua presença sem qualquer sensibilidade.
História emblemática, na ex-Pérola do Atlântico
Um exemplo emblemático aconteceu na praia de Pernambuco no Guarujá, em São Paulo. Quando comecei a frequenta-la, nos anos 60 do século passado, havia um charmoso hotel de luxo, térreo, construído em arquitetura moderna e que se esparramava pelos coqueiros ao redor. O hotel escondia-se para ressaltar a bela paisagem. Foi inaugurado em 1962 e chamava-se Jequitimar, uma iniciativa de Jorge e Marjory da Silva Prado.
Pois bem, nos anos 2000, o empreendimento foi comprado pelo empresário e apresentador Silvio Santos, que investiu R$ 150 milhões para implantar o Hotel Jequitimar Resort & SPA by Accor.

Segundo a Folha de S. Paulo, Silvio esperava que houvesse a liberação do jogo no Brasil. ‘Desde 97, há rumores de que a verdadeira intenção de Silvio Santos ao comprar o hotel seria recriar um cassino no prédio, nos moldes dos cassinos que viviam lotados no Guarujá até a década de 40’.
Silvio não delirou ao achar que o jogo seria liberado. Em 2024 a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de emenda à Constituição, PEC, de autoria de Arnaldo Jordy (Cidadania), que aprovou o repasse a Estados e municípios dos terrenos de marinha hoje em poder da União. A ideia, segundo muitos analistas, seria aprovar junto concessão de cassinos no litoral numa estúpida justificativa de ‘incentivar o turismo’ e ‘melhorar a vida’ de centenas, talvez milhares, de nativos da costa. Pura balela.
Não existe fiscalização no litoral
O litoral brasileiro, como alertamos há anos, segue abandonado. A fiscalização é quase inexistente, as leis ambientais parecem não ter “pegado” e, por lá, tudo é permitido—desde que haja dinheiro envolvido. O descaso se reflete até no Ministério do Meio Ambiente. Marina Silva, por exemplo, já soma mais de dois anos à frente da pasta no governo Lula 3 e, até agora, não fez qualquer pronunciamento relevante sobre o mar e a zona costeira, apesar dos problemas alarmantes, como a erosão que já atinge 60% do litoral.
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Enquanto isso, os caiçaras e nativos, mesmo reconhecidos como populações tradicionais, seguem invisíveis para as políticas públicas que atendem negros, indígenas e quilombolas, para citar apenas alguns exemplos.

Apesar de tudo, a maioria dos prefeitos e governadores finge ‘não ver problemas’. Vale dizer, se recusam a reconhecê-los, então, os escondem por medo de perder preferência de turistas.
Isso, quando estas autoridades não estão diretamente envolvidas, muitas vezes comandando a especulação como já denunciamos.

Tenho dezenas de exemplos de omissão injustificável, como no extremo oeste do litoral do Ceará, por ‘extremo oeste’ entenda-se as últimas 10 ou 12 praias antes da fronteira com o Piauí.
Até a Diocese de Sobral entrou no jogo da especulação, retomando terras antes doadas aos nativos, de olho na valorização gerada pelo mercado inflacionado. Assim acontece em todo o litoral, com pequenas nuances aqui ou ali.
O crime organizado, aos poucos, toma o lugar do Estado
A omissão do Estado abriu caminho para que grande parte do nosso litoral caísse nas mãos de facções criminosas como o PCC, o Comando Vermelho e outras. Em Jericoacoara, empreendedores apontam o tráfico de drogas como o maior problema. O mesmo processo avança no sul da Bahia, em Porto Seguro, Arraial d’Ajuda e Cabrália.

Porto Seguro, a cidade, a mais populosa da Costa do Descobrimento, teve em 2022 uma média de 57,7 mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes. Isso é mais que o dobro da taxa nacional de 23,3 e acima da média da Bahia, 47,1, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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Empreendedores da Costa do Cacau fazem bem feito
Assim, o feito dos empreendedores da Costa do Cacau ganha ainda mais relevância diante do domínio dos especuladores sobre o litoral da Bahia. Nosso último post sobre o Estado expôs a construção de um condomínio na praia de Taípe, no topo de uma falésia—algo proibido por lei—com um elevador panorâmico cravado na encosta! Uma brutalidade que, apesar das denúncias, continua avançando.

Uma vitória recente…
A grande vitória recente foi a suspensão da venda de 20% da ilha de Boipeba por uma quantia irrisória—R$ 183.375,00—para que cinco empresários riquíssimos e influentes transformassem a Praia dos Castelhanos, ainda intocada, em um megaprojeto imobiliário.

Mas os ataques não se resumem à Bahia. O litoral leste do Ceará já havia sido devastado antes mesmo do século 21 começar. Agora, o litoral oeste, que ainda preservava alguma integridade, segue pelo mesmo caminho. E assim a destruição avança. Até Cajueiro da Praia, no Piauí, sucumbiu à especulação imobiliária e ao domínio do Comando Vermelho.

Até quando vai prosseguir esse massacre?
Se você concorda com nosso diagnóstico, pode fazer a diferença. Compartilhe este texto—quanto mais pessoas souberem, maior será a pressão. A opinião pública é a única esperança. Não se engane.

Voltaremos ao tema para comentar a ameaça por que passa a Prainha, uma das mais belas de Itacaré.
Assista ao vídeo e veja mais praias ocupadas sem qualquer alteração ao redor

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