Pesca mundial: será o declínio implacável?
Vivemos um momento sombrio da humanidade. Por abusarmos dos recursos naturais eles começam a faltar. Embora este assunto seja pouco abordado pela mídia brasileira, é muito comum no exterior. Em 2016, por exemplo, o jornal Washington Post publicou a reportagem What the ‘sixth extinction’ will look like in the oceans: The largest species die off first, em tradução livre, A sexta extinção nos Oceanos: as maiores espécies desaparecem primeiro. As espécies estão se extinguindo a uma taxa que excede em muito o que se poderia esperar naturalmente. Isso é o resultado de uma perturbação no sistema. E, neste caso, a perturbação somos nós. Agora, em junho de 2023, o jornal The Guardian publicou Have we reached peak fish? (Chegamos ao pico da pesca mundial?, em tradução livre).
Retiramos mais peixes do mar que a taxa de reprodução pode repor
Stephen Leahy, autor da matéria, demonstra que ‘removemos peixes do oceano a uma taxa muito maior do que eles podem nos reabastecer’, e pergunta: O que pode ser feito?
Antes da resposta saiba que atualmente 3,3 bilhões de pessoas têm os peixes e frutos do mar como fonte vital de proteína. Para além disso, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) diz que ‘para acabar com a fome e a desnutrição global há uma necessidade de um aumento de 15% no consumo global de pescado até 2030’.
Então, voltamos com a pergunta, o que pode ser feito? Ao que parece, muito pouco. Sahy mostra que ‘a taxa de crescimento da captura global de peixes selvagens atingiu o pico em 1963 e estagnou na década de 1990. Desde então, enfrenta um lento declínio.’
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Os principais motivos do declínio da pesca mundial
Como não poderia deixar de ser, o autor comenta o aquecimento do planeta, a poluição, a pandemia de plásticos, o aumento da temperatura da água dos oceanos e, por último, as contínuas emissões de CO2 que já tornaram os oceanos 26% mais ácidos.
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Contudo, diz Stephen Leahy, a sobrepesca, particularmente a pesca de arrasto de fundo, que destrói corais e outros habitats, é uma das principais culpadas. Nós já comentamos muito os malefícios do arrasto, a menos seletiva e mais mortal modalidade de pesca.
Segundo a ONG Oceana que estuda a questão, a morte da vida marinha não intencional provocada pelo arrasto chega até 40% da captura global em um ano. Em outras palavras, quase metade do que se pesca é devolvido ao mar. Para falar a verdade, se os gestores estiverem mesmo interessados nas futuras gerações, o arrasto deve ser severamente restrito.
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O arrasto de fundo e o custo do carbono
Em março de 2021, a Nature publicou o primeiro estudo a calcular o custo do carbono da pesca de arrasto de fundo. A revista Time analisou o trabalho e diz que ‘cálculos realizados pelos 26 autores do relatório mostram que o arrasto de fundo é responsável por um gigaton de emissões de carbono por ano (ou um bilhão de toneladas métricas). Este total anual é superior às emissões da aviação (pré-pandemia)’.
Saiba que um gigaton corresponde a 2% das emissões mundiais de CO2. Portanto, enquanto o mundo luta para diminuir suas emissões, a pesca de arrasto de fundo segue livre, leve e solta. Seus maiores expoentes são países ricos como China, Rússia, Itália, Grã-Bretanha e Dinamarca.
Desse modo, o arrasto de fundo não só destrói ecossistemas importantes como os corais mas, ao mesmo tempo, retroalimenta o aquecimento global liberando gases de efeito estufa.
Note-se a contradição, já que ao menos três destes países ‘levam a sério’ o aquecimento do planeta: Itália, Grã-Bretanha e Dinamarca, contudo só depois de quase duas décadas de discussões, a ONU foi capaz de chegar a um consenso para proteger 30% do alto-mar.
Como ‘alto-mar’ entenda-se uma porção que equivale a dois terços dos oceanos, a parte que fica para além das fronteiras nacionais, e que está sendo saqueada impiedosamente. O que se pode dizer é que existe no mínimo um enorme descompasso entre a predação, e proteção humanas. E, se este ritmo persistir, não sobrará muito da vida marinha para as futuras gerações.
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Circulação Meridional do Atlântico (AMOC) pode entrar em colapso
Para piorar, estudo recém publicado na Nature Communications alerta que, se as emissões de gases com efeito de estufa se mantiverem, a Circulação Meridional do Atlântico (AMOC), sistema de correntes oceânicas que transporta água quente dos trópicos para norte, em direção ao Atlântico Norte, em outras palavras, o sistema que distribui o calor pelo mundo, pode atingir o ‘ponto de inflexão’.
Além de causar uma Era do Gelo na Europa, seu colapso também pode reduzir significativamente a precipitação no centro e no oeste dos EUA, o último dos quais já sofreu uma seca única no milênio.
Uma mudança desta magnitude provoca inúmeros problemas, entre eles mortandade de peixes, e fuga de espécies marinhas de uma área mais quente para outra mais fria, ou vice-versa. Ao mesmo tempo, pode causar a morte de inúmeros ecossistemas importantes e, ainda, facilitar a introdução de espécies invasivas. Para encerrar, acirraria o degelo dos polos que contribuiriam ainda mais com a mudança das correntes marinhas, já que são influenciadas pela salinidade, temperatura da água, densidade, entre outros.
Fazendas de peixes não são solução
Esta foi, mais ou menos, a mesma conclusão a que chegou o articulista do Guardian, Stephen Leahy. Ele demonstra igualmente que as fazendas de peixes marinhos até agora não conseguiram substituir o que destruímos da vida marinha selvagem.
Há quase um consenso entre cientistas e ambientalistas de que as fazendas criam mais problemas, como poluição e mais sobrepesca já que a alimentação nas criações são rações à base de peixes, do que soluções. Leahy cita o Canadá como exemplo:
‘Na costa oeste do Canadá, anos de protestos da comunidade pesqueira local, grupos indígenas e ambientalistas resultaram em mais de 100 fazendas de peixes de salmão programadas para serem encerradas até 2025.’
Para Stephen Leahy, a resposta sobre o que podemos fazer não é simples, nem fácil, mas possível com vontade política. ‘Gerenciados adequadamente, os oceanos poderiam fornecer muito mais peixes selvagens do que hoje, de acordo com muitos cientistas marinhos. Na verdade, estudos descobriram que as capturas da pesca global podem gerar 16 milhões de toneladas a mais anualmente do que os níveis atuais de produção’.
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Como? Com a criação de unidades de conservação de proteção integral, aquelas onde não é possível a extração de nenhum tipo de recurso. Assim, ele defende que a proteção ao alto-mar, recém alcançada, seja de proteção integral.
‘Proteger 30% dos oceanos em unidades de proteção integral pode ajudar muito a devolvê-los à sua antiga saúde e abundância. Isso seria uma coisa muito boa, não apenas para aqueles 3,3 bilhões de pessoas que dependem da proteína que ali vive, mas para todos nós.’
Acabar com a poluição plástica, e outras medidas necessárias
E, além disso, o articulista defende ‘um tratado global vinculativo para acabar com a poluição plástica’. E, por último, a revisão nos subsídios da pesca. Atualmente, esta ajuda atinge a estratosférica cifra de US$ 35 bilhões de dólares ao ano.
Entretanto, segundo Stephen Leahy, já há um consenso para diminuir e cortar deste montante cerca de US$ 15,4 bilhões de dólares, parte dos subsídios considerada ‘nociva à pesca’.
Como se vê, os desafios são muitos. Resta saber se o concerto das nações continuará a andar a passos de cágado em acordos vinculantes internacionais, como as duas décadas que custaram a primeira assinatura de acordo de proteção ao alto-mar ainda sem metas definidas.
Obrigado João pela troca de opiniões e perspectivas.
Um privilégio!
Coincidimos em muitas, divergimos em outras, importante, entretanto, estar aberto às diferenças
Saudações
O prazer é meu, Cadu, Abraços e obrigado
Prezado MAR SEM FIM, prezado João Lara Mesquita.
O Artigo de Salas et al, publicado na Nature é comprovadamente sensacionalista e ja foi cientificamente contestado, até considerado fraudulento, por aportes bem mais realistas. ( https://www.nature.com/articles/s41586-021-03371-z )
Ciente de seu compromisso de transmitir a seus leitores as melhores informações e embasamento, recomendaria a leitura e publicação de perspectivas diferentes.
Já lhe escrevi outras vezes, nunca obtive resposta, espero consigamos estabelecer colaboração.
Sds, reconhecimento e respeito.
Cadu
Cadu, estou sempre às ordens dos leitores. Contudo, nem sempre é possível responder a todos os comentários. Vocês são muitos, eu, um só. Posto isto, agradeço por seu comentário e torço para que você esteja certo. Acontece que a fonte citada tem credibilidade e, além disso, já escrevi dezenas de artigos mostrando os problemas da pesca mundial. Eu particularmente, estou preocupado. Abraços
João,
Também estou, estamos! Com certeza, o planeta certamente está sobre-explotado, mas há excessos, inclusive de uma academia midiática.
Enfim, estou certo de suas boas intensões e de um trabalho responsável.
Como diz o artigo (https://academic.oup.com/icesjms/advance-article/doi/10.1093/icesjms/fsad115/7226311?utm_source=authortollfreelink&utm_campaign=icesjms&utm_medium=email&guestAccessKey=394c36c4-22c7-4412-87e3-d68a44471525&login=false), a solução não necessariamente está em proibir pescarias, mas sim em capacitar os gestores e seguir a ciência, a capacidade de reposição das espécies e o cuidado com o meio ambiente, habitat de tanta riqueza.
Obrigado pelo retorno!
Sucesso
Cadu: pelo que aprendi até hoje, é dificílimo capacitar gestores de 193 países, alguns dos quais não respeitam nada que diga respeito à pesca. A China, maior produtor mundial, é um exemplo. Invade águas territoriais de países mais pobres, como os da África, e dilapida seus cardumes. Em seguida, depois de acabá-los, mandou sua frota para a América do Sul. Hoje invade águas brasileiras e, especialmente Argentinas, do lado do Atlântico. No Pacífico, invade santuários como Galápagos, por exemplo, onde a pesca é proibida. E aí, como fazer? Pesqueiros chineses já foram afundados pela Armada Argentina, e presos pela equatoriana. Mas prosseguem a matança. Sem falar na acidificação, poluição, sobrepesca mundial, subsídios de US$ 35 bilhões de dólares ao ano, pesca de arrasto que destrói ecossistemas mundo afora, etc, etc. Por isso, pelo que aprendi, a única solução à vista é sim, separar porções ainda não destruídas, e poupá-las mundialmente da pesca na esperança que os cardumes possam se reproduzir, e seguir para outros locais onde a pesca é liberada.
Seria algo como poupar as maternidades mundiais, mas depois de crescidos os bebês, eles saem da maternidade para seguirem suas vidas e então, sim, poderiam ser pescados. É o que defendem meus gurus internacionais, Sylvia Earle, e Enric Sala, entre muitos outros especialistas.Abs