Cruzeiro do cocô – Carnival faz roleta-russa com passageiros
Antes de mais nada, “Carnival Corporation” é o nome da companhia de navegação — ou melhor, da irresponsável companhia de navegação de passageiros que transformou um cruzeiro em um filme de terror. Pode-se dizer: uma imensa banheira flutuante, cheia de fezes humanas à deriva no Atlântico Norte, em 2013. O Cruzeiro do Cocô é o nosso destaque.

Os infelizes passageiros pagaram por um cruzeiro de quatro dias, ida e volta, saindo de Galveston, no Texas, com destino a Cozumel, no México. Este escriba, já calejado pelas baixarias da indústria de cruzeiros e suas monstruosas máquinas de poluição, quase caiu da cadeira ao tomar conhecimento desse macabro festival de horrores. Por sorte, liguei a TV no dia e na hora certos e, entre gargalhadas que me fizeram literalmente chorar de rir, só reforcei minhas objeções aos cruzeiros marítimos. Nada, absolutamente nada contra quem gosta — aprendi há muito que gosto não se discute. Mas este caso, francamente, superou tudo o que eu poderia imaginar.

Carnival Triumph celebra a baixaria do século nos oceanos
Carnival Triumph — nome egocêntrico e mentiroso — foi o escolhido pelos armadores para batizar a nau dos insensatos. Segundo o site da Carnival Corporation, seus maiores acionistas são os grupos Vanguard Group Inc., BlackRock Inc., State Street Corporation e Barrow, Hanley, Mewhinney & Strauss, LLC.
Agora, preste atenção: segundo a CNN — que bateu recordes de audiência em 2013 cobrindo, dia e noite, o flagelo dos 4.000 passageiros — assim que teve acesso às informações sobre o… bem, ainda não encontrei uma palavra forte o suficiente para descrever esse drama, revelou que “a companhia sabia do risco de incêndio antes mesmo de o navio zarpar.”
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“Bettina Rodriguez e sua filha Isabel planejaram o cruzeiro por seis meses. Embarcariam no navio Carnival Triumph para celebrar o aniversário de Isabel.”
“Foi a viagem de suas vidas — até acordarem com o alarme de incêndio, fumaça no corredor e dias e dias de sofrimento. Dejetos humanos se acumulavam em sacos, bem na porta.”
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‘O fiasco do Triumph: um desastre prestes a acontecer’
“Documentos exclusivos obtidos pela CNN revelam agora o fiasco do Triumph como um desastre prestes a acontecer.”
“Mais de 4.000 passageiros e tripulantes ficaram presos a bordo do que hoje é conhecido como o ‘cruzeiro do cocô’, após um incêndio cortar a energia do navio. A imensa embarcação ficou à deriva por quatro dias, antes de ser rebocada para Mobile, no Alabama — todo esse tempo sem ar-condicionado e, em grande parte, sem luz, água, comida e banheiros funcionando.”
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‘O primeiro problema com o Triumph foi no gerador a diesel nº 6’
“O primeiro problema com o Triumph, diz a CNN, foi no gerador a diesel nº 6, que acabou pegando fogo. Ligado mais de um ano antes do infame cruzeiro, o gerador estava com a manutenção atrasada — muitas vezes em desacordo com as leis de segurança marítima, conhecidas como SOLAS.”
Pois bem, depois do sinistro cantado em prosa e verso — que ocorreu no quarto dia de viagem, quando o navio já estava a caminho de volta para os EUA — os passageiros foram acordados no meio da noite por um alarme, convocando uma “equipe alfa” devido a um incêndio.
E então? Então comecei a gargalhar — e segui assim até o final do documentário exibido pela Netflix.
‘Me recuso a cagar num saco de plástico vermelho!’
À certa altura, quando tudo a bordo simplesmente parou por falta de energia, a tal “equipe alfa” anunciou pelos alto-falantes espalhados pelo navio que, como as privadas estavam out of order, os passageiros receberiam sacos plásticos para o “número dois” — que, depois de usados, deveriam ser deixados no corredor, do lado de fora das cabines. Já para o “número um”, a recomendação era usar o box do chuveiro.
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O belo documentário intercala o drama com depoimentos de passageiros. O primeiro foi o de uma mulher que, tão logo ouviu a exótica sugestão, disparou: What the fuck!”
“Me recuso a cagar num saco plástico vermelho!”, esbravejou um passageiro. Enquanto isso, uma moça recatada anunciava que tomaria Imosec até secar o frasco: “Mas fazer número dois num saco plástico, eu não consigo!”
Um dos depoimentos mais cômicos é do cozinheiro de bordo, um indiano de semblante abatido, que relembra o caos com sua forte pronúncia: “Nunca imaginei, na minha vida, que teria que cagar num saco vermelho!” Me pergunto se a cor do saco fosse verde se ele cagaria…
Mais adiante, o indiano reaparece e conta que precisou jogar fora toda a comida que apodrecia a bordo. Restou improvisar: passou a preparar sanduíches com o que havia — fatias de pão, tomates e cebola. Ainda assim, os passageiros enfrentavam filas de até quatro horas para garantir seu quinhão.
Os ânimos se exaltam na nau dos insensatos
Desesperados com o fedor nauseabundo misturado ao calor dentro das mínimas cabines — e irritados com a situação — os passageiros começaram a levar colchões para o convés e a disputar as cadeiras de sol, que colocavam debaixo de tendas improvisadas com lençóis, tentando se proteger do sol.
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Mas 4.000 passageiros não cabem nem mesmo no convés do USS Gerald Ford, o maior porta-aviões do mundo, orgulho da Marinha dos EUA. Resultado: começaram as intimidações. “Não venha pra cá, este é meu território e dos meus amigos!” E muitos, sem cerimônia, partiram para a porrada.
E acredite: enquanto o caos rolava solto, a inenarrável Carnival Corporation distribuía boletins falsos à imprensa, informando que estava tudo em ordem a bordo. “Rebocadores já estão a caminho do navio”, diziam.
Foi então que a CNN começou a desconfiar — e acabou batendo recordes de audiência.
Um monumental porre a bordo do Carnival Triumph
Às tantas, o documentário focaliza uma passageira relatando o que viveu: “Parecia o apocalipse. Em um dado momento, um aposentado organizava uma leitura da Bíblia.”
Assim, depois de dias à deriva, com os ralos entupidos, fezes subindo pelos canos, pingando do teto e formando poças nos corredores, alguém teve a brilhante ideia: “Ei, o bar está fechado… vamos abri-lo já!”
Então, surge na tela uma comissária de bordo, com um rosto impagável, dizendo bem devagar: “Eu fui contra abrir o bar… as pessoas vão enlouquecer.”
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A câmera foca outro passageiro: “Foi a coisa mais louca que já vi. As pessoas pegavam duas, três garrafas e corriam para beber. Tudo estava indo bem… até que começaram a mijar no mar. Oh, shit!”
E paro por aqui. Não quero tirar o prazer do leitor — há muito, muito, mas muito mais do que isso. O documentário vale cada segundo.
Entretanto, antes de encerrar, me ocorre que — apesar do escândalo que a viagem causou no país do Tio Sam — ou muito me engano, ou o Mar Sem Fim é o primeiro veículo da mídia de Pindorama a noticiar este hilário/drama (!?) de 2013. E isso, convenhamos, é um péssimo sinal.
Além disso, como sempre acontece com o setor de cruzeiros, rigorosamente nada aconteceu com a Carnival Corporation. De forma cínica, a empresa apenas rebatizou o navio, que continua navegando por aí como se nada tivesse ocorrido — apesar de ter submetido os passageiros a uma verdadeira roleta-russa, como define um advogado no documentário.
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