Viagem da Kika, arquipélago Ártico Canadense

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Viagem da Kika, arquipélago Ártico Canadense

Em meados de agosto o gelo começou a abrir do lado canadense. Estávamos em Siorapaluk na Groenlândia. Lá no extremo norte o Estreito de Smith separa, por algumas dezenas de quilômetros, a Ilha Ellesmere no Canadá da região de Avernasuaq na Groenlândia. Durante 5.000 anos diferentes grupos de inuits atravessaram a ponte de gelo sobre o Estreito de Smith, uma fronteira inexistente dentro de seu território ancestral de caça. Com a criação de Nunavut em 1999 o Canadá fechou a fronteira entre a Ilha Ellesmere e a Groenlândia e em 2001, com os atentados em Nova Iorque, a supervisão das fronteiras foi reforçada. Antes os inuits viajavam 80 km com seus trenós puxados por cachorros entre Qaanaaq (Groelândia) e Grise Fiord (Canadá) para visitar seus familiares, hoje precisam voar via Quebec percorrendo 15.500 km ida e volta. Vigésimo quinto relato da velejadora Kika Angeli, autora do texto e fotos, Arquipélago Ártico Canadense.

Carey Øer um grupo de ilhas inóspitas situadas entre a Groenlândia

Navegamos até Carey Øer, um grupo de ilhas inóspitas situadas entre a Groenlândia e o ártico canadense, local favorito de nidificação de mergulhões. Encontramos antigas ruinas inuits feitas com pedras e ossos de baleia. Descobertas por Baffin em 1616, poucos navegantes se aventuraram por estas ilhas que nunca foram bem mapeadas. Ficam situadas na chamada North Water, uma zona ao norte da Baía de Baffin que permanece sem gelar durante grande parte do ano devido a certas dinâmicas oceânicas. Anualmente uma embarcação oficial vai até lá para fazer a troca da bandeira dinamarquesa e das garrafas de bebida dentro de um baú ao pé do mastro.

familia inuit
Família inuit.

Aproximação da Ilha Ellesmere

A aproximação da Ilha Ellesmere não foi fácil pois havia muito gelo próximo à costa. Estávamos acompanhando as ice charts que informavam até 20% de gelo sobre o mar. O Antarctic tem um casco de alumínio espesso que permite a passagem nestas condições. Nos abrigamos em Coburg Island para dormir. Avistamos um urso polar em terra pela primeira vez, o grande predador está no topo da cadeia alimentar e não tem medo de ninguém.

urso polar
Urso polar.

Ellesmere é uma ilha imensa, a mais setentrional do arquipélago canadense. Nosso destino era Grise Fiord, único assentamento permanente da ilha, criado pelo governo canadense em 1953 para assegurar sua soberania no Alto Ártico durante a Guerra Fria. Para isso relocou 8 famílias inuit de uma região próxima a Quebec com a promessa de receberam casas e território de caça. No entanto chegando lá essas pessoas não encontraram nem casas nem animais que lhes eram familiares para sobrevivência. Muitos morreram.  Hoje a vila tem 150 habitantes e é um dos lugares habitados mais frios do mundo, com temperatura média anual de -16,5˚C.

Grise Fiord - entrada RCMP
Grise Fiord – entrada RCMP.

Grise Fiorde

O ambiente não é o mesmo que na Groenlândia, onde a vida da comunidade gira em torno do porto e as pessoas andam a pé. Os habitantes de Grise Fiorde se locomovem em veículos 4×4 no verão e em snowmobiles no inverno. A caça ainda é uma parte importante do estilo de vida. Fizemos a entrada do país na Royal Canadian Mounted Police (RCMP) diante do quadro da Rainha Elizabeth pendurado na parede. O oficial nos informou que éramos a primeira embarcação que ele fazia a entrada durante seus dois anos de serviço, o local fica bem fora de mão. A ancoragem não é abrigada do vento nem dos icebergs, após fortes rajadas decidimos entrar no fiorde propriamente dito.

Grise Fiord assentamento
Grise Fiord assentamento.

Contornamos Devon Island ao sul de Ellesmere e cruzamos com o veleiro francês Vagabond, de Eric Brossier, com cientistas a bordo. Entramos no Lancaster Sound, acesso oriental da Passagem Noroeste que une os Oceanos Atlântico e Pacífico. A passagem passou a ser navegável durante um curto espaço de tempo no final do verão devido ao desgelo. Ancoramos em Dundas Harbour, onde há um posto abandonado da RCMP e um assentamento deserto inuit. Uma rajada de vento catabático levou um dos nossos geradores eólicos.

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veleiro Vagabond
O veleiro Vagabond.

Parque Nacional Sirmilik

Atravessamos o Lancaster Sound e entramos no Parque Nacional Sirmilik, que compreende uma área de 22.200 km2 de proteção ambiental, da cultura inuit, além de desenvolvimento de pesquisas científicas do Ártico. Ancoramos em Tay Bay em Bylot Island, devido à intensa supervisão do parque a caça é controlada e a ilha é um refúgio para procriação de várias espécies. Vimos algumas pegadas de ursos polares, em terra levamos sempre um rifle.

Tay Bay, no arquipélago Ártico Canadense
Tay Bay.

Mais ao sul, já fora do parque, exploramos Tremblay Sound, o cenário é belíssimo e suas águas,  profundas. Avistamos um grupo de narvais com filhotes. Estas pequenas baleias tem um enorme dente que parece um unicórnio. Vimos à distância duas lanchas rápidas, depois descobrimos que estavam caçando narvais. Ancoramos no delta do rio Alpha onde encontramos um acampamento rustico porém bem equipado para receber turistas. Na praia havia  dois narvais mortos recentemente.

Tremblay Sound II
Tremblay Sound II.

Ancoramos numa baía bem abrigada próxima a Cape Hatt para dormir e seguimos pelo Eclipse Sound até Pond Inlet. Este trecho é normalmente o último a degelar no final de julho e o primeiro a gelar no início de outubro. A ancoragem em Pond Inlet é sem proteção do vento e o floe (grandes placas de gelo flutuante) circula durante todo o verão na correnteza permanente de 2 nós.

Pond Inlet
Pond Inlet.

Encontro com o veleiro brasileiro Fraternidade

Ao acordar no dia seguinte tivemos a bela surpresa ao ver o veleiro brasileiro Fraternidade, de Aleixo Belov, ancorado ao nosso lado. Eles acabavam de completar a Passagem Noroeste vindos do Alasca e trouxeram notícias dos nossos amigos Beto Pandiani e Igor Bely. A bordo do pequeno catamarã Igloo sem motor nem cabine, Beto e Igor haviam realizado a proeza de navegar a Passagem Noroeste e estavam em Arctic Bay.

Veleiro Fraternidade

Pond Inlet, maior comunidade ao norte de Baffin Island

Pond Inlet, ou Mittimatalik como sempre foi chamada pelos inuits, é a maior comunidade ao norte de Baffin Island e está situada na Cordilheira Ártica. Sua população, de 1.600 habitantes, é predominantemente inuit. Atrai centenas de visitantes todos os anos, que chegam de avião ou navio de cruzeiro. Tem boa infraestrutura de turismo e abastecimento.

Era início de setembro e precisávamos navegar rumo sul pois o verão terminava e o caminho de volta era longo. Havia previsão de mal tempo então decidimos nos abrigar a oeste de Pond Inlet. Ancoramos em frente a casa de uma numerosa família inuit. O marido trabalha como guia da região para empresas de turismo. Colhemos vários berries com os quais preparei uma torta apetitosa.

Glaciar Sirmilik em Bylot Island e a aurora boreal

Navegamos rumo leste pelo Eclipse Sound, entre montanhas nevadas e o espetacular visual do Glaciar Sirmilik em Bylot Island. Desembocamos na grande Baía de Baffin, nossa rota apontava para a Groenlândia pois a costa de Baffin Island tinha muito gelo. Na travessia haviam vários icebergs e as noites começarem a ficar mais longas. A mudança de estação acontece rapidamente nestas latitudes. Fizemos uma parada técnica na capital Nuuk e seguimos navegando rumo sul. Para nossa surpresa numa noite sem lua vimos a aurora boreal, uma coreografia maravilhosa que ocupava todo o céu, não há palavras para descrever semelhante fenômeno.

Seguimos navegando rumo sul ao longo da costa groenlandesa e fizemos uma última parada em Paamiut, um pequeno porto muito abrigado. Um grupo de garotos nos deu as boas vindas e nos mostrou a cidade. Visitamos a igreja, um pequeno museu e um atelier coletivo de artistas que esculpem em pedra sabão e chifre de caribú. Alguns blocos residenciais de arquitetura modernista envelheceram mal e haviam sido desocupados para serem demolidos.

Paamiut
Paamiut.

Zarpamos em 19 de setembro rumo à França com vento em popa. Percorremos 2.000 milhas em 13 dias, descrevendo um arco sobre o anticiclone dos Açores. Foi uma linda velejada com uma tripulação incrível, Georges, a capitã Anne Flore e eu.

Viagem da Kika, GROENLÂNDIA parte I

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