Leticia Carvalho, da ISA, conversa com o Mar Sem Fim
Leticia Carvalho, oceanógrafa especializada em hidroacústica e diplomata internacional, tem mais de 26 anos de experiência em política ambiental e desenvolvimento sustentável. Atualmente, lidera a divisão marinha e de água doce do Programa Ambiental da ONU, PNUMA, sediado em Nairóbi. Leticia teve papel fundamental na criação do quadro regulatório brasileiro para a exploração de petróleo e gás offshore e coordenou a distribuição de royalties. Com esse currículo ela venceu a eleição para secretária-geral da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) com 79 votos, superando o inglês Michael Lodge, que concorria pela terceira vez agora representando Kiribati, e que recebeu 34 votos.
A ISA é uma organização intergovernamental autônoma, criada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, para gerir os recursos minerais do fundo do mar. Embora faça parte do sistema da ONU, opera de forma independente, atendendo aos interesses de seus países membros. Leticia sabe qual será sua nova missão: “administrar um dos maiores bens comuns da Terra”, como afirmou. A partir de 2025, ela estará no centro das atenções lidando com um dos temas mais controversos dos oceanos: o iminente início da mineração submarina, que ganhou urgência com a transição energética global. O Mar Sem Fim teve a oportunidade de conversar com a nova secretária-geral.
A mineração submarina divide opiniões
Leticia enfrentará o complexo desafio de administrar os interesses conflitantes de grandes players mundiais. A mineração submarina tem um potencial estimado em mais de US$ 7,5 bilhões até 2026. Atualmente cerca de 30 empresas já estão licenciadas para explorar a rica zona Clarion-Clipperton, com o apoio de países como a China, que desejam iniciar a mineração.
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Pelo lado da mídia internacional dois titãs se pronunciaram. O New York Times pediu o fim da mineração submarina antes mesmo dela começar. Já o inglês Economist argumenta em editorial que a mineração em alto-mar é uma forma menos invasiva de obter os minerais necessários para uma economia verde.
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Enquanto isso, Gerard Barron, presidente da canadense Metals Company, uma das empresas mais interessadas afirma: “A realidade é que a transição de energia limpa não é possível sem extrair bilhões de toneladas de metal do planeta.”
A seguir, a entrevista com Leticia Carvalho
Comecei destacando que é quase impossível impor qualquer medida à poderosa indústria marítima global, devido à sua influência e lobby, apesar dos problemas ambientais causados por ela. Entre eles, a poluição do combustível de navios, a bioinvasão através da água de lastro e a poluição difusa pela água cinza. Mencionei o acidente nas Ilhas Maurício em 2020, quando um graneleiro encalhou em recifes prístinos por negligência, desencadeando um escândalo sobre o uso de combustível tóxico. Diante disso, questionei: como lidar com essas contradições?
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Parlamento norueguês vota pela mineração submarinaComo está a Guiana depois do boom do petróleo?Vida marinha enfrenta ameaça devido à remoção maciça de areiaLC: Você ilustrou bem o acidente de Maurício. Isto traz para o centro do debate o papel destas instituições, organizações reguladoras, gestoras de atividades que acontecem no oceano, e a fragilidade e vulnerabilidade, ou falta de capacidade delas em relação a um conjunto de indústrias que têm uma escala econômica muito grande, uma influência muito grande sobre os governos, e sobretudo uma dificuldade regulatória.
‘Áreas (de mineração) extremamente vulneráveis’
O oceano, sobretudo o alto-mar, áreas fora de jurisdição nacional são áreas extremamente vulneráveis pela falta de capacidade de fiscalização, e difíceis de fiscalizar pela imensidão. Organizações como a IMO ou ISA, a meu ver, são a resposta, mas elas não dão a resposta satisfatória. Elas precisam de melhorias, fortalecimento, mas são a alternativa.
‘Há usos, por exemplo, que nem sequer são percebidos e taxados. A colocação de cabos submarinos de comunicação por todos os oceanos, que permitem nos conectarmos uns com os outros numa fração de segundos, não importa a distância, é uma delas (atualmente há cerca de 500 cabos submarinos ligando continentes numa extensão de 750 mil milhas). E isto é um serviço prestado pelos oceanos e por enquanto não tem nenhuma agência cuidando disso. Isso mostra que somos altamente dependentes deste espaço.
‘Minhas esperanças são os oceanos no centro do debate mundial’
Também mencionei outra questão espinhosa da indústria marítima global: o crescente uso de ‘bandeiras de conveniência‘. Muitos armadores preferem registrar seus navios em países que adotam regras mais frouxas em relação a questões trabalhistas, ambientais e de verificação das condições de navegabilidade.
LC: A fragmentação regulatória em relação aos diversos assuntos afeitos, ou seja a governança dos oceanos, é um problema há longo tempo debatido em termos de política internacional. O dilema é a especialização que gera fragmentação. Você tem diferentes atividades, comércio, pesca, transportes, exploração mineral, perfuração de óleo e gás, tudo isso demanda um conjunto de expertises, daí vem o número de agências; gerando fragmentação no processo de governança no sentido de entender como tudo isso interage. Esta governança multissetorial dos oceanos tem sido motivo de debate há longo tempo. E até hoje acho que não conseguimos uma solução definitiva. Minhas esperanças se ancoram, depois de 30 neste trabalho, porque é a primeira vez que eu vejo uma grande possibilidade (de melhora da governança), em razão dos oceanos estarem no centro do debate mundial.
Além disso, hoje temos muito mais conhecimento sobre a dependência entre oceanos e continente do que há 30 anos. Isso muda o paradigma das regulações.
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‘A mineração é uma atividade disruptiva ao meio ambiente’
Passamos ao tema do momento: a eleição para secretário-geral da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA). Lembrei de uma declaração de Leticia antes de sua eleição: “A ISA deve facilitar a mineração em alto-mar — foi criada para isso. Mas, ao fazê-lo, precisa cumprir a promessa de não prejudicar o meio ambiente.” Aproveitei para perguntar se o código de mineração, cuja publicação já foi adiada várias vezes, estará finalmente pronto em 2025, conforme anunciado.
LC: Respondo como secretária-geral eleita. É minha obrigação entregar o código completamente desenvolvido, ou criar as condições para isso, uma vez que quem discute, debate, decide e conclui o código são os países membros. O secretário-geral tem obrigação de estabelecer o processo. Na reunião em que fui eleita não houve mudança de calendário, 2025 continua sendo a data.
Tenho que estabelecer o processo no qual o código possa ser terminado com a robustez necessária no sentido de oferecer as salvaguardas ambientais, e não prejudicar os ecossistemas. Então vem a questão que muitos colocam, de que não conhecemos suficientemente este espaço para começarmos a intervir de forma disruptiva. A mineração é uma atividade disruptiva do meio ambiente, não há como falar de outro jeito.
‘Temos que evitar o dano irreversível e cumulativo’
O que farei, é reunir todas as informações necessárias para que os estados-membros disponham das melhores condições possíveis, incluindo as evidências científicas para sua tomada de decisão, no sentido de evitar o dano irreversível, diria irreversível e cumulativo. Por que falo assim? Porque não existe o ‘não-dano’, algum dano haverá; e acho que um secretário-geral não pode mentir, em hipótese alguma, especialmente com meu conhecimento científico, de que haverá zero dano, não há esta possibilidade. Haverá algum tipo de comprometimento.
Temos que estabelecer parâmetros que garantam que uma pluma de sedimento utilizado no processo de mineração não possa navegar, ou não possa intoxicar, enfim, que não possa se espalhar e comprometer o ecossistema inteiro, e assim tornar o projeto compatível com a sustentabilidade.
‘Sustentabilidade é um processo que precisa de revisão eterna’
Quero deixar um frase bem forte sobre este tema. Sustentabilidade não é meu mestrado (ela tem mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Economia e Política na UNB). Na minha visão, sustentabilidade é um processo, e um processo que precisa de revisão eterna à luz da nova ciência, novos entrantes, novas expectativas.
Diante de uma resposta tão assertiva de alguém ciente de que está lidando com um “bem da humanidade” e claramente bem preparada para a difícil tarefa, perguntei se, independentemente das normas ambientais do novo código, elas seriam juridicamente vinculativas.
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LC: Elas são juridicamente vinculativas, mas com um aspecto a ser levado em consideração, elas dependem de um detalhamento; e este detalhamento pode não ser juridicamente vinculativo. Ele pode tomar forma, por exemplo, de orientações.
Mineração submarina pode valer US$ 7,5 bilhões até o final de 2026
Qual estratégia você pretende adotar para mediar uma questão tão complexa como esta? De um lado, o mercado global de mineração submarina tem um potencial de alcançar US$ 7,5 bilhões até o final de 2026, com 30 empresas já licenciadas para explorar a zona Clarion-Clipperton. Do outro lado, ambientalistas e mais de 700 especialistas oceânicos pedem o adiamento da mineração. Enquanto isso, países e empresas globais defendem uma moratória para avaliar melhor os impactos ambientais.
LC: Sem dúvida é o grande desafio de minha vida. Mas lembre-se, como secretária-geral meu papel não é tomar decisões. Meu papel é estabelecer o processo. Vejo um processo extremamente polarizado, com uma grande dificuldade de chegar ao centro, que seria o desejado consenso.
Moratória, pausa ou um atraso, como te disse, cabe ao conselho, órgão decisor; e à assembleia, órgão endossante das recomendações do conselho.
‘A transparência é minha grande bandeira’
LC: Um dos dramas da ISA é que o secretariado não tem encorajado, não tem investido na transparência de processos, tanto na gestão da ISA, como no relacionamento com os diferentes atores. Como trazer luz a este relacionamento para que ele não aconteça a portas fechadas, sem que a imprensa tenha acesso, ou os estados membros não se sintam apoiados com informações científicas?
Os estados membros não podem se sentir inseguros para tomar decisões. Eles também vão precisar acreditar nos resultados dos estudos de impacto ambiental, e na ciência que tem sido apresentada pelos contratantes. Por isso, a transparência é a minha grande bandeira. Veja, a ISA recebe dados científicos, mas ela não tem um sistema de manejo de informação. Então, nenhum jornalista, por exemplo, tem acesso aos dados. Estas são minhas plataformas para construir o consenso.
Cinco mil espécies encontradas na zona Clarion- Clipperton
Duas surpreendentes descobertas recentes complicam ainda mais o debate. A identificação de mais de 5.000 novas espécies, e a evidência da produção de ‘oxigênio negro’ na zona Clarion-Clipperton. As novidades demonstram a riqueza e a complexidade dos ecossistemas marinhos profundos. Com a pausa preventiva sendo vista como um apelo político por alguns membros da ISA, essas revelações podem levar a uma reconsideração das prioridades, buscando equilibrar a exploração econômica com a proteção ambiental.
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LC: Eu disse exatamente isso ao Mongabay. O tema não está na agenda da ISA, formulada pelos estados membros. É preciso ler este clamor por uma pausa ou moratória, especialmente quando é abraçado pelos países membros (França, entre outros), vis-a-vis o fato de que nenhum país membro colocou este tema na agenda. Alguns países como o Chile, Costa Rica, e outros, tentaram propor uma política ambiental geral para a ISA. Esta ação foi interpretada por alguns como uma tentativa de pautar o debate sobre a pausa ou moratória. O tema foi completamente bloqueado e não entrou na agenda da próxima reunião.
‘A ISA também é um órgão diplomático’
Isso significa que a primeira reunião que presidirei, em janeiro de 2025, ainda não terá este tema na pauta, ou qualquer gancho que permita a discussão. Mas veja, a ISA também é um órgão diplomático, e isso é uma negociação diplomática. O que acredito, baseada em minha experiência, é que os países que tabularam essa política ambiental vão trazê-la novamente, então seria o momento deste debate de extensão de um período maior onde a atividade da extração mineral não possa acontecer.
A ISA foi acusada de nepotismo, bullying, e contabilidade imprópria dentro da própria secretaria. O New York Times foi além. O jornal sugeriu ‘possíveis pagamentos para ajudar a garantir votos’ durante a eleição deste ano. E comentou: Estas são as travessuras de uma eleição corrupta em um país instável’ (A sede da ISA fica na Jamaica). O que você pretende fazer para mudar esta imagem?
LC: Tenho objetivos maiores, os tópicos substantivos da agenda, encontrar o balanço ideal à luz do conhecimento que temos. E a ISA é a única agência que prevê que os fundos marinhos pertencem à humanidade, e estão lá para benefício de toda humanidade, mesmo para os países que não são costeiros. Isso quer dizer que apropriação privada destes benefícios não deve prevalecer.
‘Minha prioridade é a governança da própria organização’
Mas depois deste processo de campanha e eleição, minha prioridade é a governança da própria organização. Já tentei me esquivar, em outras entrevistas, destes tópicos da corrupção, mau uso dos recursos, informação privilegiada, etc. A realidade é que o atual incumbente (referindo-se ao inglês que perdeu a eleição) não me ajudou. Ele não foi capaz de responder perguntas feitas em público durante a plenária, sobre gastos e recrutamento indevido, promoções não explicadas, viagens desnecessárias, etc. Eu terei que enfrentar isso, a governança da ISA é um dos principais problemas.
Acusações pesadas durante as eleições
O New York Times, ao comentar as eleições, disse que o embaixador de Kiribati teria oferecido um emprego a você em troca de sua desistência.
LC: Durante a campanha eu me ausentei do PNUMA, a partir de uma carta, tirei licença e enviei uma carta para o escritório de ética da ONU pedindo para me liberar porque eu iria partir para a campanha da ISA. Organizei este lado para evitar conflitos de interesse com minha atual função. Meu oponente, não, ele continuou sentado na cadeira de secretário-geral ao mesmo tempo em que fazia sua campanha.
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Como cidadão britânico ele não foi apoiado por seu país, mas foi abraçado por Kiribati. Durante a campanha, a estratégia do Itamaraty, já que o Brasil apresentou minha candidatura, foi a de conversar com diversos países Meu oponente fez o mesmo. Quando estive em Nova York, Michael Lodge também estava lá fazendo sua campanha. Aconteceu exatamente o que disse o New York Times.
O embaixador de Kiribati pediu uma reunião com o embaixador Antônio Danesi, representante do Brasil na ONU. Na hora da reunião estávamos eu, o embaixador e vários diplomatas. De Kiribati só apareceu o embaixador. A conversa se deu entre os dois embaixadores, embora eu estivesse presente, e a oferta foi feita ao embaixador para que eu retirasse minha candidatura em troca de uma vaga como diretora nível dois, que é o nível mais alto depois de secretário-geral, e disse ainda que tinha o endosso do Michael Lodge, ou seja, era o que ele havia pedido. Ou seja, ele me favoreceria num cargo não eletivo em troca do abandono de minha candidatura.
Educação Ambiental como parte do currículo escolar
Qual a sua opinião sobre a Educação Ambiental (com destaque para os oceanos) no Brasil como parte do currículo escolar.
LC: Absolutamente correto. Em inglês a gente fala ocean literature, em português seria educação marítima…ou educação para o mar. Mas concordo com você. Um país com nove mil quilômetros de costa se contarmos todas as reentrâncias, e mesmo assim me parece que a população está de costas para o mar, não é aceitável. A gente só vê a questão do lazer, a que chamamos de praia. De forma geral, acho que o Brasil não se enxerga como uma nação marítima. Compartilho esta visão com você.
A gente não tem só o território continental, o Brasil tem uma ZEE imensa (12º lugar entre as maiores ZEEs do mundo) e de certa forma isto não aparece para a população. O Brasil tem que abraçar o mar. Eu falaria com o MEC, o MMA, eu falaria com Lula, se puder encontrá-lo (sobre a importância de educação para os oceanos). Adoraria ajudar o governo e a população a ter uma melhor percepção da importância do mar.
Estou muito orgulhosa do Itamaraty nesta campanha que eles abraçaram e fizeram de forma tão competente, isso me deixou orgulhosíssima do Brasil. O país tem um capital político imenso e jamais utilizou-se de práticas de corrupção para angariar votos.
Finalmente, por que você escolheu se dedicar ao mar?
LC: Sou carioca de nascimento, o Rio de Janeiro sempre foi muito presente na minha vida. Quando eu achei que iria virar alguma coisa parecida com a garota de Ipanema, na sua versão negra, meus pais resolveram se mudar para Brasília, eles são servidores públicos e queriam ter um jardim. Eu disse não, não; para que um jardim se a gente tem a praia? Também me intrigava saber o papel destes mega fluxos de água, as correntes marinhas; me encanto com os processos massivos de migração de espécies, de trocas físico-químicas, da interação com a atmosfera. Fui uma oceanógrafa de campo, eu estive nos oceanos embarcada e pude aproveitar o máximo. Assim o mar nunca saiu de minha vida.
Que orgulho. Parabéns Leticia, e muita força por aí… Conte com os geógrafos também, o direito as águas internacionais e toda regulamentação pensando no bem da humanidade é dever de todos. Obrigado por nos representar!!! Parabéns MarSemFim por essa entrevista significativa, fizeram História!