O que o Poeta do Mar dizia sobre privatização de praias?

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O que o Poeta do Mar dizia sobre privatização de praias?

Em 1921, quando o Brasil ainda engatinhava como República, um poeta paulista já denunciava os primeiros sinais da especulação imobiliária em nossa orla. Vicente de Carvalho, conhecido como Poeta do Mar, se insurgiu contra a tentativa de privatização de uma das mais belas praias de Santos — a da Barra. O que poucos sabem é que ele não foi apenas o maior poeta brasileiro de sua época. Vicente foi advogado, jornalista, abolicionista, deputado, fazendeiro, jurista, pescador, estava à frente do seu tempo. Como secretário do Interior no governo de Cerqueira César (1835–1911), autorizou a criação da Escola Superior de Agricultura (hoje ESALQ) e da Escola de Engenharia que daria origem à Politécnica da USP. Na área da saúde, tentou trazer ao Brasil ninguém menos que Louis Pasteur. Recebeu, em seu lugar, o aluno Félix Le Dantec, que implantaria o serviço sanitário paulista.Vicente de Carvalho, o Poeta do Mar

Como disse Ignácio de Loyola Brandão em sua breve biografia Vicente de Carvalho: poeta, abolicionista, pescador, ele foi um pioneiro no cuidado com o meio ambiente — décadas antes de isso se tornar pauta pública.

O primeiro a dizer não à privatização das praias

A luta que o Poeta do Mar travou em 1921 impressiona ainda hoje. Um século atrás, ele já combatia a sanha dos especuladores, que queriam erguer arranha-céus sobre a faixa de areia da praia da Barra, em Santos.

Preocupado, o então prefeito Joaquim Montenegro o procurou e pediu ajuda. Os especuladores queriam transformar a praia em propriedade privada — exatamente o que a chamada PEC das Praias ameaça fazer hoje, com o apoio de políticos que ignoram o valor público da costa brasileira.

O poeta santista não hesitou. Escreveu uma carta aberta ao presidente da República, Epitácio Pessoa, exigindo a preservação da praia como bem público.

O protesto que virou documento histórico

O movimento causou forte impacto. Segundo o portal Memória de Santos, de todos os feitos de Vicente, nenhum mobilizou tanto quanto sua luta pela faixa litorânea ameaçada. O site revela que foi ele quem propôs a transferência dos terrenos da orla — onde hoje estão os jardins — da União para o município, para que a prefeitura pudesse protegê-los com um projeto urbanístico.

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Em sua carta, o ‘defensor do litoral’ apelou diretamente ao presidente:

Interpreto perante V. Excia., Supremo Magistrado da Nação, um sentimento que está apaixonando toda a população santista. Paira sobre ela a ameaça de ser privada da maior das belezas de sua terra — da linda praia da Barra, joia doada pela natureza…

A brutalidade da especulação: “como por mãos de bárbaros”

Vicente de Carvalho foi direto ao ponto. Em sua carta, não poupou palavras:

“O tradicional logradouro público desapareceria fracionado, mutilado, despedaçado como por mãos de bárbaros, com proveito pecuniário de alguns indivíduos. E, sacrilegamente coalhada de construções particulares, a linda praia da Barra deixaria de existir, como dádiva mal empregada feita pela natureza a quem não a soube aproveitar.”

É uma descrição que, infelizmente, se encaixa perfeitamente em dezenas de praias brasileiras hoje devastadas pela especulação. Vicente enxergou o perigo cem anos antes de ele se consolidar.

“Os particulares cobiçam aquela joia para a despedaçar e entre si partilharem os fragmentos…”

“O interesse particular, e é ele que se empenha nessa obra sacrílega de destruição, abre lentamente como micróbio ativo e tenaz, caminhos subterrâneos por onde se infiltra mesmo em organismos resistentes.”

1902 o centro de Santos
O centro de Santos em 1902. Imagem, Revista Nove.

Vitória parcial: a orla transferida à prefeitura

O protesto surtiu efeito. Pouco tempo depois, o presidente Epitácio Pessoa transferiu à prefeitura de Santos o domínio sobre a Praia Brava, permitindo que o município planejasse sua proteção.

Vicente de Carvalho venceu aquela batalha. Mas cem anos depois, a guerra continua.

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Carta aberta de Vicente de Carvalho, o Poeta do Mar
Carta aberta de Vicente de Carvalho, o Poeta do Mar.

Hoje, a mesma ameaça: a PEC das Praias

O Mar Sem Fim se sente honrado em resgatar esse episódio histórico. Antes de nós, o Poeta do Mar já havia comprado essa briga — e, como fazemos sempre, salpicou seu texto com adjetivos pesados para denunciar o maior flagelo do litoral: a especulação imobiliária.

A luta de Vicente ecoa hoje, em meio à ameaça da PEC das Praias. A proposta, pronta para ser votada no Senado, pode permitir a privatização de áreas litorâneas que pertencem a todos os brasileiros.

Orla de santos nos anos 30
Orla de Santos nos anos 30. Imagem, Revista Nove.

“O Poeta do Mar não usava redes sociais, mas sua carta teve mais impacto que muitos protestos atuais.”

O visionário Vicente de Carvalho usou as palavras como arma. E venceu. Agora, cabe a nós.

O Mar Sem Fim conclama seus leitores a reagirem. Precisamos sensibilizar o poder público — ou veremos o restante do litoral brasileiro ser repartido, loteado, mutilado… “como por mãos de bárbaros”.

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Comentários

3 COMENTÁRIOS

  1. Linda e comovente reportagem. O problema é: quem tem sensibilidade para ler sobre a questão, para aderir à pauta ambiental, não é quem decide. As leis hoje no país são feitas todas em benefício próprio de quem as aprova!
    João Lara, onde vc andava? Senti sua falta estes últimos dias.

  2. Mas a Justiça Divina há de destruir com a força do mar ,cada prédio,casa ,seja lá o que for, que um ser ,”humano” de má indole, ambicioso, construir em cima de uma Maravilha que Deus nos deixou!

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