Albatrozes mutilados: a crueldade da pesca industrial

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Albatrozes mutilados: a crueldade da pesca industrial industriais

Tem sido difícil encontrar boas notícias. Por mais que a gente procure, elas rareiam — tanto em terra quanto no mar. A de hoje é mais que triste. Beira o macabro. Pescadores que buscam atum, espadarte e dourado no Atlântico Sudoeste estão cortando os bicos de albatrozes ainda vivos para soltá-los dos anzóis. Em vez de retirar os anzóis com cuidado, cortam os bicos por pressa e comodismo. Depois jogam os pássaros mutilados de volta ao mar, onde morrem. É esse tipo de atitude que mina qualquer esperança na pesca industrial. Albatrozes com bicos cortados por pescadores — é isso que estamos vendo.

imagem de albatroz com o bico cortado
Não há o que dizer sobre esta cena. Seria impublicável se tentássemos. Imagem, W. Daudt.

O alerta inicial desta prática

O Mar Sem Fim conversou com Tatiana Neves, do Projeto Albatroz. Segundo ela, o primeiro alerta sobre essa prática veio de pesquisadores do Brasil, Argentina e Uruguai. Um deles é Dimas Gianuca, do Projeto Albatroz, com sede em Santos.

O grupo publicou o artigo Intentional killing and extensive aggressive handling of albatrosses and petrels at sea in the southwestern Atlantic Ocean (Matança intencional e manuseio agressivo de albatrozes e petréis no Oceano Atlântico Sudoeste, em tradução livre) na revista Biological Conservation.

Estudo realizado entre 1999 e 2019

O estudo analisou dados coletados entre 1999 e 2019 em águas do Brasil, Uruguai e Argentina. O texto aponta que as mutilações “foram provavelmente causadas pelo manejo agressivo de aves capturadas vivas, possivelmente na pesca brasileira com anzol e linha, ou na pesca com espinhel demersal e pelágico no Atlântico Sudoeste”.

Por falta de dados padronizados, os pesquisadores temem que o número real de mortes seja ainda maior. Segundo o Dr. Dimas Gianuca, a presença de aves mutiladas ao longo de duas décadas e em uma vasta área indica que a prática é recorrente e usada por diferentes embarcações.

Ele alerta ainda que a matança intencional e o tratamento violento das aves capturadas vivas seguem, em grande parte, fora dos registros. Isso porque, com observadores a bordo, essas ações costumam cessar.

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Frota de Itaipava: riqueza, excesso e riscos ambientais

Os pesquisadores apontam: “a morte intencional de aves marinhas para reduzir a predação na pesca de anzol e linha foi observada ao largo do Brasil.” Eles citam a chamada frota de Itaipava, no sul do Espírito Santo — cerca de 500 embarcações, mal reguladas, que usam diferentes tipos de anzóis no Atlântico Sudoeste.

No entanto, o estudo não afirma com certeza que essa frota seja a responsável pelos cortes de bicos.

Ainda assim, não importa quem comete esses atos. O processo é brutal, escatológico — tão cruel quanto o massacre anual de 70 a 100 milhões de tubarões, que têm as barbatanas arrancadas e são jogados de volta ao mar, ainda vivos, para morrer sangrando. Tudo isso para alimentar o ego de quem oferece sopa de barbatana, uma cartilagem sem gosto nem cheiro, como símbolo de status.

É esse o retrato da indústria mundial da pesca — violenta, predatória e, muitas vezes, absurda.

Crueldade no alto-mar: albatrozes mutilados por pescadores

Após o alerta dos pesquisadores, o tema ganhou repercussão. O site do Natural History Museum publicou uma matéria que serviu de base para este post.

O mais chocante: isso acontece no nosso quintal, o Atlântico Sul. Lá, embarcações industriais seguem atrás de espécies ameaçadas como o atum — cuja pesca já deveria estar proibida — além de espadartes e dourados. Para isso, usam espinheis com quilômetros de extensão.

A pesca com espinhel consiste em lançar uma linha principal, que pode ter até 60 km, equipada com milhares de anzóis — às vezes mais de 3 mil. As aves marinhas, atraídas pelas iscas, acabam se enganchando. Muitas vezes, ainda vivas, são mutiladas e lançadas de volta ao mar.

O Albatroz e o Petrel: conheça

Albatrozes e petréis são aves subantárticas. Vivem quase sempre em alto-mar, voltando às ilhas de reprodução a cada um ou dois anos. Lá reencontram o parceiro e cuidam de um único filhote até que ele possa voar.

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Ambas as espécies estão ameaçadas. Alimentam-se de lulas, sardinhas e krill. Os albatrozes são aves planadoras. Abrem suas enormes asas — com até 3,5 metros de envergadura, a maior entre as aves — e voam até 1.000 km por dia, aproveitando as correntes de vento. Sem vento, pousam no mar e esperam.

Só voltam à costa para se reproduzir. Põem um único ovo por ano. Existem 22 espécies conhecidas de albatrozes, sendo que 10 frequentam águas brasileiras. Quinze das 22 estão ameaçadas de extinção.

Albatrozes cruzam oceanos: os voos mais longos da natureza

É raro ver essas aves perto da costa. Elas percorrem grandes distâncias em busca de alimento e locais de reprodução. Algumas chegam a voar milhares de quilômetros por dia, aproveitando as correntes de vento. Por estarem no topo da cadeia alimentar, não têm predadores naturais. A queda em suas populações causa impacto direto na biodiversidade marinha.

A pesca incidental também afeta essas aves no Brasil. Foi por isso que nasceu o Projeto Albatroz, que há 30 anos promove educação ambiental entre pescadores. O objetivo é mudar o tipo de anzol e adotar novas estratégias que evitem a captura de aves. É um dos projetos de maior sucesso na costa brasileira — e vale a pena conhecer as soluções que aplicam.

Segundo dados do  Global Seabird Bycatch Assessment Workshop realizado em fevereiro de 2019, na África do Sul, entre 50 e 80 mil aves marinhas — incluindo albatrozes e petréis — morrem todos os anos vítimas da pesca incidental.

Imagem chocante expõe a matança de aves marinhas por frotas de pesca

Segundo o site do Natural History Museum, tudo começou com uma imagem postada nas redes sociais em 2015. Ela mostrava um albatroz vivo com a parte superior do bico cortada. A foto chocou e levou um grupo de pesquisadores a investigar.

Eles reuniram registros semelhantes e descobriram uma tendência alarmante no sudoeste do Atlântico. O Dr. Alex Bond, curador sênior de aves do museu, participou da investigação. Seu trabalho revelou que essa prática brutal é mais comum do que se imaginava — e vem ocorrendo há mais de 20 anos.

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Onde acontece a matança

Após o alerta da foto, os pesquisadores lançaram um apelo global por registros semelhantes. Segundo o Natural History Museum, as únicas respostas vieram do sudoeste do Atlântico — ao largo das costas do Brasil, Uruguai e Argentina.

imagem de albatroz morto em praia
Note o bico cortado. Imagem, Dimas Gianuca.

Os relatos incluíam tanto aves vivas, mutiladas no mar, quanto carcaças encontradas nas praias. Isso levanta preocupações sérias sobre a sobrevivência de albatrozes e petréis, tanto no curto quanto no longo prazo.

O Dr. Alex Bond afirmou: “Parece algo muito específico dessa região. Está claro que alguns pescadores simplesmente pegam uma lâmina, cortam o bico do pássaro para soltar o anzol mais rápido — e depois o jogam no mar.”

Tristão da Cunha, Geórgia do Sul e o berçário dos albatrozes

No Atlântico Sul, albatrozes e petréis nidificam em ilhas como Tristão da Cunha, Geórgia do Sul e outras subantárticas. Como voam grandes distâncias, é provável que as aves mutiladas pertençam aos mesmos grupos que se reproduzem nesses arquipélagos.

Segundo o Natural History Museum, “albatrozes e petréis têm enorme alcance. Costumam se reproduzir em ilhas do sul e ao longo de costas remotas. Viajam longas distâncias para se alimentar e podem viver mais de 60 anos.”

Isso agrava ainda mais a situação. Como explica o Dr. Alex Bond, “essas frotas atuam em alto-mar, longe da costa. Então, para que uma ave morta acabe numa praia, ela precisa ser levada por correntes por centenas de quilômetros. Ou seja, o que aparece nas praias pode ser apenas a ponta do iceberg.”

Os desatinos da indústria mundial da pesca

São inúmeros. E começam pelos subsídios obscenos — cerca de US$ 35 bilhões por ano. Precisa de prova maior de que a pesca, nesses moldes, é insustentável?

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Além disso, essas frotas usam tecnologia de ponta para localizar cardumes em qualquer parte do oceano. Os peixes não têm como escapar. Muitas dessas embarcações — especialmente as chinesas — ignoram fronteiras, invadem águas territoriais de outros países e até santuários marinhos, como já mostramos aqui.

Imagem de abertura: W. Daudt.

Fonte: https://www.nhm.ac.uk/discover/news/2020/november/fishermen-are-cutting-off-the-beaks-of-endangered-albatrosses.html?utm_source=fb-link-post-20201117-jd&utm_medium=social&utm_campaign=news&fbclid=IwAR2Am9I7ZMwXzzzOBpJSbkGBpN7WIbizJAVBTJK1SzBHHmJFgxUoQ2gk8LQ.

Desmatamento e consequências, Brasil é o quinto em emissões

Comentários

19 COMENTÁRIOS

  1. A ganancia, o egoísmo, a falta de sensibilidade, de fé, de humanismo, de solidariedade e, principalmente de VERGONHA, estão nos tornando seres desprezíveis. Não há de se ter esperança, nem sermos otimista, diante de um fato desse. O ser humano não deu certo!!!

  2. É impossível ver essas imagens e não compartilhar de sentimentos como revolta e vergonha do ser humano. Essa prática tem que acabar da forma mais punitiva para aqueles que a cometem, porém a fiscalização não é algo que podemos dizer ser eficiente. Não é só fiscalizar em terra sobre a documentação da embarcação ou se possui equipamentos de rastreio e mitigação, até porque, ter a bordo não significa que este será utilizado.
    Penso que o governo federal através da secretaria de pesca deveria investir mais no setor pesqueiro não da forma que vem sendo feito pelo atual secretário da pesca mas sim em profissionalizar os trabalhadores que muitas vezes são pessoas desprovidas de ensino e cultura, não tem sequer um curso profissionalizante onde o manejo de bycatch é priorizado como tem que ser. As soluções apresentadas por órgãos responsáveis, muitas vezes são ineficazes sem uma fiscalização a bordo e essa fiscalização poderia ser feita de maneira remota com a instalação de câmeras ou ainda, promover a profissão de observador de bordo nas frotas em que o bycatch é algo recorrente.
    Moro na cidade vizinha a Itaipava no sul do Espírito Santo, estou graduando em Engenharia de Pesca pelo Instituto Federal do Espírito Santo e por mais de dois anos fui estagiário de campo no referido terminal pesqueiro. Pude acompanhar parte da rotina destes pescadores e acreditem, não são esses monstros como você os descrevem no texto. São chefes de família em busca do seu sustento e precisam de atenção do governo. Generalizar é o principio do erro!
    Não estou aqui dizendo que nenhum deles cometeu tal atrocidade mas que aquele ou aqueles que o fizeram, que sejam punidos de forma severa. O que posso afirmar é que durante os anos de 2018/2019/2020, o número de embarcações que passaram a fazer uso de ao menos duas, das três medidas mitigadoras para a captura de albatrozes e petréis, que é o toriline e a largada noturna, vem aumentando consideravelmente com a conscientização levada até eles sobre a importância destes animais vivos para todo ecossistema marinho.

    Como área de atuação do Engenheiro de Pesca, quero destacar a importância da extensão pesqueira e a extensão universitária, É através dessas práticas que o pescador e o pesquisador entram em sinergia e a troca de conhecimentos é realizada de forma orgânica e novas práticas podem ser implantadas, reduzindo o dano causado pela pesca. O IFES campus Píuma, outra cidade vizinha a localidade de Itaipava, promove ações para que os alunos do curso de engenharia de pesca tenham contato com essa frota, que a muito tempo tem conflitos com órgãos ambientais e fiscalizadores, para que o conhecimento técnico adquirido em universidades possa chegar aos pescadores e também para que o conhecimento adquirido no mar por pescadores e mestres possam ser absorvidos por alunos e pesquisadores de campo e por fim o resultado disso ao longo dos anos, é uma frota mais consciente da importância de boas práticas, seja na captura de aves, tartarugas ou cetáceos… Parar a pesca é impossível! É uma atividade econômica que move a economia de algumas cidades e de milhares de pessoas. E ainda digo, toda pesca tem bycatch, ou seja, todas as artes de pesca causam algum tipo de dano ao meio e cabe a nós buscarmos alternativas para diminuir este impacto.
    Acho válido a importância da sua matéria em atenção a essa problemática que necessita de solução e, compartilho com você e demais leitores, a revolta com tais relatos de mutilações mas de fato, acusar toda uma frota apenas por ser uma das maiores do país, é um tanto injusto. Vale lembrar que Santos, Itajaí entre outras, praticam a mesma pescaria e como você mesmo disse na matéria, não há como afirmar quem realmente fez isso. Existem embarcações estrangeiras atuantes dentro da ZEE Brasileira com o mesmo tipo de espinhel, porém não respeitando em nada as normativas nacionais para isso.
    O peso dessa matéria, na minha opinião, pouco profissional, interfere numa relação de confiança estabelecida entre pesquisadores e pescadores, o que pode atrapalhar o trabalho de anos estabelecendo essa relação. Porém, chama a atenção pra algo que precisa ser mostrado ao público.

    • Prezado Bernardo: Obrigado pelo comentário. Apenas reforçando o que está no texto: “Mas também dizem (os pesquisadores citados) que não há como afirmar, categoricamente, que seria ela (a frota de Itaipava) a responsável pelos cortes nos bicos das aves.

  3. Steven Pinker, no seu livro O Novo iluminismo, apresenta inúmeras razões para sermos otimistas. Mas certas crueldades chegam a abater seriamente o ânimo e a esperança nessa espécie assim chamada sapiens! Sapiens? Ou Demens?

  4. Sempre que assisto ou leio um artigo qualquer, que seja baseado no sacrifício desumano, de nossos irmãos “irracionais” para quaisquer fins, que não sejam alimentares, fico p da vida, tendo uma quase certeza de que nosso criador está arrependido de nos ter criado à sua imagem e semelhança. Evidentemente que Deus criou os seres dos ares, terrestres, marinhos e, os deixou submissos à vontade e necessidades dessa criatura que se diz humana, mas que em algumas situações não passa de demônios travestidos. Pessoas como você João Lara Mesquita, são merecedoras das maiores honrarias que Deus, com certeza, vai lhe prestar quando fores prestar contas à Ele, no
    céu dos humanos e dos animais. Voltando ao uso e tratamento desumano de qualquer espécie, fiquei perplexo com as ações ignóbeis do povo asiático com seus ursos em cativeiro. São mantidos em jaulas apertadas que não conseguem se mexer, ficando a mercê dos idiotas atrasados culturalmente, que extraem sua bílis para efeitos ditos medicinais, Esses são os desprezíveis humanos; assassinos dos Petreis, Albatrozes,focas.golfinhos,pinguins,tubarões etc.

  5. As vezes nos perguntamos, o porque de tantas provações pelas quais a humanidade tem passado nas últimas décadas.
    Desastres, Guerras, Terremotos, Tsunamis, Endemias, Pandemia…, e etc. Mais quando nos deparamos com notícias como essa, fica mais fácil entender os nossos porquês.
    A humanidade caminha cada vez mais desumana. E é por isso, que dificilmente veremos dias melhores daqui em diante.

  6. João Lara Mesquita: parabéns pelo seu brado de alerta. Realmente quem faz o que está dito na notícia não merece sequer o que come. Isso tudo prova que o leão não é o bicho mais bravo. O mais bravo é uma besta bípede que tem o dom do raciocínio, e paralelamente a capacidade de cometer as mais brutais atrocidades contra a sua própria especie e contra a natureza. Muito bonita a sua iniciativa. Tenha um bom final de dia. Cuide-se.

    • Pois então compartilhe! Se temos alguma responsabilidade é a de por o dedo na ferida, denunciar, alertar para que mais pessoas saibam o que se passa e pressionem as autoridades, neste caso até mesmo o governado do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), e a população do Estado. Quem sabe a vergonha os faça parar.

    • Eu reforço, Rafael, quem faz isso não merece sequer o que come. E agradeço pelo protesto. Ou nós nos enchemos de coragem e botamos a boca no trombone, ou acontecerá o que bem disse o professor nestes mesmos comentários.

  7. Se após morrer, eu for para o céu, a primeira coisa que direi a Deus será: Tive vergonha de ser humano. Mas se eu for para o inferno, já saberei a razão.

    Ver essas imagens e saber do que é feito por essas frotas de pesca, dá náuseas, a gente sente até falta de ar só em pensar como o ser humano pode ser incrivelmente cruel e insensível.

    Quando em breve, tudo começar a morrer ao nosso redor, quando não houver mais outros animais nem rios nem florestas, nem peixes, quando tudo estiver poluído e envenenado, quando o próprio ar estiver nos asfixiando (o que já está acontecendo na Índia e na China) será que restará algum de nós para gritar aos céus “Senhor, o que é que fizemos em nossa loucura, em nossa cegueira de ganância? Vós nos destes uma jóia preciosa, uma obra de arte, maravilhosa e transbordante de milhões de formas de vida, e nós a devastamos, envenenamos e a tornamos árida, hostil e fervente, um deserto sem vida, tudo por nossa mesquinhez e arrogância??? Como pedir o Seu perdão, após crime tão monstruoso? Malditos sejamos, condenados estamos, nós mesmos criamos e nos jogamos em nosso próprio inferno!”

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