O oceano sem lei, na visão de um jornalista especializado
Ian Urbina é um jornalista norte-americano que passou cinco anos, mais de três deles em alto-mar, revelando as histórias que estão no livro Oceano sem lei, que acaba de ser publicado no Brasil. Urbina começou o trabalho com uma série de artigos para o New York Times. Vencedor do Pulitzer, o mais importante prêmio jornalístico dos Estados Unidos, publicou investigações que cobriram desastres de petróleo e mineração, pesca ilegal combinada com tráfico humano e trabalho forçado, comércio ilícito de frutos do mar, piratas e mercenários, ladrões de naufrágios, e muito mais. Por consequência, o livro explora as entranhas da indústria da pesca, do petróleo, e da navegação. E elas são mais feias que pensávamos. Para Ian Urbina, o alto-mar é um lugar onde qualquer um pode fazer qualquer coisa porque ninguém está vigiando.
Uma visão global do alto-mar
Ian Urbina soube tirar vantagem de um dos poucos jornais que ainda mantém a preocupação, e o poder financeiro, para fazer uma cobertura mundial dos temas que aborda.
Assim, pôde embarcar em diversos navios fosse qual fosse o oceano em que navegavam, durasse quanto tempo fosse necessário, para investigar a fundo os temas citados acima.
Para quem estuda estas questões, o livro de Urbina não traz grandes novidades. Quem acompanha este site sabe dos absurdos da indústria mundial da pesca, ou dos desatinos da indústria da navegação.
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Infelizmente, apesar do livro ser infinitamente mais completo que o documentário, não fará sucesso ao menos no Brasil, dado o hábito da leitura ser cada vez menos praticado nestas plagas. Por isso mesmo, tentaremos aqui dar algumas pinceladas no tenebroso quadro que vimos.
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Tráfico humano no oceano sem lei
Já no primeiro capítulo Urbina aborda o tema. Atualmente, o tráfico humano que se mistura com a pesca ilegal é praticado sobretudo na Tailândia, mas não apenas. China, Taiwan, Vietnã, são alguns dos outros países onde o flagelo também acontece.
Um pequeno parêntesis
Abrimos um parêntesis para explicar que o que segue abaixo são trechos tirados ipsis litteris do texto de Urbina. Foram apenas selecionados e ordenados por este escriba.
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A 160 km da costa da Tailândia, três dúzias de meninos e homens cambojanos trabalhavam descalços o dia inteiro e pela noite adentro no convés.
Os turnos de dezoito a vinte horas de trabalho são comuns nos pesqueiros. E a comida, e água potável, muitas vezes é sujeita a um rigoroso racionamento.
A privada era uma tábua de madeira colocada no convés. De noite vermes limpavam os pratos sujos dos garotos. A vira-lata do navio mal levantava a cabeça quando as ratazanas comiam o conteúdo de sua tigela.
As mãos de todos, quase sempre molhadas, tinham feridas abertas, cortes feitos por escamas de peixe e pelo atrito com a rede. Os garotos costuravam sozinhos os ferimentos mais profundos. As infecções eram frequentes.
Os capitães nunca deixavam de ter anfetaminas para ajudar as tripulações a enfrentar períodos mais longos de trabalho, mas raramente guardavam antibióticos para feridas infectadas.
Investigação da ONU em 2009
Em 2009, a ONU conduziu uma pesquisa com cerca de 50 homens e meninos cambojanos vendidos para barcos de pesca tailandeses. Entre os entrevistados pela equipe da ONU, 29 disseram ter visto um trabalhador ser morto pelo capitão ou outros oficiais.
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Os meninos e homens que costumavam trabalhar nestas embarcações pareciam invisíveis para as autoridades porque eram, em sua maioria, imigrantes ilegais.
Despachados para o desconhecido, encontravam-se além do alcance da ajuda da sociedade, em geral nos chamados navios-fantasma, embarcações sem registro que o governo tailandês não tinha capacidade de localizar.
Com frequência, não falavam o idioma dos capitães tailandeses, não sabiam nadar e, por terem vindo de aldeias do interior, nunca tinham visto o mar até estarem cercados por ele.
Quase toda a tripulação tinha uma dívida pendente, parte de sua servidão por contrato, num sistema ‘viaje agora e pague depois’ que exige que trabalhem para pagar o dinheiro que tiverem de pedir emprestado para entrar ilegalmente num novo país.
Os pesqueiros no mar da China Meridional, em especial a frota tailandesa, eram famosos havia anos por empregarem os chamados escravos do mar – na maior parte imigrantes obrigados a sair do país por causa de dívidas ou por coerção.
Oceano, um lugar distópico
Apesar de toda a beleza estonteante, o oceano é também um lugar distópico, lar de práticas tenebrosas e desumanas.
O Estado de Direito – que é tido como consistente em terra, reforçado e esclarecido por séculos sendo cuidadosamente burilado, com as jurisdições estabelecidas e a criação de regimes robustos para garantir seu cumprimento – é fluído no mar, na melhor das hipóteses.
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Numa época em que sabemos exponencialmente muito mais sobre o mundo que nos cerca, com tanto conhecimento ao alcance de nossas mãos, temos um conhecimento irrisório sobre o mar.
Metade da população do planeta vive atualmente a menos de 150 km do oceano, e navios mercantes transportam cerca de 90% de todos os produtos mundiais.
Mais de 56 milhões de pessoas em todo o globo trabalham no mar em barcos pesqueiros e outro 1,6 milhão em cargueiros, navios-tanque e outros tipos de embarcações mercantes.
No entanto, o jornalismo sobre este universo é uma raridade, a não ser por histórias a respeito de piratas da Somália ou de gigantescos vazamentos de óleo.
Comentários do Mar Sem Fim
Este, em resumo, é o primeiro capítulo do Oceano sem lei. Vale destacar que a investigação da ONU sobre o tráfico humano confirma que já se sabia que a atividade é mais ou menos comum na indústria da pesca mundial.
Agora, além dos maus tratos ao ambiente marinho, o desrespeito por santuários marinhos internacionais, ou o desprezo à proibição da pesca de certas espécies em perigo de extinção, a indústria da pesca também está envolvida com tráfico humano, e trabalho escravo.
E só isto já é escandaloso demais para este mundinho que entra no terceiro milênio. Urbina atribui os muitos escândalos que acontecem em alto-mar ao fato de que ‘as águas internacionais estão bastante fora do alcance das burocracias nacionais e não são controladas por tantas regras’.
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Para ele, ‘este fato permite que apareça todo tipo de atividade irregular: do desvio de impostos ao armazenamento de armamentos’.
‘Existe, afinal de contas, um motivo para o governo norte-americano, por exemplo, ter escolhido as águas internacionais como local para o desmonte do arsenal de armas químicas da Síria, para a condução de detenções e interrogatórios relacionados ao terrorismo e para se livrar do corpo de Osama bin Laden’.
Comentário do mar sem fim: como se vê pela atitude da mais poderosa nação do mundo, continuamos usando os oceanos como lata de lixo da humanidade. E lixo químico!
Imagem de abertura: Facebook
Fonte: Oceano Sem Lei, Jornadas Pela Última Fronteira Selvagem, de Ian Urbina. Editora: Intrínseca.
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