Colonização da Polinésia: nova peça do quebra-cabeça valida tese de Thor Heyerdahl
Apesar de vivermos no século 21, de termos caminhado na Lua no século passado e estarmos na iminência de viagens ainda mais ousadas pelo espaço sideral, persistem mistérios dos nossos antepassados. Por exemplo, a colonização da Polinésia é um deles que intriga pesquisadores até hoje.
Os europeus ficaram estupefados depois da descoberta da América quando veio à tona outra ‘descoberta’, a do oceano Pacífico. Naquela imensidão de 180 milhões de km², equivalente a dois terços da superfície do planeta, europeus incrédulos descobriram que havia milhares de pequenas ilhas, muitas habitadas.
Elas estão a incontáveis quilômetros de distância dos continentes. E, além disso, estão separadas umas das outras por uma vastidão de mar. Então, como foi possível a presença do ser humano? Colonização da Polinésia: nova peça do quebra-cabeça, traz pistas contundentes recém-descobertas.
Colonização da Polinésia: nova peça do quebra-cabeça
Para alguns exploradores do século 20 o mistério era especialmente intrigante. Um deles foi o zoólogo norueguês Thor Heyerdahl. Ele se tornou célebre especialmente por ter cruzado o Pacífico em uma jangada em 1947, um extraordinário feito náutico.
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Thor Heyerdahl e sua tese
Thor e sua mulher Liv viveram um ano isolados estudando e em lua de mel, em Fatu Hiva, no Pacífico. Foi então que ele começou a desenvolver sua teoria. Thor estava inquieto com uma série de questões. “Havíamos seguido as pegadas dos homens que tinham aportado aquelas ilhas vindo de uma região desconhecida. E nós também sabíamos que longe, na direção leste, estava o litoral sul-americano. Separavam-nos dele 4.300 milhas marítimas, não havendo de permeio mais que céu e água.”
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Assim, fascinado, ele se rendeu ao chamado: “Eu queria dizer adeus à zoologia e dedicar-me ao estudo dos povos primitivos.” Este insight aconteceu antes da Segunda Grande Guerra. Portanto, foi preciso esperar seu término para responder à pergunta.
Naquela época, segundo escreveu no livro Expedição Kon-Tiki, “as investigações de todos os setores do saber têm coligido um repositório quase inesgotável de informações a respeito dos habitantes dos mares do Sul e dos povos que vivem nas suas cercanias. Contudo, nunca existiu acordo quanto à origem desses ilhéus.”
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A teoria era baseada na hipótese de que as ilhas poderiam ter sido colonizadas a partir da América do Sul, pelos incas e/ou seus ancestrais. Entre outras especulações, ele notou que as colossais representações de Tiki nas ilhas do Pacífico (segundo a lenda Tiki era o deus e chefe de todos os polinésios), especialmente na ilha de Páscoa, eram muito parecidas com os gigantescos monólitos, relíquias de civilizações extintas, da América do Sul’.
Além disso, dizia Thor, ‘quando os europeus chegaram às ilhas do Pacífico se espantaram de ver que muitos dos nativos tinham a pele branca e eram barbados’.
Thor sabia que a primitiva raça polinésia deveria ter vindo em alguma época, espontaneamente ou não, ao sabor das águas ou com a força de velas. Entretanto, se inquietava com o fato de que ‘se os polinésios viviam dispersos sobre uma área do mar quatro vezes o tamanho da Europa não lograram produzir línguas diferentes nas diferentes ilhas’.
Para se ver como ainda temos muito a descobrir, saiba que em 2023 foi achado um novo Moai na Ilha de Páscoa apesar de todas as explorações já feitas nos últimos 300 anos. A descoberta provou sensação entre os pesquisadores.
Dialetos de uma língua comum
“Há milhares de milhas, do Havaí ao norte à Nova Zelândia no sul, de Samoa no oeste à ilha de Páscoa no leste, todas estas tribos isoladas falam dialetos de uma língua comum a que demos o nome de polinésio. Além disso, todos tinham o culto dos antepassados, veneravam seus chefes mortos a partir da época de Tiki, sendo este tido como o filho do Sol.”
Prosseguindo em suas pesquisas sobre a origem de Tiki, Thor encontrou vestígios na mitologia e na língua do Peru. E encontrou mais: “Virakocha é um nome inca (quíchua) e de data bastante recente. O nome original do deus-sol Virakocha, que parece ter sido mais usado no Peru, era Kon-Tiki ou Illa-Tiki, que significava Sol-Tiki ou Fogo-Tiki. Kon-Tiki era sumo sacerdote e rei sol dos lendários ‘homens brancos’ dos incas que tinham deixado as enormes ruínas nas margens do lago Titicaca.”
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Nasce um a expedição
Entretanto, naquele tempo ninguém acreditava ser possível navegar em embarcações rudimentares da América do Sul para a Polinésia devido, especialmente, à colossal distância. Numa época sem a tecnologia atual as teses eram baseadas em evidências, estudos comparativos e outros, e eram provadas à força de exemplo. Assim, Thor acabou provando que a navegação era possível.
Entre outros, estudou evidências da construção naval à época, ventos e correntes e, junto com seis companheiros de viagem fabricou uma jangada de pau-balsa sem ajuda de nenhum componente moderno. Os troncos foram amarrados com cordas feitas de cânhamo. Além disso, a jangada tinha uma vela.
Para começar, partiram do porto de Callao, Peru, em 28 de abril de 1947. Depois de 101 dias, e com mais de 4 mil milhas na esteira, a jangada Kon-Tiki encalhou em Raroia, atol do arquipélago de Tuamotu, Taiti.
Para os que não acreditavam que seria possível que ancestrais sul-americanos navegassem para as ilhas e as colonizassem, Thor provou o contrário. Grande sonhador, intuitivo, considerava que as ilhas do Pacífico poderiam ter sido ocupadas a partir da América do Sul.
Contudo, apesar da prova náutica as controvérsias persistiram. Para muitos estudiosos a façanha de Thor provara apenas a sua resiliência em difíceis condições.
O que se sabe hoje sobre a colonização das ilhas do Pacífico
O biólogo Fernando Reinach é autor de uma síntese já reproduzida por este site que, rapidamente e com precisão, situa o leitor no espaço e no tempo: “por volta de 3.200 anos atrás estávamos no Arquipélago de Bismark. A parte oeste da Polinésia estava colonizada.
Na parte leste da Polinésia as distâncias entre arquipélagos são medidas em milhares de quilômetros. É uma região triangular, do tamanho do Brasil.”
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“No norte o Havaí, no sul a Nova Zelândia e no leste a Ilha de Páscoa. Os lados deste triângulo têm 10 mil quilômetros de comprimento. No centro, a Polinésia Francesa, um conjunto de ilhas que inclui o Taiti, o arquipélago mais próximo da ilha de Samoa, onde nossos antepassados chegaram mil anos antes do nascimento de Cristo e de onde partiram para conquistar o leste da Polinésia.”
“Finalmente, por volta de 1.200 anos atrás (ano 800 em nosso calendário) iniciamos a grande aventura, conquistar a Polinésia do Leste.”
Mas quem foram estes colonizadores, os mesmos da parte oeste?
Tese de Jared Diamond
Para Jared Diamond, professor de geografia da Universidade da Califórnia, que também estudou fisiologia, biologia evolutiva, além de biogeografia, autor do best seller Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou seu sucesso, foi obra de “um povo de agricultores-navegadores (descendentes de asiáticos), originários do arquipélago de Bismarck, noroeste da Nova Guiné.”
“Ele atravessou quase dois mil km de mar aberto ao leste das ilhas Salomão, para atingir Fiji, Samoa e Tonga. E se tornar os ancestrais dos polinésios. Uma saga náutica fora de série. Iniciada em 1.200 a.C. A ilha de Páscoa teria sido ocupada por descendentes destes exploradores por volta de 900 d.C.”
Jared adota a tese de descendentes de asiáticos para a colonização de toda a polinésia, a mais aceita até que chegaram as novidades…
Estudo de DNA confirma que indígenas sul-americanos tiveram contato com polinésios
CNN, 9 de julho de 2020: “Segundo novo estudo publicado na revista Nature, “os pesquisadores encontraram ‘evidências conclusivas’ para o primeiro encontro entre os dois grupos, depois de analisar o DNA de mais de 800 indivíduos de 17 ilhas polinésias e 15 grupos indígenas sul-americanos na costa do Pacífico.”
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O New York Times também abriu espaço para a descoberta revolucionária: “Hoje, as pessoas em Rapa Nui, também conhecida como Ilha de Páscoa, e outras quatro ilhas da Polinésia carregam pequenas quantidades de DNA herdadas de pessoas que moravam na Colômbia há cerca de 800 anos.”
CNN: “O que eles descobriram foi que pessoas de várias ilhas da Polinésia Oriental (ou seja, a parte leste), incluindo Rapa Nui – também conhecida como Ilha de Páscoa – têm traços genéticos em seu DNA vinculados a indígenas sul-americanos. As assinaturas genéticas mostraram uma forte conexão com o Zenu, um grupo indígena da Colômbia.”
A prova que faltava no quebra-cabeça
Era a prova que faltava no quebra-cabeça que Heyerdahl começou a montar na primeira metade do século 20. Antes da possibilidade (recente) de estudar o DNA de povos e grupos, outras pistas surgiram, como a descoberta da cultura de batata-doce, ou um tipo de abacaxi, em ilhas do Pacífico apesar do tubérculo, e da fruta, serem originários da América do Sul. Como foi possível?
Tanto a matéria da CNN como a do Times citam a épica viagem náutica, e a tese de Thor Heyerdahl. Mas há quem insista em contradizê-la. Segundo o Times, “muitos especialistas disseram que a melhor explicação seria que os polinésios vieram para a América do Sul e depois levaram os sul-americanos em seus barcos para viajar de volta ao mar.”
Será?
O autor da reportagem demonstra não ser do mar, se fosse saberia que a tese de Thor só teve sucesso porque privilegiava a navegação a favor dos elementos, jamais contra. Barcos rudimentares daqueles tempos, em forma de retângulo e com vela quadrada como as balsas, só avançam se suas proas estivessem no mesmo rumo de correntes e ventos.
Correntes marinhas, ventos, e uma rolha no mesmo trajeto
Ambas empurram o que quer que seja, uma rolha faria o mesmo percurso ainda que demorando muito mais tempo, da costa superior da América do Sul para o leste até Raroia ou qualquer outra ilha da região. O trajeto contrário é improvável apesar da novidade polinésia das canoas de cascos duplos, mais uma engenhosa contribuição para a engenharia naval, atual e revolucionária até hoje… mas posterior à colonização das ilhas.
O autor e entrevistados tampouco responderam como, e por qual motivo, polinésios teriam saído de ilhas longínquas com recursos escassos em improvável navegação contra os elementos até a costa da América do Sul. Uma vez lá, e tendo fartura suficiente para manter a sobrevivência com relativa facilidade por qual motivo retornariam?
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A colonização da Polinésia não se encerra com este estudo. Outros virão. Quem sabe um dia as gerações futuras se lembrem de um ousado sonhador norueguês, e finalmente lhe deem o devido crédito.
Thor era o cara!
Imagem de abertura: www.chasse-maree.com
Fontes virtuais: A Kon-Tiki em 1947. Imagem, https://www.tahiti-infos.com/https://edition.cnn.com/2020/07/09/asia/polynesia-america-intl-hnk-scli-scn/index.html?fbclid=IwAR309Q72ItWup5ysuPDblQYZRJRR_vXiBHY6_JK-z58CEGDaf2DSaY2rfww; https://www.nytimes.com/2020/07/08/science/polynesian-ancestry.html?smid=fb-share&fbclid=IwAR1JWvfoxXW3_Jub24NG1c9ddpv3lFjC0Y0VebsZL7lLsuOIFbyeFTA0sHs.
Livros: Thor Heyerdahl, A Expedição Kong-Tiki, José Olímpio editora; Jared Diamond, COLAPSO – Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, Ed. Record.
Registro meus agradecimentos às aulas de Historia, Geografia, etc quase diárias que recebo do Mar sem Fim.
Li o livro na adolescência na década de 50 em São Paulo. Achei fascinante
Décadas depois visitei o museu Kontik em Oslo na Noruega.
O artigo de hoje achei ótimo pela clareza, novas informações e por despertar boas lembranças.
Como professor de História, todos os anos, quando abordo a questão da chegada dos povos primitivos ao continente americano, rabisco de forma tosca o mapa do nosso continente separado pelo imenso Oceano Pacífico da Oceania e do Leste da Ásia,(importante que se diga, sou professor de giz e lousa), e exponho as Hipóteses do Estreito de Bering, das Aleutas e Malaio-polinésia. Todas essas vezes, percebo que minha apresentação faz até mesmo o aluno mais disperso voltar sua atenção, confesso que isso sempre me emociona, pois o brilho de encantamento nos olhos de meus alunos imaginando essa saga vivida por povos primitivos desbravando o desconhecido mostra quanto do espirito aventureiro no sentido romântico ainda resiste em todos nós.. Mais uma vez, obrigado por essa excelente e bem apresentada matéria.
Obrigado… incrível…
Por coincidência, acabo de ler um livro “ The happy islands of Oceania” escrito por Paul Theroux
E já tinha lido os trabalhos de Thor Heyerdahl também há tempos atrás
A quem se interessa pelo este tema da colonização daquela área do Pacífico, vale a leitura
No fundo e um tema controverso, mas fascinante
Muito boa a matéria.
Por quê será que as Galápagos não foram colonizadas??
Parabéns pelo esmero, dedicação e apresentação desse interessante assunto.
Muito Obrigado pela sua dedicação em colocar na mundo da história essas boas informações, cujas eu desconhecia.
“A Expedição Kon-tiki” foi um dos livros mais emocionantes que eu já li. Uma incrível aventura numa época em que fazer ciência sem grandes recursos tecnológicos era uma verdadeira aposta no desconhecido.
Em 1973 visitei emocionada o Museu Konti-Ki em Oslo . A lendária jangada estava numa pequena edificação para tão grandiosa proeza e me espantei ao vê-la tão pequena, pois tb tinha lido o livro com esta emocionante saga.
O artigo é interessante, eu li o livro do Kon-Tiki, há muitos anos.
As complementações atuais comprovando teoria do Thor são informações importantes, embora sempre achei que ele estava certo.
Apenas recomendo ao autor a corrigir um erro de português na redação.
Onde se lê: “O autor e entrevistados tão-pouco responderam como, e por quê, polinésios teriam saído de ilhas longínqua…” o correto é “.. tampouco..”
Em tempos de um jornalismo politiqueiro sensacionalista, vazio e fofoquento, ler matérias assim nos tira do mal: abre nossas mentes e nossos sonhos.
Parabens pela coluna, imperdivel como sempre.
E aquela seta da equatorial counter em direçao das Galapagos não foi considerada?
Fascinante!
Li Kon Tiki na minha adolescência, muito inspiradora a saga de Thor Heyerdahl…
Demais, vale se aprofundar nessa tese, tem muita coisa relevante ainda sem resposta dai. Parabéns.
Excelente reportagem, ciência é tudo!
Adorei a materia!!!
Prezado João Mesquita, excelente texto! Obrigado por seu esforço em compilar tantos dados interessantes e suas ilustrações tão claras e instrutivas. Parabéns!
“Mar Sem Fim” mais uma vez comprova ser um projeto extremamente bem sucedido. Em todas as abordagens que faz, seja produzindo conteúdos, como os exibidos em suas séries de TV, como nas matérias muito bem documentadas e escritas com conhecimento de causa, alcança o público com muita precisão e profissionalismo feito com paixão.
Como filho de um homem do mar, nativo e habitante de um pais, que infelizmente, não dá o devido valor á sua vocação marítima, só posso elogiar essa maravilhosa equipe por manter vivo este assunto tão importante para o Brasil e para o planeta.
Distração ou instrução, as reportagens do Mar Sem Fim, alem de muito bem preparadas, são apresentadas, com todos os embasamentos, em fatos.
Tenho este livro em inglês, de 1950 e reportagem da Folha da Manhã da época.
Foi presente de meu bisavô para minha mãe.
livro maravilhoso, com fotos e mapas.
Reportagem extraordinária ! parabéns ao Estadão e equipe !