Viagem da Kika, travessia do Atlântico, relato Nº 17

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Viagem da Kika, travessia do Atlântico, relato Nº 17

Partimos de João Pessoa pouco antes do Carnaval de 2020, não sabíamos que um mês depois o mundo ficaria de ponta-cabeça devido ao novo coronavírus. Nosso plano era a travessia do Atlântico, chegar até Dacar (1.600 milhas), fazer um bordo até os Açores passando por Cabo Verde, uma escala em Portugal e finalmente chegar na França, nosso destino final.Viagem da Kika, travessia do Atlântico.

imagem do interior do veleiro Antartic
Escola a bordo do Antartic.

O percurso escolhido não é o convencional, normalmente a travessia das Américas para a Europa se faz a partir do Caribe ou da Florida passando pelos Açores, acima dos ventos alísios e da correnteza no sentido contrário. Nossa tripulação era Anne-Flore, uma capitã francesa, a família chilena Varela, com dois meninos gêmeos de 10 anos, e  Joana, que desembarcou em Fernando de Noronha.

Viagem da Kika, travessia do Atlântico: a região do Equador

A região do Equador, chamada zona de convergência intertropical ou doldrums, costuma ter pouco vento, tivemos um problema com o arranque do motor e tivemos que seguir lentamente somente à vela. O Antarctic é um barco construído para navegar em regiões polares, no calor seu casco de alumínio funciona como uma panela, foi um exercício de perseverança.

Areia do deserto do Saara

Distantes 500 milhas do litoral africano começamos a observar areia do deserto do Saara depositando sobre o convés do barco. A 50 milhas de Dakar, no meu turno das 3 às 6 am, tomei um susto ao quase chocar contra uma piroga de madeira sem iluminação, estava tão próxima que consegui ver os desenhos do casco. Me veio à mente as imagens dos imigrantes africanos que partem em busca de melhores condições de vida, no entanto estes eram pescadores.

Em Dacar

Em Dacar ancoramos no CVD (Club de Voile de Dakar) onde encontramos velejadores basicamente franceses com muitas aventuras para contar. Foi a primeira vez que coloquei o pé no continente africano.

imagem do monumento ao renascimento africano, em Dacar, Senegal
Monumento ao renascimento africano, em Dacar, Senegal.

Fiquei encantada com a elegância das pessoas, apesar da pobreza homens e mulheres se vestem com esmero e usam belíssimos tecidos. A maioria é muçulmana, ouvimos os chamados para as orações ao longo do dia, na rua as pessoas se lavam e param para rezar aonde estiverem. Na praia o volume de lixo acumulado choca.

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Zarpamos em meados de março

Zarpamos em meados de março antes do fechamento dos portos do Senegal. Cabo Verde e Açores já estavam fechados. Abastecemos com comida, combustível e água e partimos para o mar, que nestes tempos de pandemia se tornou um lugar seguro. Nosso tanque de diesel comporta 3.500 litros e nos dá uma autonomia de 1.000 horas. Carnes, verduras e frutas frescas duram em média 2 semanas em clima tropical, temos apenas duas pequenas geladeiras no entanto muito espaço para alimentos não perecíveis.

Os reservatórios de água doce somam 2.000 litros, não temos dessalinizador mas podemos coletar água de chuva. Longe de terra contamos com comunicação via satélite para previsão meteorológica e acesso a e-mails, no entanto sem acesso à internet. Distantes das notícias e bem abastecidos decidimos seguir nosso percurso, estamos habituados a percorrer longas distâncias portanto nossa realidade não mudou muito.

imagem da ilha Boa Vista, Cabo Verde
A ilha Boa Vista, Cabo Verde.

Cabo Verde

Em Cabo Verde ancoramos em seis ilhas diferentes, os alísios batem em cheio no arquipélago proporcionando lindas velejadas com ventos constantes e temperatura amena. Cabo Verde foi descoberto em 1460 e a colonização portuguesa começou em seguida, foi um entreposto importante no tráfico de escravos.

imagem de Cabo Verde
Cabo Verde.

O país ficou independente em 1975 e sua infraestrutura de turismo é crescente. Com formação vulcânica e relevo acidentado a paisagem parece lunar, tem praias de areia branca e água azul turquesa devido à presença de corais. Avistamos várias baleias, algumas com filhotes, golfinhos, tartarugas e caravelas portuguesas (a água viva, não as embarcações).

imagem do navio veleiro Cisne Branco
O Cisne Branco.

As autoridades locais não nos permitiram desembarcar, no entanto em Mindelo nos forneceram viveres frescos. Fiquei emocionada quando o Cisne Branco, veleiro escola da Marinha do Brasil, entrou majestosamente no porto.

Açores

Ao observar um mapa os Açores ficam fora de mão para quem vai rumo à Europa continental. No entanto a linha direta ao longo da costa africana representa enfrentar vento e correnteza contra, portanto fizemos um longo bordo de 1.600 milhas até os Açores.

Imagem da ilha do Pico nos Açores
Ilha do Pico nos Açores.

Aos poucos a temperatura foi caindo, deixamos para trás os alísios e começamos a entrar numa região sob influência das baixas pressões do Atlântico Norte.

Um território autônomo de Portugal

Os Açores são um território autônomo de Portugal, desempenhou um papel importante como escala das expedições dos descobrimentos, da ligação marítima entre Lisboa e Goa através da rota do Cabo, das frotas do Brasil e da coroa espanhola.

Imagem de Horta, Açores
Horta, Açores.

Foi cenário central da caça às baleias a partir da segunda metade do sec. XVIII, marinheiros açorianos integravam as tripulações dos tradicionais baleeiros de Nantucket e New Bedford.

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Horta na ilha do Faial

Aportamos em Horta na ilha do Faial, célebre escala das embarcações de recreio que fazem a travessia das Américas para a Europa nesta época do ano. Fieis à sua vocação, as autoridades açorianas disponibilizaram um píer na marina central para abastecer os barcos de passagem, com um portão que servia de fronteira.

Imagem de Angra do Heroísmo, Açores
Angra do Heroísmo, Açores.

O Peter’s Café, famoso ponto de encontro de velejadores, fornecia suprimentos com pedidos via whatsapp, pelo radio avisavam o momento de entrega no portão. Para Páscoa encomendei bacalhau com natas e polvo à lagareiro por recomendação das minhas amigas do mar Bolota e Leninha, um verdadeiro luxo. Confraternizamos com os veleiros vizinhos que se encontravam numa circunstância similar à nossa.

Depois de uma semana fomos obrigados a partir para dar espaço a outros barcos. Abrigamos de um mal tempo em Angra do Heroísmo na ilha Terceira, uma cidade com bela arquitetura tombada pela UNESCO que serviu de referência para o tombamento de Paraty.

Não nos permitiram ficar ancorados lá então seguimos para Ponta Delgada na Ilha São Miguel, onde nos concederam uma vaga na marina, precisamos assinar um documento nos comprometendo a não desembarcar.

Com o fechamento das fronteiras decidimos não parar em Portugal. Navegamos 900 milhas rumo ao norte da Espanha a fim de esperar condições favoráveis para atravessar o Golfo da Biscaia. Na Galícia fizemos uma escala técnica em Ares, na baía de Coruña.

Viagem da Kika, de Itajaí para João Pessoa

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