Pescadores artesanais ocupam órgão federal na Bahia
Esta notícia é inusitada já pelo título. Não é costume dos pescadores artesanais, caiçaras, ou nativos da costa, chame-os como quiser; se reunirem e lutarem por seus direitos. Ao contrário, isso é muito raro e foge aos costumes destas populações. Procurando entender o abandono por que passam, desde minha primeira viagem pela costa brasileira questiono, leio, e entrevisto especialistas para saber por que, afinal, uma população tão carente jamais se une para pressionar o poder público como fazem outros grupos de excluídos entre os quais negros, indígenas, quilombolas, etc. Agora, parece que a temperatura atingiu o auge. Finalmente, pescadores artesanais da Bahia se uniram por uma causa comum.
Caiçaras e nativos da costa não são considerados povos tradicionais
Pelo que aprendi ao longo de minhas viagens, os pescadores da costa brasileira se acostumaram ao isolamento desde sempre. Ou seja, desde tempos remotos quando não havia comunicação sem que ‘fosse ao vivo’. Com o tempo, o progresso finalmente chegou a parte desta gente, alguns já com acesso ao telefone e energia elétrica. Mas o costume de se virar sozinho, perdurou. No máximo, uma comunidade próxima de outra mantém um certo contato. Mas isto é tudo.
É oportuno, também, explicar as diferenças entre povos originários, e tradicionais. Os primeiros, são os indígenas, já os segundos se diferenciam do conceito de povos e comunidades tradicionais. “Basicamente a diferença é que os povos indígenas remetem a uma ancestralidade anterior à colonização. Os demais povos e comunidades tradicionais não necessariamente possuem essa característica”.
Legislações criadas para protegê-los
Porém, em uma questão os dois se equivalem. Qual seria? As recentes legislações criadas para protegê-los. Por exemplo, o Decreto Nº 6.040, de 2007, instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT.
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O Brasil oficial considera que temos 27 povos tradicionais mas, os da costa, que nos interessam, são os Extrativistas, Ribeirinhos, Caiçaras, Ilhéus, Isqueiros e Pescadores Artesanais. Portanto, como se pode ver, os caiçaras e os pescadores artesanais, além de ilhéus e outros do litoral, estão incluídos nos benefícios previstos na Constituição e na legislação ordinária.
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Ocorre que a realidade mostra um cenário totalmente diverso daquele descrito na legislação, especialmente para caiçaras, pescadores artesanais, ilhéus, isqueiros, etc.
Caiçaras, pescadores artesanais, e nativos da costa
Temos especial interesse pela sorte desta gente em função de nossa proximidade ao longo de quase 60 anos navegando pela costa brasileira. E, de maneira idêntica, já dedicamos um post para discutir a posição de semipárias que hoje continuam ocupando na sociedade, apesar das ‘leis de proteção’.
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Pesca artesanal também provoca grandes danosPesca artesanal, e seus malefíciosVolume de pesca no mundo é subestimado. Entenda…Em rápidas linhas, o grande problema desta gente começou por volta dos anos 50 do século passado, quando as pessoas das cidades passaram a ocupar o litoral. Ato contínuo, os antigos ocupantes foram expulsos para o interior, perderam o acesso ao mar e a profissão. Os que insistem em prosseguir na pesca vivem de forma miserável, em razão da brutal poluição que nós causamos com nossa ocupação desordenada, e em comunidades muitas vezes sem escolas ou hospitais.
E o poder público quase não age para esta gente. Proíbe certos tipos de pesca, os mais danosos, mas não apresenta qualquer opção aos pescadores. Os mangues, que alimentavam famílias, são sistematicamente destruídos pela especulação imobiliária apesar de também serem protegidos pela legislação ambiental, ou cercados pela especulação imobiliária sem que quase nada aconteça. Daí o espanto com a notícia de que finalmente um grupo baiano decidiu chamar a atenção sobre sua sorte, usando as mesmas táticas daqueles que conseguiram sucesso, com isso, tratamento especial. O MST é um bom exemplo para este caso.
Não somos favoráveis a qualquer atitude ilegal, venha de onde vier, mas compreendemos quando um grupo, como o destes baianos, decide partir para o ataque.
Como foi o incidente e o que querem os pescadores?
O caso aconteceu em Salvador, quando mais de 200 pescadores artesanais ocuparam, em 22 de julho, a sede da SPU (Superintendência do Patrimônio da União) para exigir pressa na regularização fundiária, e proteção a seus territórios.
Como não poderia deixar de ser, estes pescadores de várias partes da costa baiana, parecem cansados dos estragos da especulação que dilacera o litoral. A imprensa confirma usando, entretanto, palavras mais amenas que ‘especulação’. O Portal UOL diz que a principal reivindicação é a fiscalização da ocupação das praias e áreas de manguezais por empreendimentos empresariais, com impactos ambientais que comprometem o sustento das famílias que vivem da pesca artesanal.
Processos parados desde 2010
Segundo Raimundo Siri, pescador artesanal da comunidade de Cova da Onça, em Boipeba, sul da Bahia, em depoimento ao UOL, “Realizamos essa ocupação no prédio da SPU justamente porque o diálogo que se estabelecia entre a SPU e nós do movimento chegou a um a ponto que não dava mais para esperar por tanta morosidade da SPU em dar avanço nos processos, alguns parados desde 2010, e que não conseguem avançar”.
Note bem, alguns (projetos) parados desde 2010! Raimundo está numa luta praticamente perdida. Ele é nativo da Ilha de Boipeba onde um grupo de milionários pretende comprar 20% da área por uma merreca, menos de 200 mil reais, para transformá-la num resort com campo de golfe e marina para centenas de barcos.
Com muita luta da comunidade, e de alguns setores da sociedade, entre eles este site, conseguimos que a SPU adiasse o empreendimento. Houve grande repercussão quando o público leitor teve ciência que os cinco milionários comprariam 20% de uma ilha realmente paradisíaca, ainda não atingida pelo turismo de massa, por menos de 200 mil reais. Mas é uma questão de tempo para que eles ganhem a batalha. Alguém aqui já viu a parte fraca ganhar alguma vez?
Raimundo Siri é ameaçado
Segundo a matéria do Portal UOL, o pescador passou a receber graves ameaças depois que as obras do complexo foram suspensas no ano passado, após a Secretaria de Patrimônio da União acatar pedido do Ministério Público Federal, que questiona a autorização da transferência de titularidade do terreno e a violação de direitos das comunidades tradicionais.
Veja só, depois de nossa vitória de Pirro, com a SPU suspendendo as obras, o pescador ainda passou a ser ameaçado. Pode parecer estranho para quem não frequenta o litoral. Mas, para quem conhece, não há nada de novo. Sempre foi, e tende a continuar sendo assim. Ou este pessoal aceita as trocas indecorosas do ‘homem branco da cidade’ ou, invariavelmente, passa a sofrer ameaças.
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Voltamos à matéria do UOL. “A SPU sempre vem com a desculpa que está sem capacidade de olhar nossos pedidos por falta de funcionários. Mas, quando é para empresários, a resposta é rápida. Precisamos que esses pedidos sejam analisados, para que possamos continuar a lutar pelas nossas comunidades”, ressalta Siri.
A Folha de S. Paulo que também repercutiu a ação, repetiu o que disse o UOL, acrescentando que o prédio foi desocupado de forma pacífica na tarde desta segunda, após um acordo entre os gestores da SPU e os manifestantes. Uma nova reunião foi marcada para 20 de agosto.
Praias e manguezais baianos cercados
Segundo a Folha, em um manifesto encaminhado ao órgão federal, os pescadores cobraram a retirada de cercas instaladas em praias e manguezais, especialmente nas regiões de Tinharé, Boipeba e Barra de Serinhaém, no Baixo Sul, e no Quilombo Riacho Santo Antônio, no Litoral Norte.
O que seriam estas cercas, se não instrumentos da especulação imobiliária a maior chaga do litoral brasileiro? Pelo menos, segundo a Folha, houve concordância do Governo Federal com a reivindicação. Já é um primeiro passo na direção correta.
Em nota, o Ministério da Gestão informou que as reivindicações dos pescadores foram consideradas legítimas e refletem “um longo período de negligência” nos últimos oito anos na regularização das áreas ocupadas por essas comunidades tradicionais.
E se Kamala Harris ganhar, como ficam as questões ambientais?