Primeira regata de volta ao mundo retrata a tragédia do ser humano

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Primeira regata de volta ao mundo retrata a tragédia do ser humano

Nick Tomalin e Ron Hall escreveram em 1970 “The Strange Last Voyage of Donald Crowhurst”, contando a história de Donald Crowhurst. A narrativa inspirou filmes, uma ópera e cinco peças de teatro, mantendo o fascínio mais de 50 anos após o desaparecimento do marinheiro. Em 1968, o Sunday Times lançou uma regata de volta ao mundo em solitário, com um prêmio de 5.000 libras. Os participantes deveriam partir e retornar a um porto britânico entre junho e outubro de 1968. Crowhurst, um velejador ocasional, protagonizou um drama maior que a Fastnet Race de 1979, quando 15 velejadores morreram. A competição revelou os aspectos mais negativos e positivos da natureza humana, incluindo devassidão moral, hipocrisia e, ao mesmo tempo, a generosidade.

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A largada de Donald Crowhurst. Imagem, wordpress.com.

Antecedentes da regata de 1968

O Sunday Times estava em êxtase depois de patrocinar e cobrir a primeira volta ao mundo em solitário de um inglês, Francis Chichester, com parada em Sydney. A considerável publicidade que o seu feito obteve levou vários marinheiros a sonhar com o próximo passo – uma volta ao mundo sem escalas. Chichester tornou-se uma celebridade, desfilando em carro aberto em uma Londres superlotada de fãs e recebeu uma condecoração da Rainha Elizabeth II. Após isso, o jornal lançou a regata.

Concorrentes da regata de 1968

Foram nove inscritos. Chay Blyth e John Ridgway, uma dupla de remadores; Bernard Moitessier, já uma espécie de lenda na França  em seu ketch de aço Joshua; um desconhecido ex-oficial da marinha britânica, Robin Knox-Johnston, se inscreveu com o pesado barco de madeira Suhaili; o experiente marinheiro italiano Alex Carozzo;  Bill King e o sul-africano Nigel Tetley; o francês Loïc Fougeron e, finalmente, o menos experiente, Donald Crowhurst.

rota da regata de volta ao mundo
A rota da regata de volta ao mundo. Imagem, Wikipedia.

Os competidores da Golden Globe Race deveriam partir da Inglaterra, navegar em direção ao Atlântico, contornar o Cabo da Boa Esperança, cruzar todo o Pacífico navegando ao sul da Austrália e da Nova Zelândia, contornar o Cabo Horn e só então retornar para casa rumo ao norte pelo Atlântico.

Cada um dos nove participantes partiu numa data diferente, mas dentro do prazo. Moitessier, por exemplo, largou de Plymouth mais de dois meses depois de Knox-Johnston.

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O perfil de Donald Crowhurst

Crowhurst, aos 35 anos, era casado com Clare e tinha três filhos. Morava em uma casa nos arredores de Bridgwater, em Somerset. Ele era dono da Electron Utilisation, uma empresa que fabricava dispositivos eletrônicos para iates, mas enfrentava sérias dificuldades financeiras.

Mesmo sem experiência, e sem um barco, ele se inscreveu vislumbrando a recompensa da vitória. Persuasivo, convenceu o financiador de sua empresa a bancar a construção de um trimarã. Crowhurst nunca havia navegado em um barco desse tipo.

A Yachting World relata que Crowhurst argumentava que usaria o trimarã de apenas 40 pés para testar suas invenções. Ele acreditava que a publicidade da regata impulsionaria sua empresa ao sucesso. Contudo, a empresa Electron Utilisation garantiu o empréstimo para o barco. Isso significava que um fracasso levaria a empresa à falência.

Contemporâneos o descrevem como uma personalidade carismática e vibrante, alguém que iluminava qualquer sala. Eles também o reconheciam como extremamente inteligente. Clare, sua esposa, compartilhou com a Yachting World: “Donald tinha um talento definido. Ele fazia afirmações incríveis, mas, por mais loucas que soassem, ele era inteligente e engenhoso o suficiente para torná-las realidade. Sempre. Isso é muito importante para entender seu caráter.”

A largada

Crowhurst conseguiu financiamento para o Teignmouth Electron. A Cox Marine, em Essex, construiu o casco e a JL Eastwood, em Norfolk, equipou o barco. Um indicativo do atraso de Crowhurst era que, quando a Cox Marine começou a construir o casco no final de junho, Ridgway, Blyth e Knox-Johnston já haviam iniciado suas tentativas de volta ao mundo. Complicações atrasaram a data da largada. Mesmo quando Crowhurst finalmente partiu em 31 de outubro de 1968, apenas algumas horas antes do prazo do Sunday Times acabar, seu barco ainda estava incompleto.

A regata de Crowhurst começou mal. Devido a problemas técnicos do barco, à inexperiência geral em manobrar um trimarã ainda não testado em alto mar e à falta de habilidade náutica em relação aos demais velejadores – alguns deles destinados a se tornarem lendas da vela, como Bernard Moitessier e Robin Knox-Johnston – a distância entre Crowhurst e os outros participantes aumentou imediatamente.

O próprio Crowhurst estava ciente: em seu diário de bordo, ele estimou suas chances de sobrevivência na travessia oceânica em 50% – e somente se conseguisse fazer algumas melhorias de segurança no trimarã durante a navegação, o que não aconteceu.

Entre novembro e dezembro de 1968, em pleno Atlântico, Crowhurst percebeu a enrascada em que tinha se metido e avaliou as opções. Havia duas: ele podia voltar atrás e enfrentar uma ruína financeira quase certa ou ir em frente e enfrentar a morte quase certa.

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A terceira opção de Donald Crowhurst

Para ele seria duro demais admitir a derrota. Então, resolveu navegar de um lado para outro do Atlântico, sem ousar rumar oceano austral. Assim, passou a comunicar à organização posições falsas passando a ideia que estava no pelotão de frente.

Em um caderno ele anotava as posições falsas, calculando uma boa média de velocidade por dia. Noutro, anotava as posições reais de modo a não se perder. Enquanto isso, ouvia pelo rádio as posições dos concorrentes.

Primeira parte da regata de Donald Crowhurst
Primeira parte da regata de Donald Crowhurst, segundo o thetidesofhistory.com, as posições são aproximadas.

O thetidesofhistory.com informa que na terça-feira, 10 de dezembro, Crowhurst enviou um telegrama (seguido por uma chamada de rádio no dia seguinte) alegando ter batido um recorde de 243 milhas no domingo, 8 de dezembro.

O Sunday Times ficou extasiado com o notável progresso de Crowhurst, embora alguns, como Francis Chichester, demonstrassem ceticismo. Eles observaram que os progressos consistentes dos outros concorrentes tornavam os súbitos ganhos milagrosos de Crowhurst estranhos.

Seu barco estava em péssimas condições mesmo navegando apenas pelo Atlântico. Então, soube-se depois, ele arribou na Argentina para fazer reparos, o que era proibido pelas regras da prova. Ele esperava retornar à Inglaterra com a flotilha quando ela, depois de cruzar o Cabo Horn, começasse a subir o Atlântico em direção à Inglaterra. Não pretendia ganhar, mas completá-la já seria muito bom para seus planos.

Crowhurst chegou a ser aclamado como um dos vencedores

Segundo o www.technogym.com, os meses se passaram e sua tática parecia estar funcionando. Donald Crowhurst chegou a ser aclamado como um dos vencedores apesar de alguns céticos duvidarem que ele estivesse onde afirmava estar. Isso porque muitos dos participantes haviam desistido em razão de diversos problemas. Em determinado momento,  a rádio anunciou que a regata havia se transformado em um confronto direto entre Crowhurst e o velejador sul-africano Nigel Tetley.

Tetley estava de fato bem à frente, informa o www.technogym.com, aproximando-se em uma ocasião do esconderijo de Crowhurst enquanto navegava perto da América do Sul. No entanto, o sul-africano, sentindo a pressão da competição, levou o seu trimarã ao limite, chegando ao ponto de danificá-lo irreparavelmente e ter que desistir em 30 de maio de 1969.

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Para evitar a descoberta de sua fraude, Donald manteve o rádio desligado durante grande parte de sua viagem. Sua posição suposta foi deduzida através da extrapolação de seus relatórios anteriores. Ao reativar o rádio e contatar o júri da prova, Crowhurst descobriu que, segundo as informações falsas que havia fornecido, não só era um dos poucos marinheiros remanescentes, mas também tinha grandes chances de ganhar.

A farsa desmoronou

Então a farsa desmoronou, e a tragédia humana se impôs. Pelas regras da prova, os diários de bordo de cada participante seriam rigorosamente analisados. Ficou claro para Crowhurst que ele seria desmascarado.

Este escriba que naufragou na Antártica por erro humano enquanto relatava o episódio pela internet, imagina como estava a cabeça do velejador de fim de semana que, àquela altura, já era conhecido nacionalmente. Ele passara nove meses sozinho tramando sua farsa mas, agora, estava devastado pela culpa.

Segundo o wikipedia, Crowhurst passou a escrever ideias desconexas em seu diário. Ele iniciou o que Tomalin e Hall acreditaram ser sua “confissão final”, também incorporando uma contagem de horas, minutos e segundos até o momento em que ele decidiu que encerraria “o jogo” cometendo suicídio.

Não consigo ver nenhum propósito no jogo… Não preciso prolongar o jogo…Foi um bom jogo que deve ser finalizado…

Em 1º de julho de 1969, provavelmente exausto e em profunda depressão, escreveu: …Vou jogar este jogo quando quiser, vou desistir do jogo…Não há motivo para prejudicar. Está consumado – está consumado É A MISERICÓRDIA”.

De acordo com o wikipedia, em 10 de julho de 69, o navio RMV Picardia encontrou o trimarã de Crowhurst à deriva na posição 33°11′0″N 40°26′0″W (ver mapa abaixo)Dentro, acharam o verdadeiro diário, revelando ao mundo sua tentativa desesperada. Crowhurst e seu diário de bordo falsificado nunca foram encontrados.

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Segunda parte da regata de Donald Crowhurst
Segunda parte da regata de Donald Crowhurst de acordo com o thetidesofhistory.com, assinalando os locais onde Nigel Tetley afundou e onde o trimarã foi encontrado.

Nicholas Tomalin e Ron Hall, seus biógrafos, consideram que Crowhurst experimentou uma “paranoia clássica” e um “distúrbio psicótico”, caracterizados por ideias ilusórias que se formam em uma estrutura complexa e intrincada.

Considerações finais

Dos nove inscritos apenas um completou a prova. Depois de cruzar o Cabo Horn, Moitessier tomou uma decisão dramática e abandonou a regata para navegar em direção ao Taiti.

Joshua na primeira regata de volta ao mundo.
O Joshua na primeira regata de volta ao mundo.

Depois publicou um dos melhores livros sobre navegação em solitário, O Longo Caminho. Nele, contou sobre sua desistência: Não sei como explicar minha necessidade de continuar rumo ao Pacífico…não se explica em palavras, seria inútil tentar.”

Bernard Moitessier.
Bernard Moitessier e seu estilingue.

Entre os equipamentos de bordo este francês nascido na Indochina levava um estilingue para arremessar filmes e relatos aos navios com quem cruzasse, informando sua posição ao jornal Sunday Times.

Robin Knox-Johnston,  se inscreveu com o pesado barco de madeira Suhaili.
Robin Knox-Johnston no Suhaili. Imagem, www.robinknox-johnston.co.uk.

Robin Knox-Johnston, o grande vencedor

Robin Knox-Johnston, único a completar e vencedor da regata  que durou pouco mais de dez meses, doou seus ganhos de 5.000 libras para a viúva e os filhos de Donald Crowhurst. Nigel Tetley recebeu um prêmio de consolação e construiu um novo trimarã.

Em reconhecimento, Knox-Johnston foi nomeado Comandante da Ordem do Império Britânico. Sir Robin Knox-Johnston e  Peter Blake (morto num assalto em Macapá)  atuaram como co-capitães e ganharam o Troféu Júlio Verne pela circunavegação mais rápida em 1994.

Em 2007, aos 67 anos, estabeleceu o recorde de iatista mais velho a completar uma viagem solo de volta ao mundo na Velux 5 Oceans Race, entre muito outros feitos náuticos. Ele tem vários livros publicados, entretanto apenas um no Brasil, Um Mundo Só Meu, em que relata a regata, e tem até mesmo um site para chamar de seu.

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Segundo o thetidesofhistory.com a  regata do Globo de Ouro do Sunday Times entrou para a história do iatismo como um evento desastroso, dado o fato de que apenas Knox-Johnston completou a prova enquanto Crowhurst mentiu e cometeu suicídio.

Após o resgate, o trimarã de Crowhurst foi vendido várias vezes e acabou numa praia de Cayman Brac, no Caribe, onde permaneceu pelo menos até 2018.

Trimarã de Donald Crowhurst
Imagem, www.devonlive.com.

The Mercy de 2018

O filme de 2018 sobre Donald Crowhurst, “The Mercy” (“Somente o Mar Sabe” em português), dirigido por James Marsh, conhecido por “Teoria de Tudo”, tem Colin Firth como ator principal.

O filme disponível no Amazon Prime Video recebeu críticas por não abordar adequadamente a fraqueza humana e por tentar glorificar a hipocrisia. No entanto, existe um documentário excepcional, “Deep Water”, disponível no YouTube.

Ele mescla imagens reais feitas pelos participantes com depoimentos de experts, da viúva e de um filho de Crowhurst, além de explicações de concorrentes como Sir Robin Knox-Johnston. 

Esta regata não deveria nunca ser esquecida por escancarar o que de pior, e melhor, existe no ser humano.

Assista ao trailer de The Mercy

THE MERCY - Official Trailer - Starring Colin Firth and Rachel Weisz

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Comentários

2 COMENTÁRIOS

  1. Incrível estória. A ambição de Crowhurst lhe tirou a razão. A generosidade de Knox-Jhonston é digna das grandes almas. A humildade de Moitessier em desistir só o engrandeceu, um pragmático reconhecimento da magnitude e potência dos mares que mesmo hoje supera as capacidades humanas. Um dos maiores relatos da natureza humana que já conheci.

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