Ilha de Páscoa: a parábola moderna da autodestruição

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Ilha de Páscoa: a parábola moderna da autodestruição

“Nenhum outro lugar que visitei me causou impressão tão fantasmagórica quanto Rani Raraku, a pedreira da Ilha de Páscoa onde as estátuas eram esculpidas.” Nada mais oportuno do que refletir sobre esse cenário enquanto o mundo repercute, mais uma vez, as queimadas na Amazônia. O que pode acontecer conosco, caso percamos a floresta, já aconteceu — em escala menor — na Ilha de Páscoa. E foi dramático, como veremos

imagem de moais na Ilha de Páscoa
Ilha de Páscoa totalmente árida. (Imagem: O Globo).

Para começo de conversa, a Ilha de Páscoa é o pedaço de terra mais isolado do planeta. A costa do Chile fica a 3.700 km a leste. As ilhas Pitcairn, na Polinésia, a 2.000 km a oeste.

imagem de mapa com a localização da ilha de Páscoa

No coração da ilha está Rani Raraku, uma cratera vulcânica com 550 metros de diâmetro. Dentro e fora dela repousam 397 estátuas de pedra. Representam, de forma estilizada, o torso de um homem. A maioria tem 4,5 metros de altura, mas a maior passa dos 20 metros e pode pesar até 270 toneladas.

imagem da cratera Rani Raraku
A cratera Rano Kau, onde estão as árvores da Ilha de Páscoa? (Foto:http://povijest.hr/)

É assim que começa o capítulo “Crepúsculo em Páscoa”, do best-seller Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, do geógrafo Jared Diamond. Professor na Universidade da Califórnia, Diamond é especialista em fisiologia, biologia evolutiva e biogeografia. Já publicou mais de 200 artigos científicos e ganhou o Pulitzer com Armas, Germes e Aço.

O que é mais assustador do que o colapso de uma civilização?

Essa é uma das perguntas centrais que Jared Diamond busca responder. Em Colapso, ele constrói uma tese global e abrangente, costurada por narrativas histórico-culturais fascinantes — e um panorama catastrófico.

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Diamond mostra o que pode acontecer quando desperdiçamos nossos recursos, ignoramos os alertas da natureza, nos reproduzimos em excesso ou desmatamos sem limites. Todos esses fatores contribuíram para a queda de várias civilizações ao longo da história.

Outras, no entanto, conseguiram enxergar os riscos a tempo e encontraram soluções para sobreviver. Será esse o nosso caso?

Ilha de Páscoa e o colapso autoimposto

Antes de tratar do colapso, Jared Diamond explica como se deu a colonização da Ilha de Páscoa — e de outras ilhas do Pacífico. Segundo ele, os primeiros habitantes eram descendentes de um povo de agricultores-navegadores, originários do arquipélago de Bismarck, no noroeste da Nova Guiné.

Esses navegadores cruzaram quase dois mil quilômetros de mar aberto, a leste das Ilhas Salomão, até alcançar Fiji, Samoa e Tonga. Foi o início de uma das mais impressionantes sagas náuticas da história, começada por volta de 1.200 a.C.

A Ilha de Páscoa teria sido ocupada por descendentes desses exploradores cerca de 900 d.C.

colonização das ilhas do Pacífico
A colonização das ilhas do Pacífico segundo o site de Rapa Nui, www.moevarua.com. Nº1, “Existência de assentamentos no litoral em 30.000 a.C. Nº 2, “Limites da colonização Lapita em 800 a. C.” Nº 3, “Viagens polinésias a partir de 1000 a.C”.

Duas correntes de colonização?

Algumas teses apontam que o povoamento das ilhas do Pacífico pode ter seguido duas frentes distintas — um mistério que ainda provoca intensas discussões.

Uma corrente, amplamente aceita, sustenta que os colonizadores vieram da Ásia, como explicam Jared Diamond e outros estudiosos. Mas outra tese, defendida pelo explorador Thor Heyerdahl e agora reforçada por dados genéticos, propõe uma origem sul-americana complementar.

Exames de DNA em mais de 800 indivíduos de 17 ilhas polinésias e 15 grupos indígenas da costa do Pacífico revelaram algo surpreendente: habitantes de várias ilhas da Polinésia Oriental, incluindo Rapa Nui (a Ilha de Páscoa), têm traços genéticos vinculados a povos indígenas da América do Sul.

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As assinaturas genéticas indicam uma forte conexão com o povo Zenu, da atual Colômbia.

A visão dos nativos de Ilha de Páscoa sobre a colonização

O site local Rapa Nui (www.moevarua.com) também apresenta a perspectiva dos próprios habitantes da Ilha de Páscoa. Segundo eles, embora a origem dos primeiros imigrantes da Polinésia Oriental esteja bem documentada, muitos detalhes ainda permanecem envoltos em mistério.

A natureza das migrações, o fluxo de entrada e, principalmente, a data exata da chegada dos primeiros humanos a Rapa Nui ainda são desconhecidos. Para os nativos, esse passado segue oculto sob as pedras dos moais e as camadas de tempo.

Canoa dupla com representação do deus Eotooa.
Quando os primeiros europeus chegaram às ilhas do Pacífico ficaram impressionados com as embarcações típicas. Aqui uma Canoa dupla com representação do deus Eotooa. O autor da aquarela é George Tobin, 1792, que estava a bordo do HMS Providence, capitaneado por William Bligh.

As origens mais remotas da Ilha de Páscoa seguem envoltas em mistério. Como lembra o site Rapa Nui, “as duas únicas fontes de informação de que dispomos para o conhecimento do seu passado mais remoto são as investigações arqueológicas e a tradição oral da comunidade local”.

Essas fontes, aliás, convivem com relatos e registros produzidos por grandes navegadores que exploraram o Pacífico. Um deles foi William Bligh (1754–1817), que começou como simples aprendiz e, mais tarde, navegou ao lado de James Cook , ajudando a mapear regiões desconhecidas do oceano.

Bligh se tornou um dos maiores navegadores da história. Ganhou fama mundial ao comandar o H.M.S Bounty, navio que ficou eternizado no cinema com o filme O Grande Motim.

Evidências arqueológicas mais atualizadas

As descobertas arqueológicas mais atualizadas oferecem duas interpretações distintas sobre o povoamento polinésio da Ilha de Páscoa.

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A primeira, chamada de Early Settlement, é defendida por estudiosos como Paul Bahn, John Flenley e Helena Martinsson-Wallin. Eles apontam que a chegada humana teria ocorrido entre os anos 300 e 700 d.C., com base em datações por radiocarbono.

A segunda hipótese, conhecida como Assentamento Tardio, é liderada pelo arqueólogo Terry Hunt. Ele propõe uma ocupação por volta de 1250 d.C., argumentando que muitas datações anteriores usaram métodos pouco confiáveis. Hunt defende o uso de uma técnica mais precisa: a chamada “higiene cronométrica”.

Chegada dos polinésios a Rapa Nui.
Desenho alusivo à chegada dos polinésios a Rapa Nui. Imagem, www.moevarua.com.

Viagem de risco, cultura em isolamento

A chegada dos polinésios a Rapa Nui exigiu mais do que habilidade náutica — contou também com uma boa dose de sorte. A ilha fazia parte de uma rota de navegação pelo Pacífico Sul, conectando-se ao arquipélago Gambier por meio das ilhas Ducie, Henderson, Pitcairn e Oeno.

Os contatos com outras regiões da Polinésia Oriental foram mantidos, com certeza, até 1300 d.C., talvez até mais tarde — embora não com frequência.

O fim dessa conexão marcou o início de um longo isolamento. Foi nesse período que floresceram o megalitismo — com os moais — e o culto às aves marinhas. Esse isolamento coincidiu com o declínio da navegação de longa distância, provocado pela chamada Pequena Idade do Gelo, entre 1303 e 1850.

Como transportam os Moais

Jared Diamond também investiga como um povo isolado teria conseguido mover estátuas tão gigantescas. A resposta está no uso intensivo de um recurso essencial: madeira.

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Para transportar os moais, os antigos habitantes usavam trenós, rampas, alavancas e trilhos improvisados — tudo feito com madeira. Algumas peças das estátuas exigiam suportes específicos durante o trajeto. E, para puxá-las, cabos resistentes, também feitos de fibras vegetais.

imagem de Estátua semi enterrada na ilha de Páscoa
Estátua semienterrada, obra parada no meio. Por que… (Foto:www.heritagedaily.com)

Segundo Jared, essa hipótese não é apenas plausível — foi testada na prática. Cientistas e amigos seus simularam o transporte com sucesso, confirmando que, com técnica e muitos troncos, era possível mover as estátuas por longas distâncias.

Vista de longe… uma terra árida e desolada

A primeira impressão da Ilha de Páscoa engana. Vista à distância, transmite uma sensação de aridez e pobreza — e não foi diferente para seu descobridor europeu, o explorador holandês Jacob Roggeveen.

Ele avistou a ilha no Domingo de Páscoa, em 5 de abril de 1722 — data que batizou o lugar. Ao se deparar com os imensos moais, pensou: para construí-los, transportar e erguer essas estátuas, certamente precisariam de madeira e cordas. Mas ali não havia nada disso.

Roggeveen registrou em seu diário:

Vista de alguma distância achamos que a ilha era arenosa, pois imaginamos ser areia e grama, o feno ou outra vegetação ressecada e queimada, porque sua aparência desolada não era capaz de provocar qualquer impressão além de uma singular aridez e pobreza.

imagem de moais
A notar a aridez…(imagem:www.heritagedaily.com)

Os barcos que restaram

Roggeveen, e os europeus que vieram depois dele, ficaram surpresos com o estado da navegação local. Os únicos barcos encontrados na Ilha de Páscoa eram pequenas canoas, mal vedadas, com cerca de três metros de comprimento. No máximo, levavam uma ou duas pessoas.

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Mais uma evidência de que, àquela altura, a sociedade já havia se automutilado — como observa o Mar Sem Fim.

Desastre ecológico em total isolamento

Foi o que bastou. Jared Diamond escreve: “Essa é uma história adequada para começarmos o capítulo sobre sociedades do passado. Porque prova ser a coisa mais próxima que temos de um desastre ecológico ocorrendo em completo isolamento.”

Canoa monocasco Tahitian navegando perto da costa
Canoa taitiana monocasco navegando perto da costa. O autor da aquarela é John Webber (1752-1793).

No século 20, pesquisas botânicas identificaram apenas 48 espécies de plantas nativas na Ilha de Páscoa. A maior mal podia ser chamada de árvore. O restante era composto por samambaias raquíticas, juncos e arbustos.

Mas métodos mais recentes permitiram rastrear vestígios do que já existiu ali. E o contraste é chocante: por centenas de milhares de anos antes da chegada humana — e ainda nos primeiros tempos de colonização — a ilha era coberta por uma floresta subtropical rica em árvores altas e bosques frondosos.

O desmatamento começou pouco depois da chegada dos primeiros habitantes, por volta do ano 900 d.C. O resultado é visível até hoje: basta observar as fotos. A paisagem atual é árida, desolada. Um alerta que o Mar Sem Fim reforça com ênfase.

O que comiam os habitantes da Ilha de Páscoa?

Os primeiros insulares viviam da agricultura. Plantavam batata-doce, inhame, taro, banana e cana-de-açúcar. Criavam galinhas — o único animal doméstico da ilha.

Por causa da temperatura fria das águas, a região não tem recifes de coralnem lagoas costeiras. Isso limitava o acesso a peixes e moluscos, que tinham um papel menor na dieta local, ao contrário de outras ilhas da Polinésia.

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No início, havia aves marinhas, aves terrestres e até golfinhos. Mas, como veremos, muitos desses recursos naturais logo desapareceram ou entraram em declínio.

Polinésios
Polinésios e suas fantásticas embarcações. Imagem, www.moevarua.com.

Golfinhos e aves: recursos que sumiram

Nos antigos monturos de Anakena, pesquisadores identificaram 6.433 ossos de vertebrados. Mais de um terço pertencia ao maior animal disponível: o golfinho comum.

Para caçá-los, era preciso navegar longe com grandes canoas oceânicas. Isso exigia mais madeira — sempre ela. O mesmo recurso usado para mover os moais, cozinhar, construir casas e cercas. Madeira virou item crítico.

Quanto às aves, o cenário é ainda mais dramático. Das 25 ou mais espécies que se reproduziam na ilha, 24 desapareceram como nidificadoras. O motivo? Caça excessiva e predação por ratos, que chegaram com os colonizadores nas canoas.

Mais uma vez, o padrão se repete: uso desenfreado dos recursos, sem reposição.

Quantos eram?

Estimar a população da Ilha de Páscoa no auge de sua civilização não é simples. Pesquisadores usaram métodos como a contagem de fundações de casas, considerando de cinco a 15 pessoas por residência. Outro critério foi o número de plataformas ou moais erguidos, ligados a chefes e seus seguidores.

Imagem de fundação de casa Rapa Nui na ilha de Páscoa
Fundação de casa Rapa Nui. (Imagem:wikimedia comuns)

As estimativas variam bastante — de 6 mil a 30 mil habitantes.

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Jared Diamond acredita que os números mais altos são os mais prováveis. Em parte, porque foram feitos por arqueólogos com longa experiência na ilha, como Claudio Cristino, Patricia Vargas, Edmundo Edwards, Chris Stevenson e Jo Anne Tilburg.

As evidências do colapso

Jared Diamond apresenta várias evidências do auge e da queda da sociedade de Rapa Nui. Uma delas é a intensificação agrícola. Os antigos moradores cavavam fossas de até 1,20 metro de profundidade, revestidas com pedras. Serviam como compostagem para as plantações e tanques de fermentação de vegetais.

Canoa dupla cerimonial com indicações de seus componentes.
Canoa dupla cerimonial do Taiti com indicações de seus componentes. A pintura é de ninguém menos que o mestre dos mares, William Bligh (1754-1817). Biblioteca Mitchell – Biblioteca Estadual de Nova Gales do Sul.

Outra evidência impressionante são os galinheiros de pedra — construções engenhosas para evitar a fuga das galinhas, principal fonte de proteína após o colapso ambiental. São chamados hare moa.

No total, há 1.233 desses galinheiros espalhados pela ilha, dominando a paisagem costeira. Jared observa: se não fossem ofuscados pelas plataformas e moais, os turistas lembrariam da Ilha de Páscoa como “a ilha dos galinheiros de pedra”.

Os moais da Ilha de Páscoa

Em Rapa Nui, quase tudo era feito de pedra. O clima ventoso, seco e frio não deixava muitas alternativas. Galinheiros, cercas, hortas — até círculos de pedra usados para proteger pés de taro do vento. E, claro, os famosos moais e suas plataformas.

Segundo Jared Diamond, grande parte do interior da ilha foi transformada em hortas de pedra. Já os moais, representações de ancestrais da elite, eram esculpidos em larga escala. A arqueóloga Jo Anne Van Tilburg catalogou 887 estátuas. Quase metade ainda está inacabada na pedreira de Rano Raraku.

O esforço para construir, transportar e erguer essas esculturas gigantes teve um custo alto. Estudos mostram que, durante os 300 anos de pico de construção, a demanda extra de trabalho aumentou em cerca de 25% as necessidades alimentares da população.

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desenho de moais sendo erguidos
Erguendo os moais com…madeira.

Começava, sem o saberem, a autodestruição dos Rapa Nui…

E com isso, voltamos ao ponto de partida. Jared Diamond nos mostra o que acontece quando uma sociedade desperdiça seus recursos, ignora os alertas do meio ambiente, cresce além dos limites sustentáveis ou desmata sem freios.

Exatamente o que faz a nossa geração.

Na Ilha de Páscoa, esse processo levou séculos. Começou de forma sutil, quase invisível — mas foi implacável. Sem perceber, os Rapa Nui deram início à sua própria ruína.

E nós, com toda a ciência e informação à disposição, faremos diferente?

As consequências do desmatamento

A Ilha de Páscoa é talvez o exemplo mais extremo de destruição florestal no Pacífico — e um dos mais radicais do mundo. Toda a floresta desapareceu.

As consequências para os Rapa Nui foram severas: perda de matérias-primas, colheitas menores e escassez de fontes de caça. Sem grandes troncos e sem cordas, não era mais possível transportar ou erguer moais. Também ficou impossível construir canoas oceânicas — o que selou o isolamento da ilha.

desenho de canoa oceanica usada na ilha de Páscoa
Canoa oceânica, gravura do Museu do Chile.

O preço final

O desmatamento acelerado levou à erosão do solo, causada pelo vento e pela chuva. As colheitas diminuíram. As fontes de alimento silvestre sumiram. Com o tempo, o colapso foi inevitável.

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Por estar isolada, a Ilha de Páscoa se tornou o exemplo mais claro de uma sociedade que se destruiu pelo uso abusivo de seus próprios recursos.

E nós, cara-pálida… o que temos feito, senão repetir esse erro — agora em escala planetária?

(Mar Sem Fim)

desenho de Canoa oceânica da ilha de Páscoa
Canoa oceânica, de autoria de John Webber, 1781 tripulante do Capt. Cook. (Ilustração: /www.historicmysteries.com)

O clamor por madeira

Em 1838, um navio francês chegou à Ilha de Páscoa. O capitão registrou em seu diário um momento marcante:

“Todos os nativos repetiam frequente e excitadamente a palavra ‘miru’. Ficaram impacientes ao perceber que não a entendíamos.”

Miru é o nome que os polinésios — os Rapa Nui — davam à madeira usada para construir suas canoas. Era o que mais queriam. Fizeram de tudo para se fazer compreender.

O que pediam, desesperadamente, era aquilo que um dia tiveram em abundância — e destruíram com as próprias mãos.

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Paralelos assustadores com o mundo moderno

O colapso de Rapa Nui assombra. Jared Diamond diz que, entre todas as sociedades pré-industriais que estudou, nenhuma provoca tanto desconforto quanto a da Ilha de Páscoa. E por um motivo simples: os paralelos com o mundo atual são assustadoramente óbvios.

Quando os Rapa Nui enfrentaram dificuldades, não tinham para onde fugir. Nem a quem recorrer. Isolados, ficaram entregues à própria sorte.

Assim como nós, hoje, também não temos outro planeta para pedir socorro.

É por isso que tantos veem o fim de Rapa Nui como uma metáfora — talvez a pior hipótese — do que pode estar nos esperando no futuro.

Polinésios, Mestres na construção naval
Um aspecto todos concordam: eles eram mestras na construção naval e na navegação. Imagem, www.moevarua.com.

(Obs. do Mar Sem Fim)
Hoje, restam em Rapa Nui pouco mais de 3 mil descendentes dos antigos habitantes da ilha. Vivem em condições difíceis, longe do esplendor que seus antepassados conheceram por séculos — até o colapso final.

Eles são testemunhas vivas de uma história grandiosa e trágica. Representam um povo que, sem saber, chegou ao ponto extremo da autodestruição.

A contribuição europeia para a destruição final

Os europeus também deixaram sua marca — e não foi positiva. Na década de 1870, introduziram ovinos na Ilha de Páscoa. Em 1888, o governo do Chile anexou oficialmente a ilha, que passou a ser explorada como uma fazenda de ovelhas, administrada por uma empresa escocesa com sede no Chile.

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Esse novo ciclo de ocupação consolidou o que restava da devastação ambiental e social.

Aliás, basta observar gravuras da época da estadia de James Cook na ilha: ainda havia arbustos e alguma cobertura vegetal. Mas já era o fim de um processo irreversível.

Gravura alusiva à estadia de James Cook na ilha de Páscoa
Gravura alusiva à estadia de James Cook na ilha de Páscoa

Exploração, erosão e o fim do que restava

Após a anexação da ilha pelo Chile, os Rapa Nui foram confinados em aldeias e obrigados a trabalhar para a empresa que explorava a fazenda de ovelhas. Recebiam seu “pagamento” em bens nos barracões, em vez de dinheiro. (Será que foi daí que os ‘barões’ da borracha tiraram a ideia?, pergunta o Mar Sem Fim.)

A introdução de ovelhas, bodes e cavalos acelerou ainda mais a erosão do solo. Acabou com o que restava da vegetação nativa.

E como se não bastasse, vieram também novos vírus — desconhecidos pelos ilhéus — que causaram centenas de mortes.

Mas, é importante lembrar: a destruição final teve ajuda externa, sim. Porém, o colapso já estava em curso. Os próprios insulares, séculos antes, já haviam arruinado o futuro da ilha.

Curiosidades — e horrores — da história de Páscoa

Pouca gente sabe, mas os Rapa Nui desenvolveram um sistema próprio de escrita: o rongo-rongo. Mencionado pela primeira vez por missionários católicos em 1864, ele é uma prova da complexidade cultural da sociedade insular — embora até hoje sua leitura permaneça indecifrada.

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E essa talvez seja ainda mais chocante: os habitantes da Ilha de Páscoa só se tornaram cidadãos chilenos em 1966.Mais de sete décadas após a anexação oficial.

Outro capítulo sombrio foi o black-birding, prática comum em várias ilhas do Pacífico. Consistia no sequestro de nativos para trabalho forçado. Em Rapa Nui, começou por volta de 1805 e atingiu o auge entre 1862 e 1863. Nesse período, cerca de 1.500 ilhéus — quase toda a população adulta — foram levados à força por navios peruanos e vendidos em leilões para trabalhar em minas de guano.

Foi o ano mais escuro da história da ilha.

Atualização: a tese de ecocídio é contestada

Nos últimos anos, novos estudos começaram a questionar a famosa tese de ecocídio defendida por Jared Diamond. As descobertas foram publicadas no American Journal of Physical Anthropology.

O professor Carl Lipo, junto com pesquisadores das universidades de Bristol (Reino Unido), Christian-Albrechts (Alemanha), do Museu Kon-Tiki (Noruega), e das universidades do Oregon e do Havaí, analisou restos humanos, faunísticos e botânicos do sítio arqueológico Ahu Tepeu, na Ilha de Páscoa — datado entre 1400 d.C. e o início do período histórico.

Os resultados surpreenderam: análises de isótopos de carbono e nitrogênio revelaram que cerca de metade da proteína consumida pelos Rapa Nui vinha do mar, um índice muito maior do que se supunha. Isso indica uma estratégia de subsistência mais adaptativa e resiliente do que a narrativa clássica sugeria.

Canoas polinésias ao longo das costas do Taiti. Entre 1791 e 1793, Tobin estava a bordo do HMS Providence, capitaneado por William Bligh.
Canoas polinésias ao longo das costas do Taiti. Entre 1791 e 1793, Tobin estava a bordo do HMS Providence, capitaneado por William Bligh.

Adaptação e resiliência: outra leitura possível

As evidências mais recentes mostram outro lado da história. Além da maior dependência de alimentos marinhos, os Rapa Nui também enriqueceram e manipularam o solo para melhorar sua produtividade agrícola.

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Como destaca o site www.sci.news, os habitantes da Ilha de Páscoa demonstraram conhecimento avançado para lidar com a baixa fertilidade natural da terra. Usaram técnicas para regenerar o solo, garantir cultivos e manter um suprimento estável de alimentos — um sinal claro de adaptação e resiliência frente a condições ambientais difíceis.

Essas descobertas desafiam a tese de um colapso puramente autoinfligido. Apontam para uma sociedade que, em vez de simplesmente destruir seu ambiente, tentou sobreviver por meio de soluções engenhosas.

No fim, o mistério permanece: afinal, o que realmente aconteceu com os insulares de Rapa Nui?

A degradação ambiental e suas muitas consequências

A tese de Jared Diamond, se verdadeira, mostra até que ponto a degradação ambiental pode acabar com uma sociedade por autoimolação. Mas há outro perigo que merece reflexão.

Canoa à vela no oceano. Quatro personagens são representados no barco. Pintura feita durante a terceira viagem de Cook.
Canoa à vela no oceano. Quatro personagens são representados no barco. Pintura feita durante a terceira viagem de Cook.

A degradação ambiental e suas muitas consequências

Se a tese de Jared Diamond estiver correta, a história da Ilha de Páscoa mostra até que ponto a degradação ambiental pode levar uma sociedade à autodestruição.

Mas esse não é um risco isolado no passado. A pandemia de COVID-19, por exemplo, também foi associada à crescente degradação ambiental. O alerta não é nosso — apenas fazemos eco a ele, na medida do possível.

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O mesmo vale para o aquecimento global, que a ONU já classificou como “a maior ameaça à vida humana”.

E sobre a responsabilidade por tudo isso? Não há dúvida: é nossa.

Fontes: Jared Diamond, COLAPSO – Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, Ed. Record. E, do mesmo autor, Armas, Germes e Aço, os destinos das sociedades humanas, Ed. Record.

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Comentários

44 COMENTÁRIOS

  1. João, sou seu fã e adoro os textos pro aprofundamento e pesquisa que você realiza. Justamente por isso preciso avisar que existe um erro na matéria. A foto aérea apresentada é do Vulcão Rano Kau, o que pode ser visto nesta pesquisa de imagens com esse nome. O Rani Rarako não fica na beira do mar. A foto utilizada na matéria consta entre as imagens do Rani Rarako em um outro site, mas a pesquisa acima mostrará que se trata de um engano. Abraço!

  2. Faltou escrever que os moais colocado em pé a alinhados conforme apresentado na matéria de O Globo se deveu a iniciativa de um universidade japonesa que conseguiram recursos financeiros e equipamentos como guindastes e tratores e foi realizado na década de 1990.

  3. Quando se mostra a verdade, se assustam, mas continuam a caminhar para o triste fim. “Os paralelos entre a Ilha de Páscoa e o mundo modernos são assustadoramente óbvios”.

  4. ILHA DE PÁSCOA – Como estive lá em 1978 não posso deixar de comentar a tese, comentada no local, com relação à auto-destruição dos pasquense: GUERRA! Os descendentes dos “orelhas grandes” se confrontaram com os de “orelhas pequenas”…
    O trágico resultado foi a eliminação de mais de 80% da população da ilha.

  5. Li os últimos três livros de Jared Diamond, Armas Germes e Aço, Colapso e Reviravolta. È um cientista, pesquisador e contador de estórias excelente. Na minha modesta opinião o israelense Yuval Harari tenta imitar ou seguir na mesma linha de Jared Diamond, mas sem o mesmo brilhantismo.

  6. “Nenhum outro lugar que eu tenha visitado me causou impressão tão fantasmagórica quanto Rani Raraku, a pedreira na ilha de Páscoa onde suas famosas estátuas eram esculpidas.”
    Fantasmagórica mesmo!
    Um abraço João e continue firme como sempre. Saúde, amigo!

  7. Materia interessante, sem duvida. Eu li o livro do Diamond, seus trabalhos sempre são bons.
    No entanto, sem polemizar, sem tomar partido, ha outra interpretação para Pascoa.
    Esta no livro de david Deuscth – The beggining of Infinity- que é o oposto dessa tese de auto-destruição.
    Tese polemica , sem duvida, como sao as colocadas por Deustch .

  8. Há ficções científicas de todos os tamanhos até dos “Deuses astronautas”, mas a origem mais racional parece estar descrita no livro “As Mensagens das Pedras Gravadas de Ica” – Javier Cabrera Darquea (Peru), que a ciência de fato ainda não deu a devida atenção. arioba

  9. Esta é certamente a obra mais marcante de Jared Diamond. Trazer o tema para este espaço é muito positivo, embora o texto acima seja muito mal escrito (sorry, autor). Particularmente interessantes são os capítulos no livro que falam (1) dos primeiros assentamentos nórdicos na Groenlândia, quando o clima era mais quente e possibilitou a criação de animais naquela ilha por cerca de 300 anos; (2) as radicais diferenças entre o Haiti, um desastre ambiental, e a Rep Dominicana, nação que soube proteger florestas nativas, ambos na mesma ilha de Hispaniola; e, (3) o caso do Japão, país que depende da madeira e da pesca, e que soube explorar recursos com sabedoria. O livro todo é fantástico e atualíssimo, um item fundamental para discussões inteligentes e sem histerias

  10. Visitei a ilha de Páscoa alguns anos atrás. Essas hipóteses são importantes mas não esgotam a discussão sobre essa sociedade que se organiza em condições extremamente adversas.

    Resta aprender como foi possível a vida nesse isolamento, não apenas falar do colapso.

    Em época de teorias apocalípticas, nos esquecemos dos critérios de sucesso dos nossos antepassados.

  11. Pois eu espero que os brasileiros se espelhem nos nativos que povoaram no passado a ilha e com modernas tecnologias e equipamentos de grande potências, desmatem tudo e como sabemos as os substratos da amazônia são inferteis e pobres aumentemos os “lençois maranhenses”. Quanto as chuvas para o sul/sudeste???? Que cobrem dos pais e avós que votaram em palermas.

  12. Todas as sociedades enfrentam o dilema de alimentar a populaçao ou preservar intocado o meio ambiente.Nao se pode comparar culturas em tempo e espaço tao diferentes,mas atualmente deve haver formas mais racionais de tentar compatibilizar o desenvolvimento e consequentemente o bem estar humano com a preservaçao.O que e absurdo e deixar alguem morrer de fome contemplando a beleza original!

    • Não existe mais a “beleza original” e o esgotamento dos recursos naturais e ambientais atingirá a todos. Assim como o Brasil, a civilização da Ilha da Páscoa não desenvolveu um manejo florestal sustentável para sustentar seu “progresso” e o resultado foi seu colapso como sociedade.

    • Minha cara Tereza, sem opinar sobre seu comentário, não posso deixar passar esta ótima frase: “…Não se pode comparar culturas em tempo e espaço tão diferentes…”. Pois, e assim também é com as ideologias e com a moral. Passou da hora de pararem de trazer acontecimentos do passados para serem julgados sob os padrões atuais de cultura, de ética, de moral ou das ideologias vigentes, é má fé, ou apenas burrice mesmo.

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