❯❯ Acessar versão original

Crack nas comunidades pesqueiras litoral afora

Crack nas comunidades pesqueiras litoral afora

Uma das coisas perturbadoras durante a gravação da última série de documentários foi perceber a disseminação do crack nas comunidades pesqueiras. Mesmo as menores e mais ermas  estão  na mão do tráfico. Mais um dos sérios problemas que assolam o Brasil.

imagem de casa de caboclo com internet e crack: nas comunidades
A boa nova: a internet chegou. A má: na garupa veio o crack: nas comunidades

A boa nova: a internet chegou. A má: com ela veio o crack nas comunidades

A boa nova comparando, a primeira (2005 – 2007), com a terceira viagem (2014 – 2016 ), foi constatar a chegada da rede mundial de computadores. Bola dentro. Os nativos a merecem, tanto quanto os cidadãos das metrópoles.

Como demonstra a foto acima, em qualquer tipo de casa que se visite o contraste é chocante. Ao lado do arcaico, o moderno. O pai ainda cuida da coleta, o filho, do computador. Equação indigesta, que destroça as famílias nativas. Filhos evitam a profissão do pai, querem dinheiro pro tênis da moda.

Com o conflito, fica fácil a entrada das drogas

Tracuateua, litoral do Pará, recorro ao diário de bordo: Donda foi presidente da associação dos usuários, de 2008 até 2014. Ele é uma das lideranças mais respeitadas da Resex, por isso Paulo Henrique Oliveira, chefe da UC, me levou até ele. Fiquei estarrecido com o que ouvi.

Donda mora na comunidade de Nanã, distante 21 quilômetros de Tracuateua. Neste trajeto, diz ele, “há oito pontos de venda de crack”. E a polícia, perguntei, não age, não dá em cima? “Eles  passam lá pra pedir propina”, respondeu.

Custei para recuperar o fôlego. Essa gente simples, honesta e generosa, características dos nativos da costa, não merece tal desplante.

PUBLICIDADE

Donda, preocupado com a entrada do crack: nas comunidades

A desfaçatez não fica nisso

“Donda contou que quando acontecem furtos, desentendimentos, a polícia só aparece  se for paga pelos moradores. Essa é a triste sina destes credores da sociedade.”

O caso de Donda, agora usado, não é exceção. Vi a droga correndo solta no Amapá, em Jurerê Internacional, nas vilas do Lagamar, litoral sul de São Paulo; ou na badalada Pipa, sem falar na fama de Búzios…

Dura vida dos nativos da costa

Sempre comentamos a vida duríssima dos nativos, para os quais não há quase nenhuma política pública. A não ser, mais recentemente, a energia elétrica. Com ela, saltaram do lampião para redes sociais sem estágio em TVs, e deu no que deu.

Assim acontece em todo litoral do Brasil, exceção aos estados mais ricos, e as praias por eles frequentadas. Nestas, o pó puro sem enrolação da mistura, é oferta certa. A grande diferença, é que os esses têm ‘equipamento’ para lidar com o flagelo, aqueles, não.

‘Fronteiras Molhadas’, por onde entra o crack: nas comunidades (e outras drogas)

A Polícia Federal usa esta expressão ao designar nosso litoral. Recentemente o depauperamento tornou-se público.”O presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Distrito Federal, Flávio Werneck, afirmou que a situação é grave. Segundo ele, são apenas 150 policiais para o controle de nove mil quilômetros de fronteira marítima.”

Ou, fronteira molhada como dizem. 150 policiais para ‘tomar conta de dezenas de grandes portos, centenas de pequenos; vigiar os cerca de 400 km da foz do Amazonas, o litoral das grandes metrópoles como Fortaleza, Salvador, ou Santa Catarina.

Dezenas de aduanas, centenas de navios com milhares de contêineres, e mais. Apenas 150 pessoas. Pode? Pra completar, não temos a figura de uma …

Guarda costeira

O Brasil poderia amenizar o problema, e  mudar a fama de abandonado ao deus-dará, se no litoral tivéssemos uma bem aparelhada guarda costeira, a exemplo da US Coast Guard, e tantas outras em países minimamente civilizados.

PUBLICIDADE

Mas é sonhar alto demais para o país que se recusa a fazer reformas que lhe deem condições de investir nesta ‘periferia’, que é como tratam a Amazônia Azul. Aqui, quem ‘domina’ o espaço, mas só para questões de soberania e consequente ‘proteção’ de nossas riquezas, leia-se as Bacias de Santos, de Campos, do Espírito Santo, a Potiguar…e olhe lá, é a Marinha do Brasil, que mal tem combustível suficiente para manter a sofrível frota.

Marinha do Brasil e barcos de pesca em Unidades de Conservação

Não é incomum a MB fazer acordos com barcos pesqueiros porque, quase sem combustível, considera ‘caro’ levar e trocar pesquisadores, por exemplo. Então acertaram com pesqueiros de Natal, que levam e trazem os cientistas (para S. Pedro e S. Paulo), recebendo em troca permissão para pescarem em plena unidade de conservação de proteção integral!    

E nas Unidades de Conservação também não há barcos, porque o poder público não leva a sério a biodiversidade marinha e não dota as equipe de equipamentos básicos, além de pessoal qualificado em número adequado. A fiscalização essencial, inexiste.

Crimes no mar e crack nas comunidades

Os crimes comuns como assaltos a barcos  acontecem com frequência assustadora. É a lei do mais forte. A MB diz que não é com ela, mas com a Polícia Federal. Esta, com apenas 150 agentes enfurnados nos portos e aduanas, não tem a menor condição de cumprir suas tarefas.

E assim nosso litoral, ‘defendido’ na Constituição Federal, é condenado ao mais abjeto esquecimento ou, como insisto, ao deus-dará.

Crack nas comunidades nativas e prejuízos

Imagine a quantidade de contrabando que entra pelas ‘fronteiras molhadas’. Imagine o que o montante corresponderia em impostos, arrecadação, cofres públicos, menos corrupção; e veja que o investimento, seja em mais homens, seja numa guarda costeira, em pouco tempo se paga.

A extraordinária riqueza da vida marinha, e mineral, estaria garantida; a desgarrada terra sem lei, incorporada de fato.

PUBLICIDADE

Prova de descaso

Triste, é perceber a surdez do poder público. Prova cabal que os brasileiros deram as costas ao mar. No momento em que o mundo dá cada vez mais valor aos oceanos e sua saúde, no Brasil pescadores se matam, ou se mutilam, ao mergulharem com equipamentos rudimentares atrás das últimas lagostas servidas nos restaurantes do eixo Rio – São Paulo.

Porque o Ibama, a quem compete fiscalizar, tem apenas três barcos para fazê-lo nos mesmos 9 mil kms.

E no entanto, pouca gente sabe disso. Pior, desconhecem os serviços que os oceanos nos prestam, hoje ameaçados.

Rota marítima da cocaína

O que não fica pelo litoral em forma de pasta, é transportado via barcos de passeio, leia-se veleiros.  Cartéis sabem dos míseros 150 agentes pra ‘fronteira molhada’, aproveitam o descaso.

Transformam viagens  de lazer, em meio para traficar, e vários velejadores inocentes, como três brasileiros, pagam a conta. É nisso que dá o abandono do litoral.

Carlos Nobre

Se você acha que não tem parte no descaso ao espaço marítimo, esqueça, tem sim. Todos temos. Veja  o que tem a dizer  o cientista Carlos Nobre, membro brasileiro do IPCC:

 Nunca, em toda a história da vida na Terra, uma espécie alterou tanto o planeta, e em uma escala tão rápida, quanto a humanidade. Mudamos os cursos de rios, alteramos a composição química da atmosfera e dos oceanos, domesticamos plantas e animais a ponto de sermos considerados uma “força tectônica” no planeta. Esse impacto é tão forte que alguns cientistas propõem mudar a época geológica – deixaríamos o holoceno, começou com o fim da era do gelo, passaríamos ao antropoceno, a época dominada pelo homem

PUBLICIDADE

‘Nunca em toda história…uma espécie alterou tanto o planeta…’Faça sua parte. Comece já.

Pôr ordem na casa, é pedir demais?

Botar ordem na casa, acabar com as hediondas regalias (do funcionalismo público), fazer as reformas estruturais, cuidar de seu espaço e sua gente é pedir demais?

O descaso mancha o nome do país, afasta de nossa costa milhares de pequenos barcos de lazer (especialmente veleiros) que navegam pelo mundo, gerando riqueza e empregos.

E quando alguma estrela ousa por os pés aqui, acaba fuzilado, como aconteceu com Sir Peter Blake. Será que é sonhar o sonho impossível? Pra quem já foi assaltado quatro vezes a bordo do Mar Sem Fim, parece que sim.

Eu ainda me viro, mas me pergunto qual futuro terão os milhares de nativos da nossa costa.

Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza

Sair da versão mobile