Amyr Klink entre polos e estreito, excelente entrevista de nosso maior navegador
No último dia 9, o navegador, de fama alargada pela pioneira travessia do Atlântico em um barco a remo em 1984, esteve em Porto Alegre e palestrou no seminário “Antártica 2048 – Mudanças Climáticas e Equilíbrio Global”. Confira, a seguir, trechos da conversa de Amyr Klink com ZH.
Por Demétrio Rocha Pereira e Fernando Corrêa
Amyr Klink foi à Antártica pela primeira vez em 1986. Desde então, retornou ao continente 41 vezes e adquiriu intimidade suficiente para conhecer suas nuances políticas, ambientais e meteorológicas.
Amyr klink , a Antártica e o aquecimento global
No período em que você frequentou a Antártica, pôde observar mudanças no mar ou no continente?
A presença humana na Antártida é muito recente, data de 1820, mais ou menos. É um período muito curto para você fazer afirmações sobre aquecimento global. As mudanças climáticas são visíveis, mas não sei se indicam um processo que nós começamos. De alguns anos para cá, você tem encontrado muito mais gelo em alto mar, mas não sei o que esse fenômeno quer dizer, e ele não me impressiona tanto quanto o efeito da ação ultravioleta.
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A frequência de ventos também. Faço meus próprios modelos de análise sinótica, que permitem que você faça 40 travessias com mar liso no Canal de Drake. E, de poucos anos para cá, a ocorrência de ventos que chegam a 130 nós (240 km/h) é frequente, uma coisa assustadora. Naveguei 20 anos para lá e nunca tinha visto vento acima de 70 nós.
Questões ambientais sobre Antártica
São indícios, não constatações científicas. Acho que o grande privilégio nesse contexto das questões ambientais sobre Antártica é o convívio com as pessoas, as editorias dos jornais e dos institutos, que estão lá discutindo o problema. E o mais curioso é que não há consenso. É claro que eu gosto de lá pela história, pela beleza, pela experiência pessoal, mas o que mais me atrai todos os anos para a Antártica é a convivência com as cabeças que pensam o futuro da humanidade.
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Amyr Klink, essa convivência te leva a rever as tuas posições?
Claro. É um aprendizado muito grande. Eu andei de trenó de cachorro na Antártica, o que atualmente é inconcebível, mandam prender imediatamente. Os anos 1980 foram os últimos anos em que os ingleses mantinham cachorros Husky para tração. Já fui num veleiro francês que tinha um cachorro e um gato a bordo. Hoje minhas filhas têm rigor ambiental, dizem: “Papai, tem de limpar as botas para trocar de colônia, tem que fazer higienização”.
E a pressão do ambiente é tão grande que aproxima as pessoas. Nosso barco, o Paratii 2, é icônico. É o único barco desenhado para operar lá e o único brasileiro de verdade na Antártica. Então a gente tem o privilégio de ter acesso aos pesquisadores.
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Dez anos atrás, eu sonhava em fazer a passagem de nordeste: da Groenlândia para as Ilhas Aleutas (arquipélago do Alasca) pelo norte da Rússia. Ano passado, um barco que construímos fez a passagem em 19 dias. Era uma viagem de dois anos! Já tem comboios atravessando comercialmente as passagens de nordeste e noroeste. São mudanças ambientais que vão gerar impacto econômico. A gente não sabe se são positivos ou negativos: o encurtamento da rota, passando pelo Ártico em vez de pelo Panamá, pode ser uma catástrofe econômica para quem tinha projetos de transferência das américas, a expansão do canal do Panamá.
Aumento do risco de catástrofe ambiental
Pode ser que aumente o risco de uma catástrofe ambiental, como aconteceu com o Exxon Valdez (navio que encalhou no Alasca e derramou 257 mil barris de petróleo no oceano em 1989). Acredito que a passagem dos barcos não representa um dano, mas o risco de um barco grande se acidentar é dramático. E uma tendência, quando há uma passagem, é que por lá passarão barcos maiores. São monstros de 400 mil toneladas, que transportam quantidades muito críticas de hidrocarbonetos no caso de haver uma barbeiragem de um comandante bêbado. E há muitos comandantes bêbados.
Amyr klink tem um projeto de turismo na Antártica que começa em janeiro. Que papel desempenha o turismo no continente?
A gente vai compartilhar a viagem com pessoas que têm interesse em ir para lá (o pacote de US$ 25 mil inclui voos do Brasil à ilha King George, de onde se embarca no Paratii 2).
A indústria do turismo é a presença humana mais importante hoje na Antártica: só do Ushuaia, devem ir 15 mil turistas por ano em navios. É um movimento muito maior do que o de navios de pesquisa e exploração. Vários países, em vez de fazer como o Brasil, que tem três navios polares, mandam seus exploradores em barcos de turismo. Existe uma simbiose entre essas embarcações e os projetos de pesquisa, no sentido de reduzir custos.
Excelência ao navegar
Na atividade de exploração terrestre, existe algo que se perde com tecnologias como o GPS?
Pelo contrário. Quanto mais você puder fazer uso da tecnologia disponível, melhor. Hoje não tem nem espaço para fazer o que eu fazia: fiz meia dúzia de viagens para lá sozinho. Devia ser proibido! Um comandante sozinho não tem condição de manter, em segurança, um barco por 70 horas contra o vento, até o tempo acalmar.
Maior orgulho que eu tenho
O maior orgulho que eu tenho é o de – em 27 anos e 42 viagens – talvez ser o único grupo que viaja regularmente para lá que nunca teve um acidente. Nunca quebrei máquina, equipamento, nunca perdi tripulante nem pedaços de tripulante. Todos os meus amigos tiveram fatalidades. O Brasil teve muitas: incêndio, navios encalhados, vazamento… A gente acudiu os chilenos várias vezes. Então acho que a gente construiu um currículo de extremo cuidado e precaução que eu não quero manchar.
Experiência acumulada
E a experiência acumulada tem que ser repassada. Se você tem um bom comandante, ele tem que voltar tanto quanto necessário. Morro de medo desses barcos com comandante novo. Ele pode ser o melhor comandante de navio do mundo – em região polar é diferente. Na Amazônia é diferente. Não adianta mandar um sueco com 1 milhão de milhas náuticas de experiência navegar na Amazônia. Ele vai quebrar a cara.
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É nesse sentido que Amyr klink faz ressalva à alcunha de aventureiro?
Eu não sou aventureiro. Eu faço o que nenhum comandante de quebra-gelo faz, porque a gente tem equipamento desenhado para isso. Quando a situação é muito grave, a gente encalha o barco. Mas se você encalhar um navio, você perdeu o navio. A reação deles, quando veem a gente encalhado de propósito, é ficar alucinados: “Ó, um desastre brasileiro!” (risos).
Criticas à navegação solitária… Ainda te orgulhas do mastro do Paratii, projetado para que o barco possa ser conduzido por uma só pessoa?
Dei outra volta ao mundo, mas acho que a navegação solitária nessa região é altamente crítica. Eu me orgulho ainda do mastro, porque é mais seguro do que um mastro convencional. Mas hoje há muitas tecnologias que implementam a segurança. Hoje qualquer embarcação tem de ser monitorada segundo a segundo por uma base em terra. Na prática, isso ainda não acontece. Até dois anos atrás, tinha navios de óleo pesado operando lá, e os acidentes com barcos grandes continuam acontecendo. Curiosamente, os acidentes com veleiros foram muito poucos. Temos tecnologia disponível, e ela é muito bem-vinda. O que eu condeno é o modelo de uso terrestre.
Nossas construções evoluíram muito pouco
Nossas construções evoluíram muito pouco. O Brasil está tendo o privilégio de poder questionar esse modelo: fizemos um concurso público de arquitetura para refazer a base que pegou fogo e matou duas pessoas [em 2012], e esse talvez foi o maior concurso público nacional de arquitetura desde Brasília. Um arquiteto de São Paulo que participou, e com quem eu trabalho hoje, falou algo muito interessante: “Nenhum escritório vai sair incólume dessa experiência”. O edital foi tão rigoroso em questões ambientais, de funcionalidade, de sustentabilidade, que fez rever esses arquitetos de plástico de São Paulo, Rio e BH, que têm uma visão burra, primitiva, de eficiência e sustentabilidade.
Estamos aqui [aponta para os prédios da Borges de Medeiros] no modelo errado. O Brasil adotou o modelo urbanístico de verticalização. Mas só vamos perceber o desastre daqui a 30, 40 anos.
Cidades de costas para a água
Amyr Klink: Porto Alegre é um exemplo da falta de atenção que o Brasil dá aos recursos hídricos?
Porto é patrimônio da comunidade, está no nome da cidade. A cidade foi um porto inteiro, sua natureza, sua origem era de porto. E não tem nada de porto. O porto-alegrense não tem direito a ter um barco dentro da cidade. Como é que entra no porto? Tem um muro!
Fazem um projeto ridículo, como o Estação das Docas [iniciativa de revitalização da região portuária de Belém, no Pará], voltado para o rio, e cadê os paradouros? Cadê as 2 mil embarcações que tinham de ficar paradas ali, que é o grande potencial da cidade? Duas mil embarcações geram, por ano, talvez R$ 200 milhões.
Transporte público tinha de usar essas malhas naturais navegáveis
O transporte público tinha de usar essas malhas naturais navegáveis e não usa. A cidade se esgoela de fazer avenida, aterro. O Brasil tem uma ignorância em relação ao mar que é assustadora. A Baixada Santista, maior malha navegável da América Latina, foi simplesmente destruída por governos ignorantes. Nenhum governador questionou que se estava destruindo um patrimônio que, na Europa, é conservado a unhas e dentes.
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Via navegável nos USA
Eu estava nos EUA essa semana, estudando a Intracoastal Waterway. Você faz a costa leste dos EUA de Key West, na Flórida, até o Canadá, por uma via navegável interior, sem ir para o mar aberto. Essa via tem mais de 50 mil km de canais navegáveis totalmente estruturados, com milhares de atracadores. Não tem instrução ambiental, nada. É um canal “natural artificial”, porque houve conexões construídas entre os canais naturais. É maior do que o grande canal da China, que é uma das maiores obras hidroviárias do mundo.
Não gosto dos modelos americanos de arquitetura e urbanismo, mas lá ao menos existe padronização, regras coerentes. Uma cidade horrível como Miami tem detalhes eficientes: as larguras de calçadas, meio-fio e sarjeta são rigorosamente iguais. Tudo é pensado para a mobilidade. A verticalização é controlada. No Brasil, você pode montar um shopping sem estacionamento!
Em Porto Alegre, houve grande resistência ao Pontal do Estaleiro, projeto propagandeado como reintegração ao Guaíba. Em Recife, isso de construir hotéis com marinas é bastante forte…
São coisas separadas. Hotel é hotel, condomínio é condomínio, marina é marina. Infelizmente no Brasil o assunto da mobilidade náutica sempre foi visto como um adendo de um negócio que brasileiro sabe fazer bem, que é ganhar dinheiro fazendo predinho. Todas as marinas feitas no Brasil até hoje, sem exceção, foram projetos muito mal-feitos de arquitetos que não entendem de uso náutico.
As marinas são uma necessidade
É diferente dos EUA. Os Rockefellers são ruins para fazer casa, mas usam barco dia e noite. Vão para Nova York por dentro. Lá, as marinas são uma necessidade das comunidades, aumentam a riqueza das comunidades.
São Paulo é circundada por três rios
São Paulo é circundada por três rios e só os usa para jogar esgoto. É um absurdo. A gente faz barcos grandes, e o certo seria colocar o barco no Tietê, passar para o Pinheiros e sair pela Imigrantes para a Baixada Santista, sem ter de cortar 1,2 mil cabos elétricos. Mas o poder público quer que a gente tire a licença e corte os 1,2 mil cabos elétricos, derrube os 200 semáforos. E o rio está lá. O único vão amplo era o rio. Era só usar o rio.
E o que falta para fazermos as pazes com o mar, Amyr Klink?
Uma mudança cultural. Primeiro, tornar o mar acessível, criar marinas públicas, valorizar o uso da água. A incongruência mais crônica na América do Sul é Florianópolis. Quando você explica a cidade para um francês, um americano, um russo, eles não acreditam. A cidade aterrou e destruiu todos os seus atracadouros e acessos públicos, de maneira que ninguém tivesse acesso ao mar. Criou um centro de convenções sobre esse aterro, na beira da água e de costas para o mar, onde eles colocam o lixo, os botijões de gás e os trocadores de calor dos aparelhos de ar condicionado. Fizeram a ponte Hercílio Luz abaixo da altura necessária para passar um veleiro ou um navio. A cidade cortou a hipótese de ser uma ilha navegável. Pior ainda: enquanto a ponte teria de ser implodida, ela foi tombada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). E construíram uma outra ponte, mais baixa ainda. É muito pavor do mar!
Tinha de ter 30 terminais no mar
Aí você vê São José, Palhoça, Biguaçu… Há cinco municípios de extraordinária atividade econômica que estão se esgoelando no trânsito todos os dias. Tinha de ter 30 terminais no mar para fazer transporte das pessoas pela água em 15, 20 minutos. Você analisa o deslocamento da população de ônibus na Grande Recife: é todo paralelo ao rio. Mas não dá para usar o rio, porque fizeram as pontes um metro acima da água.
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País extraordinariamente rico
Somos um país extraordinariamente rico. Nossas comunidades são mais ricas que as americanas. Mas temos um grau de intervenção do Estado espetacular. Uma comunidade americana recolhe 7%, 8% de tributos. Uma comunidade brasileira, mesmo de baixa renda, como uma favela, recolhe 45% de tributos a um Estado incompetente para prover mobilidade, saúde e educação.
Concurso público da base brasileira
Foi muito interessante esse concurso público da base brasileira, embora eu condene fazer a base no mesmo lugar. Acho que o Brasil devia fazer uma base na Antártica. Está aí o Jefferson Simões (pesquisador da Geologia da UFRGS) fazendo vários projetos, conseguidos graças ao empenho pessoal dele. Na Antártica, você acaba pensando em todas as questões de uma comunidade: planejamento, hidráulica, política, gestão, desperdício. Nesse sentido, o edital é fantástico, contempla todos os problemas que todos os gestores de cidades no Brasil deviam ter lido pelo menos uma vez. Dou um dedo se um dos 5 mil prefeitos brasileiros tenha lido isso.
Niemeyer, projetista de maquetes
Em ‘Cem dias entre céu e mar’, tu comentas que o Brasil é o país com maior diversidade nos estilos de construção de embarcações. Deveríamos nos valer mais dessa criatividade?
Temos capacidade criativa para mudar os modelos. Ela deveria ser utilizada para desenhar o nosso futuro. Parece ufanismo dizer que o brasileiro é mais criativo, mas o Brasil tem um modelo de crescimento interessante, onde as diferenças [urbanísticas] se mantiveram. Isso não é ruim, apesar das diferenças sociais. Isso é muito bom. Nos Estados Unidos, o modelo é igual em todas as cidades, é uma coisa cansativa.
Ainda assim, vês no concreto o exemplo de um “modelo errado”.
Amyr Klink, tu achas que arquitetos como o Niemeyer nos deixaram uma herança ruim?
A principal questão deveria ser o conforto das pessoas, a qualidade de vida, o bem-estar, a diversão. O Niemeyer foi um grande artista, sou apaixonado pela obra dele. Se eu fosse morar em maquetes, moraria em uma dele. São lindas, com uma forte inspiração nos Jetsons. Mas era um cara de cultura limitada que foi endeusado no Brasil. Parece ofender a Deus falar, mas ele não foi competente na obra dele. Não conheço nenhuma obra dele que foi acabada.
Quando eu faço uma obra, ela é acabada nos milímetros. Não tem nenhuma obra do Niemeyer acabada. A casa dele não está acabada. O Museu de Niterói não está acabado. O Planetário [do Ibirapuera] em São Paulo tem desnível, cadeirante não anda. Nenhuma obra acabada. Os detalhes são toscos. Então, para projetar maquetes, ele é maravilhoso, mas eu não quero morar em maquete, não.