Jangadeiros do Nordeste ganham livro com suas aventuras

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Jangadeiros do Nordeste ganham livro com suas aventuras

Os jangadeiros do Nordeste fazem parte da história do Brasil. A embarcação já navegava durante no primeiro encontro entre europeus e os tupis da costa brasileira. Pero Vaz de Caminha as citou em sua famosa carta de 1500. O cronista descreveu o encontro no litoral de Porto Seguro. No dia em que frei Henrique celebrou a primeira missa, Caminha escreveu:

“Alguns deles se metiam em almadias — duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que já vi; somente são três traves atadas sobre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou estes que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.”

Na época, ele não podia  imaginar o futuro daquelas embarcações. Com o tempo, a cultura europeia trouxe mudanças. As três traves viraram seis, dando mais estabilidade e espaço interno. A partir do século 17, instalaram as velas tornando-as aptas a singraduras mais longas e menos penosas. Aos poucos, a jangada ganhou protagonismo. Tornou-se essencial na pesca artesanal. E virou símbolo do Nordeste. Quase cinco séculos depois, ainda segue em uso.

Imagem de jangadeiros do Nordeste
Arquivo MSF.

Um livro que resgata a grandeza dos jangadeiros

O livro se chama Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste – E as grandes viagens para o Rio de Janeiro, Ilhabela e Buenos Aires. O autor é Raimundo C. Caruso. A edição é da Panam Edições Culturais, publicada em 2004. A obra pode ser encontrada em sebos, como o Estante Virtual.

O Mar Sem Fim conhece e admira esses navegadores. Este post é também uma homenagem. Contribuímos com a história de outro herói do mar: o indomável jangadeiro Jacaré.

Jacaré, um pioneiro na luta pelos direitos trabalhistas

Ele se revoltou com as condições precárias dos pescadores. Queria aprender a ler e escrever. Sonhava em ir até o Rio de Janeiro, para falar reclamar pessoalmente com o ditador Getúlio Vargas. Jacaré exigia dignidade para sua profissão.

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Revoltado com as condições dos pescadores, ele queria aprender a ler e escrever para ir ao Rio de Janeiro reclamar com o ditador Getúlio Vargas melhores condições para a categoria.

Assim começou a saga de Jacaré. Ele partiu do Ceará em 1941, a bordo da jangada São Pedro. A viagem até o Rio de Janeiro durou dois meses. Ao chegar, foi recebido com festa por Getúlio Vargas.

Jacaré virou celebridade. Saiu na revista Time e inspirou um filme de Orson Welles, rodado em 1942. Mas o destino foi cruel. Durante as filmagens, o jangadeiro morreu afogado.

Imagem do jangadeiro Jacaré com Orson Welles.
Jacaré, já famoso, e o cineasta Orson Welles.

Jacaré não foi o único. Apenas o mais famoso.

A viagem de Jacaré não foi um caso isolado. Ela faz parte de uma série de travessias realizadas por jangadeiros do Nordeste. Todas tinham o mesmo objetivo: dar voz aos pescadores artesanais. Uma categoria ignorada pelos políticos desde sempre.

Na verdade, a jornada de Jacaré foi a segunda grande navegação recente feita com uma jangada no litoral brasileiro. E não seria a última.

1922, a primeira viagem de jangada, de Fortaleza para Belém do Pará

A primeira grande viagem de jangada aconteceu em 1922. Duas embarcações partiram de Fortaleza com oito pescadores. O destino era Belém do Pará. Eles queriam participar das comemorações do centenário da Independência. Voltaram no dia 13 de outubro.

Antes disso, em 1884, Francisco José do Nascimento — o Dragão do Mar — já havia levado sua jangada a bordo de um navio mercante até o Rio. Três anos antes, em 1881, ele liderou o boicote ao transporte de escravos. Foi recebido por D. Pedro II e entrou para a história.

Imagem de jangada navegando

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O livro mostra a dureza da vida a bordo. O jangadeiro parte com muito pouco. Sem bússola, carta náutica ou proteção contra o frio. Leva quase nada. E volta, muitas vezes, sem nem uma foto como lembrança.

Raimundo Caruso escreveu:

“O jangadeiro teve de escrever com outro tipo de tinta e outra espécie de linguagem a sua causa e as suas exigências.”

A terceira travessia e o protesto que viria depois

Em agosto de 1928, mais uma jangada partiu de Fortaleza para Belém. A bordo estavam Bernardino Fernando do Nascimento, mestre da embarcação, e José Isidoro dos Santos. Eles foram celebrar o 7 de Setembro. Voltaram de navio em 1º de outubro.

Sessenta e cinco anos depois, essa viagem serviu de inspiração. Jangadeiros da Prainha do Canto Verde, no Ceará, partiram rumo ao Rio de Janeiro. Queriam denunciar a pesca predatória da lagosta. Mais uma vez, o mar virou caminho de protesto.

A quarta viagem: Jacaré e a jangada São Pedro

Essa travessia partiu de Fortaleza rumo ao Rio de Janeiro. É a viagem que detalhamos no post A saga de Jacaré e a jangada São Pedro.. Um marco na história dos jangadeiros do Nordeste.

A quinta viagem: do Ceará ao extremo Sul

Em 1951, quatro jangadeiros partiram de Fortaleza com destino a Porto Alegre. Dois deles já haviam feito a travessia até o Rio de Janeiro na jangada São Pedro: Tatá (Raimundo Correia de Lima), com 62 anos, e Manoel Preto (Manuel Pereira da Silva), com 49. Os outros dois eram João Batista, com 31, e Manoel Grande, com 61.

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Imagem de jangadeiros do Nordeste
Por falta da piúba, ou pau de jangada, as embarcações são feitas com tábua desde os anos 40 do século passado.

A viagem durou cinco meses. Foi uma das mais difíceis. Enfrentaram todo tipo de condição climática, do calor tropical ao frio do Sul. Dormiam ao relento, sob vento, chuva e sol. Sem teto. Sem conforto. Só a força da vontade.

Em cada vila onde paravam, levantavam a voz dos pescadores do Nordeste. Eram jornadas de protesto.

Ao chegar em Porto Alegre, foram recebidos pelo prefeito Hildo Meneghetti e pelo governador Ernesto Dorneles. Mais uma vez, os jangadeiros mostraram coragem e resistência.

A sexta viagem: até Buenos Aires, a bordo da Maria Tereza Goulart

Em 15 de novembro de 1958, uma nova travessia começou. O destino agora era Buenos Aires, a 6 mil quilômetros de Fortaleza. Essa se tornaria uma das mais longas e perigosas viagens de jangada da história. Só perdeu em distância para a famosa Kon-Tiki, de Thor Heyerdahl, , que cruzou 7 mil quilômetros do Pacífico em 1947.

A jangada cearense levava o nome de Maria Tereza Goulart. Era uma homenagem à esposa do então vice-presidente João Goulart, líder do PTB — partido ligado às causas trabalhistas.

Mestre Jerônimo comandava a embarcação. Ele e sua tripulação passaram seis meses e 19 dias no mar. A missão era clara: denunciar, mais uma vez, o abandono dos pescadores do Nordeste.

Seis paus de piúba, vento sul e mar bravo

A jangada tinha estrutura simples. Era feita com seis paus de piúba. Media cerca de 1,80 metro de largura por 8 metros de comprimento. Ao lado do mestre Jerônimo, estavam três companheiros: José de Lima, Samuel Isidoro e Luis Garôpa.

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Navegavam sempre que podiam a cerca de dez milhas da costa — quase 19 quilômetros. Mesmo assim, em vários momentos perderam a terra de vista. Depois do Rio de Janeiro, o mar ficou mais agressivo. Após o Farol de Santa Marta, em Santa Catarina, e na costa do Rio Grande do Sul, enfrentaram tempestades e ventos brutais.

Dormiam sobre a madeira molhada. Viviam ao relento, sob chuva, vento e frio. Em algumas noites, para não serem levados pelas ondas, amarravam-se à própria jangada.

Uma muda de roupa, e o silêncio do Brasil

A tripulação levava apenas uma muda de roupa. Cozinhava num fogareiro a carvão. Não tinha cartas náuticas. Nem rádio.

Na volta, já no Rio de Janeiro, os jangadeiros foram recebidos pelo presidente Juscelino Kubitschek. Mas JK parece não ter entendido o verdadeiro sentido da travessia.

Raimundo Caruso faz uma comparação direta. A Kon-Tiki, na Noruega, virou símbolo nacional e conquista internacional. Já a jangada Maria Tereza Goulart, que percorreu quase a mesma distância em condições muito mais precárias, caiu no esquecimento.

“De Jerônimo e seus companheiros, não há quatro fotos”, escreve Caruso. “Ignorados pelas secretarias estaduais e pelos ministérios da Cultura. Não se sabe como viveram, nem como morreram. Ninguém registra o que significaram para a história do litoral nordestino.”

Jerônimo desapareceu no mar. E com ele se perdeu sua técnica, sua coragem e sua história. Até mesmo nas comunidades pesqueiras, ninguém mais fala dele.

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Vozes do mar: relatos de jangadeiros do Nordeste que arrepiam

O livro de Raimundo Caruso traz algo raro: a palavra direta dos jangadeiros. Ao longo da obra, vários capítulos reúnem depoimentos crus, simples e poderosos. São falas que revelam a dureza da vida no mar. E que nos colocam frente a frente com a coragem desses homens.

Um dos trechos mais fortes vem de José de Lima. Ele integrou a tripulação que foi até Buenos Aires. Caruso o entrevistou aos 99 anos. E ouviu este relato:

“O senhor sabe, jangada não tem cobertura, não tem toldo. Quando chove, chove. Quando venta, venta. Aí faz frio. Quem é que dorme? Só morto de sono. Aí o jangadeiro se amarra pra não ser levado pelo mar. Fecha os olhos por meia hora. E esse é um amém que quase sempre basta.”

Há muitos trechos assim. Cada um mais potente que o outro. Ao final da leitura, é impossível não rever o que se entende por coragem. E impossível não respeitar ainda mais esses jangadeiros esquecidos.

Sétima e oitava viagens: persistência no mar, silêncio em terra

Mesmo com o descaso do País e o apagamento histórico, os jangadeiros do Nordeste seguiram navegando. Em 1967, partiu a sétima viagem. O destino era Santos. A jangada Menino Deus levava cinco pescadores. Como nas travessias anteriores, o objetivo era lutar por direitos trabalhistas.

Dessa vez, reivindicavam aposentadoria para os jangadeiros. Chegaram ao litoral paulista em fevereiro de 1968, após 71 dias no mar. Foram recebidos pelo prefeito Sílvio Fernandes Lopes.

Ainda em 1968, teve início a oitava travessia. A partida foi em Maceió. O destino, o Rio de Janeiro. Segundo Caruso, a ideia foi de um estudante alagoano chamado Pedro Ernesto — que nunca mais foi localizado.

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A jangada foi comandada por João Batista Leitão, que deu seu depoimento no livro. Ele contou:

“Fizemos a viagem só pelo gosto da navegada.”

Mesmo sem bandeiras de protesto, a travessia foi mais uma prova da força desses homens e da cultura náutica que o Brasil insiste em ignorar.

A nona viagem: vitória no mar e em terra

Em julho de 1972, partiu a nona travessia de jangada. Dessa vez, o destino era Ilhabela, no litoral de São Paulo. A liderança ficou por conta do mestre José Eremílson Severiano da Silva — um dos entrevistados do livro. Com ele foi José Maria da Silva, o Zé Surrão.

Essa viagem foi diferente. Eremílson conseguiu o que nenhum outro jangadeiro havia alcançado: uma audiência com o presidente Emílio Garrastazu Médici, em Brasília.

Imagem de jangadas na praia
Jangadas na praia de Canoa Quebrada. Imagem, Arquivo MSF.

O resultado foi histórico. Eremílson voltou para o Ceará com a promessa cumprida. Os pescadores brasileiros passaram a ter direito à aposentadoria.

Foram necessárias nove viagens. Nove travessias em condições extremas, no lombo do mar. Só então os pescadores artesanais conquistaram o que já era deles por justiça.

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A décima viagem: contra a pesca predatória da lagosta

Em 1993, partiu da Prainha do Canto Verde, no Ceará, mais uma jangada em protesto. O alvo era a pesca predatória da lagosta com compressor, proibida por lei, mas comum no litoral nordestino.

No comando estava o mestre Mamede Dantas Lima. A tripulação incluía Francisco Abílio, Francisco Valente e Edilsom. Eles chegaram ao Rio e encontraram apoio de ecologistas, pescadores e até de Dorival Caymmi.

Imagem de paquinha navegando
Quando são pequenas, como a da foto, recebem o nome de paquete.

O protesto ajudou a impulsionar a organização sindical dos pescadores no Ceará. Mas, apesar do esforço, a pesca comercial da lagosta entrou em colapso. O crustáceo praticamente desapareceu das águas cearenses.

As jangadas hoje: tradição viva no litoral do Nordeste

Segundo Raimundo Caruso, existem cerca de 4.200 jangadas no Nordeste. Só no Ceará são 2.100. O Estado concentra esse número porque sua plataforma continental é extensa — chega a 100 quilômetros mar adentro.

Nos anos 1940, os jangadeiros passaram a usar tábuas em vez do tradicional pau-de-jangada, a piúba. O motivo: a madeira começou a rarear.

A diferença entre os dois modelos está na durabilidade. A jangada de piúba durava no máximo dois anos. Quando as toras encharcavam, era preciso construir outra. Já a de tábuas, bem feita, pode durar décadas.

No Ceará, a pesca com jangadas segue ativa. Existem dois tipos principais:

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  • Pesca de dormida: a embarcação passa até cinco dias no mar, navegando até 100 km da costa.

  • Pesca de ir-e-vir: saem de madrugada, pescam lagosta a cerca de 20 km e voltam no fim da tarde.

A originalidade nordestina da jangada

Muita gente pensa que a jangada é apenas uma balsa primitiva. Um tipo de embarcação universal, presente em todo o mundo tropical.

Mas isso é um engano. A jangada, como conhecemos, é uma invenção nordestina.

Raimundo Caruso esclarece:

“Não há notícia de jangada em nenhum outro país tropical. Nem no Oriente. Nem em regiões que também tiveram presença portuguesa ou holandesa.”

A jangada clássica — com vela, bolina e timão, capaz de velejar contra o vento — só existe no Brasil. E nasceu no Nordeste.

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Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste: um livro essencial

O livro de Raimundo Caruso é mais do que um registro de viagens. É um documento precioso sobre a cultura marítima do Brasil. Caruso entrevistou vários jangadeiros ainda vivos na época da pesquisa. Suas vozes preenchem páginas que ajudam a preservar a memória do litoral nordestino.

O autor também resgata dados históricos sobre a construção das jangadas. Cita estudiosos como Luís da Câmara Cascudo e Nearco Barroso Guedes de Araújo.

O livro vai além das travessias. Traz capítulos sobre:

  • A formação da plataforma continental do Nordeste;

  • A pesca artesanal e a pesca predatória;

  • As águas pobres em nutrientes da região;

  • Entrevistas com pescadores e especialistas;

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  • Um glossário com o vocabulário do jangadeiro;

  • E uma valiosa conversa com o especialista Adauto Fonteles.

Uma obra rica, humana e urgente. Que ajuda a contar a história que o Brasil insiste em esquecer: a dos homens do mar.

Imagem de abertura: Arquivo MSF

Fonte: Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste, de Raimundo C. Caruso. Panam Edições Culturais.

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Comentários

3 COMENTÁRIOS

  1. Incrível relato de navegadores natos que sem nenhuma tecnologia fazem muito mais que nós, cheio de apetrechos. Realmente admirável. Amyr klink ja falava muito dos jangadeiros e canoeiros do nosso Brasil a fora que ganhavam em performance dos mais eficientes barcos ingleses. Temos muito que valorizar nossa cultura e acabar com o abana rabo pra gringo. Abraços a todos Felipe

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