Itacaré e Uruçuca, BA, onde a inteligência prevalece no litoral
Depois de décadas navegando pelo litoral e acompanhando sua transformação de uma costa prístina e exuberante para algo parecido com um melancólico cortiço em pouco mais de 50 anos, perdi a esperança de ver inteligência na gestão da zona costeira. Ainda existem algumas praias onde a ocupação segue de forma sensata e sustentável, mas o crescimento descontrolado avança ao redor, altera a paisagem e destrói os principais ecossistemas para abrir espaço a prédios, casas de veraneio, resorts, hotéis, condomínios, marinas, etc. Tudo isso fruto de arrogância e, acima de tudo, muita ignorância. Ah, como os prefeitos adoram a “verticalização”… Por isso, visitar Itacaré e Uruçuca, no sul da Bahia, foi uma grata surpresa.

Exemplos para o Brasil
Apesar de navegar há mais de meio século, ainda há trechos do litoral que não conheci nas viagens anteriores. Um deles, que se convencionou chamar de Costa do Cacau, a terra de Jorge Amado, inclui os municípios de Ilhéus, Itacaré, Ipiaú, Una, Canavieiras e Uruçuca.

O nome vem do fato de a região ter crescido com a cultura da fruta desde meados do século 18. Eu conhecia superficialmente o trecho que vai de Ilhéus até Itacaré. E fiquei extremamente feliz e orgulhoso do que vi.
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Não sou místico, mas, no fundo da alma, tenho certeza de que Jorge Amado, baiano apaixonado pelo litoral, e o autor das Canções Praieiras, Dorival Caymmi, sentiriam orgulho desta orla.
Sim, ainda existe inteligência, dignidade, comedimento, generosidade, e ética no litoral! E desta vez não em um ponto isolado, mas em toda a região. Visitei mais de 12 lindas praias neste trajeto, todas ocupadas por casas de segunda residência, condomínios, ou hotéis, resorts e pousadas.
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Então você pode perguntar: qual a diferença, já que as praias mencionadas contam com o mesmo aparato das milhares de outras consideradas ‘cortiços’? Simples, bom senso. Todas as praias desse trecho contam com esses equipamentos, mas com uma grande diferença: eles não ficam visíveis.

Isso mostra que os principais ecossistemas da região, como praias, costões, restingas, dunas e manguezais, permaneceram intactos.
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Quem usa essas praias demonstrou não ser tão mesquinho e egoísta quanto a maioria dos que apossaram-se de outras áreas da zona costeira que, mesmo tendo sua ‘ocupação proibida pela legislação’ (a maioria são APPs) foram invadidas e destruídas por uma horda de inconsequentes.

Estamos aqui de passagem…
Aparentemente, as pessoas que frequentam e ocupam a Costa do Cacau entendem que estão aqui de passagem e que ninguém tem o direito de destruir algo que pertence a todos, como a biodiversidade marinha, áreas públicas, e a paisagem — que, vale lembrar, tem sua proteção garantida por todas as Constituições republicanas desde 1934 até 1988.

A ética, cada vez mais rara neste mundo distópico, também define aqueles que ocupam este trecho da zona costeira. Eles utilizam as praias, mas sem provocar mudanças ao redor. Pode-se dizer que elas seguem intocadas desde o tempo de Cabral e, assim, continuarão preservadas para as futuras gerações.

A vasta maioria dos que frequentam o litoral se cala
O que mais me impressiona, no entanto, é que a vasta maioria dos brasileiros que frequenta o litoral não faz ideia do que estamos falando.

Não canso de lembrar que nossas praias foram o lar de nativos e caiçaras desde o século 16, até meados do século 20.

E ainda assim, quando foram expulsos pela especulação imobiliária, um vício sem-vergonha dos cara-pálidas irresponsáveis, entregaram os espaços da mesma forma que os receberam. Em outras palavras, sem qualquer alteração significativa.
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Os inconsequentes da costa brasileira
Por outro lado, a maioria dos cara-pálidas que tomaram o lugar dos nativos e caiçaras parece que disputam um concurso de burrice e ignorância, quanto mais suas mansões se sobreporem à paisagem, melhor. Quanto mais os condomínios, hotéis, resorts, prédios e que tais, deixarem sua marca de concreto armado para o resto da vida, melhor.

Não é preciso ir muito longe para se horrorizar com estas sequelas. Em São Paulo, por exemplo, basta dar uma rápida olhada nos condomínios de ricos e seu desmedido egoísmo para ver a herança que deixarão. Iporanga, por exemplo, é um deles.

A surpreendente região do Cacau
O mais impressionante nesta região é a consistência na ocupação—nenhuma exceção saltou aos meus olhos. Ainda custo a acreditar. Será que outro trecho da costa brasileira preserva as mesmas características? Creio que não. Nenhum se compara a este.

O que diferencia os moradores de Itacaré, Uruçuca, Cairu e outros municípios? Que DNA eles carregam para preservar o que tantos destroem?

Em breve, pretendo voltar à região para conversar com mais pessoas—moradores, turistas e autoridades, como prefeitos e vereadores. Quero entender por que a especulação imobiliária, esse flagelo nacional, ainda não tomou conta deste pedaço da costa.
O litoral brasileiro está ao deus-dará
Além disso, em vez de hotéis como o da Praia dos Ingleses, que mutilou a paisagem, os daquela região seguem o caminho oposto. Até então, eu só conhecia o Txai, um dos primeiros a se instalar na Costa do Cacau, de forma exemplar, sem alterar sequer um traço da paisagem. Agora, percebi que há muitos outros, discretos a ponto de seus nomes passarem despercebidos. Eles não se impõem—deixam a paisagem brilhar.

Portanto, a indústria do turismo também carrega grande responsabilidade pela degradação do litoral. Entre as dezenas de hotéis que conheci, poucos se preocuparam em se integrar ao ambiente, valorizando a Mata Atlântica, a biodiversidade e a paisagem espetacular ao redor. A maioria impõe sua presença sem qualquer sensibilidade.
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O exemplo é claro: se os baianos desta região conseguem ocupá-la sem destruí-la, outros brasileiros também podem.
Não há fiscalização
O litoral brasileiro, como alertamos há anos, segue abandonado. A fiscalização é quase inexistente, as leis ambientais parecem não ter “pegado” e, por lá, tudo é permitido—desde que haja dinheiro envolvido. O descaso se reflete até no Ministério do Meio Ambiente. Marina Silva, por exemplo, já soma mais de dois anos à frente da pasta no governo Lula 3 e, até agora, não fez qualquer pronunciamento relevante sobre o mar e a zona costeira, apesar dos problemas alarmantes, como a erosão que já atinge 60% do litoral.
Enquanto isso, os caiçaras e nativos da costa, mesmo reconhecidos como populações tradicionais, seguem invisíveis para as políticas públicas que atendem negros, indígenas e quilombolas, para citar apenas alguns exemplos.

Enquanto isso, prefeitos e governadores dos 17 Estados costeiros fingem não ver o problema—quando não estão diretamente envolvidos e comandando a especulação, como já denunciamos inúmeras vezes.

Tenho dezenas de exemplos de omissão injustificável por parte dos governantes. Minha última viagem, em 2024, apenas reforçou essa realidade. Fui conhecer o litoral extremo oeste do litoral do Ceará, as últimas 10 ou 12 praias antes da fronteira com o Piauí.
O que vi foi chocante. Depois de um maciço investimento de um milionário paulista, a região virou de ponta-cabeça. Nativos que até recentemente mal lidavam com papel moeda agora vendem suas terras pelo que consideram uma fortuna—10, 15 mil reais—e, em seguida, grilam outras áreas para revendê-las a novos empreendedores.
Até a Diocese de Sobral entrou no jogo da especulação, retomando terras antes doadas aos nativos, de olho na valorização gerada pelo mercado inflacionado. Enquanto isso, o governo do Estado cruza os braços.
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O crime organizado aos pouco toma o litoral
A omissão sistemática do Estado abriu caminho para que grande parte do nosso litoral caísse nas mãos de facções criminosas como o PCC, o Comando Vermelho e outras. Em Jericoacoara, empreendedores apontam o tráfico de drogas como o maior problema local. O mesmo processo avança no sul da Bahia, em Porto Seguro, Arraial d’Ajuda e Cabrália.

Porto Seguro, a cidade, a mais populosa da Costa do Descobrimento, teve em 2022 uma média de 57,7 mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes. Isso é mais que o dobro da taxa nacional de 23,3 e acima da média da Bahia, 47,1, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Empreendedores da Costa do Cacau
O feito dos empreendedores da Costa do Cacau ganha ainda mais relevância diante do domínio dos especuladores sobre o litoral da Bahia. Nosso último post sobre o Estado expôs a construção de um condomínio na praia de Taípe, no topo de uma falésia—algo proibido por lei—com um elevador panorâmico cravado na encosta! Uma brutalidade sem precedentes que, apesar das denúncias, continua avançando.

Uma vitória recente, ufa!
A única vitória recente foi a suspensão da venda de 20% da ilha de Boipeba por uma quantia irrisória—R$ 183.375,00—para que cinco empresários riquíssimos e influentes transformassem a Praia dos Castelhanos, ainda intocada, em um megaprojeto imobiliário.

O litoral leste do Ceará já havia sido devastado antes mesmo do século 21 começar. Agora, o litoral oeste, que ainda preservava alguma integridade, segue pelo mesmo caminho. E assim a destruição avança. Até Cajueiro da Praia, no Piauí, sucumbiu à especulação imobiliária e ao domínio do Comando Vermelho.

Até quando vamos aceitar esse massacre? Se você concorda com nosso diagnóstico, pode fazer a diferença. Compartilhe este texto—quanto mais pessoas souberem, maior será a pressão. A opinião pública é nossa única esperança. Não se engane.

Voltaremos ao tema para comentar a ameaça por que passa a Prainha, uma das mais belas de Itacaré.
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