Groenlândia acima do Círculo Polar
A cultura inuit se apoia sobre dois pilares fundamentais: kinship e caça. Kinship são os laços de parentesco ou afinidade que mantém a comunidade coesa. A caça sustenta seu modo de vida material e simbólico. O caçador é um líder natural, durante o inverno, quando o mar congela, os trenós puxados por cachorros são seu meio de transporte. Groenlândia Acima do Círculo Polar é o 24º relato de viagem da navegadora.
DISKØ
Ao entrar na grande Baía de Diskø, na costa oeste da Groenlândia, nos deparamos com muitos icebergs originários de Jakobshavn Isfjord, um glaciar extremamente ativo declarado patrimônio da humanidade. Os números impressionam, sozinho ele drena 6,5% da calota de gelo groenlandesa e produz 10% de todos os icebergs da Groenlândia. O estudo de sua acelerada retração contribui para a compreensão das mudanças climáticas.
Colada ao gigantesco glaciar a cidade de Ilulissat atrai turistas do mundo inteiro. No porto atracamos ao lado de alguns veleiros que chegavam para o início da temporada, o intercâmbio entre tripulações de cientistas e aventureiros é enriquecedor.
Visitamos a casa transformada em museu do famoso explorador e antropólogo Knud Rasmussen. Em suas expedições pelo Ártico coletou valiosas informações sobre o modo de vida tradicional logo antes da cultura europeia influenciar os costumes da escassa população inuit na Groenlândia e no norte do Canadá.
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Os primeiros europeus a entrarem em contato com os inuits foram os baleeiros, ao longo dos sec XVII e XVIII ocorreu uma extensiva caça às baleias na Groenlândia. Os baleeiros trocavam armas, agulhas, roupas e contas de vidro por peles. Hoje a caça às baleias grandes está proibida por legislação internacional.
A família da filha do Georges e meu filho Matias embarcaram conosco e partimos para navegar em torno da Ilha de Diskø. Visitamos Oqaatsut, um assentamento da época da caça às baleias que graças ao acesso por terra oferece uma charmosa estrutura de turismo. O glaciar Eqip Sermia e seu vizinho produzem uma grande quantidade de icebergs, a navegação entre o norte da ilha e o continente é desafiadora pois a correnteza provocada pelas marés pode ser muito forte.
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Pesquisas arqueológicas revelaram a existência de uma antiga cultura do Ártico, depois denominada Saqqaq, que habitou a região entre 2.500 e 800 AC. Na comunidade de Saqqaq nos deparamos, pela primeira vez, com a prática ativa de caça aos mamíferos marinhos. Conhecemos Qullissat, uma vila de mineração de carvão abandonada que acabava de receber containers para prospecção de minérios para novas tecnologias.
Ancoramos em uma baía abrigada e em pouco tempo estávamos rodeados por baleias jubarte alimentando-se com seus filhotes. Em terra vimos acampamentos inuit.
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A possibilidade de navegar ao norte de Diskø depende totalmente das condições do gelo. Numa temporada normal não há problema de chegar até Upernavik (72˚47’N) em junho ou julho, já mais ao norte o progresso depende da temporada. Nosso plano era atravessar a Baía de Baffin até o Canadá e para isso seguimos atentamente a evolução das ice charts. O gelo do lado canadense demora mais para abrir e nunca está longe, com vento forte pode se mover rapidamente.
No mar existem basicamente dois tipos de gelo: icebergs e sea ice. Icebergs se desprendem de glaciares, tem origem em terra e são constituídos de água doce. Sea ice é água salgada do mar congelada, que se forma, cresce e derrete no mar. A presença de icebergs e sea ice é a maior limitação para navegar nas águas do Ártico.
Ao norte de Diskø
Ao norte de Diskø procuramos abrigo para dormir todos os dias e não encontramos outros veleiros. Ancoramos num assentamento abandonado com a ruina de uma capela Norse (norueguesa) do sec XIII e depois em Arfertuarssuk, um fiorde desabitado. No pequeno assentamento de Upernavik Kujalleq um grupo de curiosos inuits vieram a bordo nos dar as boas vindas e quando desembarcamos nos ofereceram um pedaço de fígado de foca cru ainda quente como cortesia. Kangersuatsiaq é um pequeno vilarejo com interesse histórico, tendo sido visitado por alguns exploradores como Kane em 1853 para comprar cachorros e completar seu estoque de peles para vestimenta.
Chegamos em Upernavik, uma cidade com uma população de 1.200 pessoas e último local onde se pode encontrar uma razoável infraestrutura. Não tem hotel nem café onde conseguir internet, precisei entrar no hospital para conseguir fazer uma ligação desde a sala de espera. Em seu aeroporto pequenos aviões e helicópteros fazem escala para acessar as comunidades mais setentrionais.
Rumo ao norte
Seguimos rumo norte navegando através do arquipélago de Upernavik entre icebergs e sea ice. Encontramos abrigo numa minúscula baía prístina repleta de ninhos de pássaros. Coletamos água em uma cascata e aproveitamos para lavar roupa. Em Nuussuaq fomos recebidos novamente por simpáticos inuits, os jovens falam inglês e todos ficam felizes de tomar café com biscoitos franceses. Situada no extremo sul da Baía de Melville, Kullorsuaq é uma das mais tradicionais comunidades de caça e pesca, sua população de 430 pessoas é das mais pobres da Groenlândia, no entanto é dos poucos assentamentos em crescimento do país. O Devil’s Thumb como pano de fundo impressiona.
Ao longo da Baía de Melville não existe abrigo até Cape York, neste trecho da costa a calota de gelo continental chega até o mar gerando muitos icebergs. No início de agosto o gelo do lado canadense ainda não permitia a passagem, então prosseguimos navegando rumo norte.
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Avanersuaq
O território de Avanersuaq se estende de 75 a 80˚ de latitude norte e de 50 a 74˚ de longitude oeste, não é possível navegar mais além devido ao gelo permanente. Está isolado do resto da Groenlândia por todos os lados: ao sul pelos 400 km inabitados da Baía de Melville, fechada pelo gelo durante uma parte do ano; ao norte pelos 100 km de frente do Glaciar Humboldt; à leste pela calota de gelo e a oeste pelo Estreito de Smith.
Escavações arqueológicas atestam que seus ocupantes chegaram do ártico norte-americano faz 5.000 anos após atravessarem a ponte de gelo entre a Ilha Ellesmere e Etah. Seus habitantes são os inughuit, ou Esquimós Polares, uma população em torno de 800 pessoas que constituem a comunidade mais setentrional do planeta, que viveu à margem do mundo até o início do século passado. Neste ambiente rude, a escassez é um dado importante para compreender seu modo de vida. Se alimentar e se proteger do frio, confeccionar os artefatos para caçar e para costurar, regulam a vida das pessoas.
Passagem Noroeste
O explorador britânico John Ross, em busca da Passagem Noroeste, foi o primeiro ocidental a encontrar os inughuit em Cape York em 1818. John Franklin deixou relatos sobre o modo de vida dos Esquimós Polares antes de sua expedição desaparecer.
Depois da longa travessia da Baía de Melville nos abrigamos em frente a um glaciar ao norte de Cape York, a partir este ponto passamos a levar um rifle conosco para defesa de urso polar caso necessário. Navegando próximos à costa avistamos bandos de bois almiscarados com filhotes. Ancoramos em Parker Snow Bugt onde encontramos uma cabana de caça abandonada.
Thule Air Base
Passamos longe de Thule Air Base, uma base aérea americana instalada durante a Guerra Fria em território ancestral dos inughuit, expulsando seus habitantes. Mais tarde o evento foi julgado pelo governo dinamarquês e foi considerado uma intervenção expropriatória e ato ilegal contra a população.
Abrigamos numa baía com morenas, acumulo de detritos transportados por uma geleira, onde raras flores cresciam no meio do terreno mineral. Mais adiante entramos numa baía chamada Booth Sund, mas era rasa e a ancoragem não parecia segura, as cartas náuticas não são detalhadas nesta região.
Qaanaaq, uma vila fundada em 1953
Chegamos em Qaanaaq, uma vila fundada em 1953 para alojar os inughuit expulsos de Uummannaq-Thulé depois da instalação da base aérea americana no melhor porto natural da região. Dois cargueiros por ano abastecem a maior cidade de Avanersuaq com 620 habitantes, dos quais 40 são caçadores profissionais. Encontramos um grupo de cientistas da universidade do Japão pesquisando sobre degelo, glaciares e narvais. Em Qaanaaq a ancoragem não é abrigada do vento SW e está sujeita a uma “avenida de gelo” bem próxima à costa. Com uma forte rajada nossa ancora de 80kg+100mt de corrente desgarrou justo antes do Matias desembarcar para pegar um aviãozinho em ritmo filme de ação. Ele precisou fazer nada menos de quatro escalas na Groelândia antes de voar para a Dinamarca e de lá seguir para o Brasil.
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Fiorde Inglefield
Navegamos ao longo do imenso Fiorde Inglefield, um território rico em mamíferos marinhos. No verão, quando a banquisa se desloca, os narvais que hibernaram ao sul se encontram para reproduzir em suas águas profundas e se alimentar dos cardumes de bacalhau e halibut.
O fiorde é o único local do círculo polar onde a caça ao narval ainda se pratica em caiaque e arpão com propulsor. Avistamos alguns grupos de narvais, eles são ariscos e fogem quando escutam barulho de motor. No inverno e primavera muitos caçadores viram pescadores e instalam seus carreteis sobre o gelo para pesca de halibut (linguado do Ártico) e bacalhau para exportação.
Comunidade caçadora de Qeqertat
No fundo do fiorde a diminuta comunidade caçadora de Qeqertat com 28 pessoas fica aglomerada sobre uma ilha. Nas margens norte e leste do fiorde os gigantescos glaciares oriundos da calota glaciar enquadram o vilarejo. As arctic terns (andorinhas do ártico) nidificam nesta região e depois migram para a Antártica, percorrendo mais de 35.000 km por ano. Estas aves extraordinárias vivem dois verões polares por ano efetuando a migração regular mais longa dentre todos os animais.
Seguindo rumo norte abrigamos na margem sul do Fiorde Mac Cormick, uma paisagem lunar com praia de pedrinhas coloridas. Na entrada do fiorde, depois de Kap Cleveland, pode-se ver as fundações do primeiro acampamento de inverno de Peary em 1891-92.
Siorapaluk, um vilarejo de caçadores
Siorapaluk é um vilarejo de caçadores situado do lado norte do Fiorde Robertson. É o assentamento indígena mais setentrional do planeta. Com latitude 77˚47’08” N o dia contínuo dura 4 meses e igualmente a noite polar.
As raposas e lebres árticas abundam na região, assim como os mamíferos marinhos. Milhões de mergulhões cada ano fazem seus ninhos e se reproduzem. Não existe água encanada, durante o verão seus 40 habitantes coletam água no córrego, no inverno transportam pedaços de gelo dos icebergs imobilizados no fiorde e derretem no calor de suas casas.
Um caçador do vilarejo garante o funcionamento do gerador que fornece eletricidade, calefação e iluminação às casas. Uma pequena loja abastecida uma vez por ano abriga o correio. Ao longo da praia, onde são amarrados os cachorros, os caçadores secam suas provisões de carne para o inverno sobre andaimes para preservar dos ursos polares e cachorros.
Na parte superior do vilarejo uma casa polivalente agrupa banhos públicos, lavanderia, sala de reunião e espaço para tratamento das peles. A escola primaria acolhe uma dezena de crianças que são dispensadas das aulas durante a noite invernal. Séculos de adaptação às condições de vida extrema resultaram na sabedoria do essencial deste admirável povo.