Organismos do mar e suas ações antivirais
A superfície dos oceanos corresponde a 70% da terrestre e abriga a maior biodiversidade do planeta. Muito maior do que a da floresta amazônica ou de outras florestas tropicais. Desde bactérias, fungos e cianobactérias até mamíferos, incluindo esponjas, corais, equinodermos como estrelas-do-mar, e também briozoários, tunicados, moluscos. Uma enorme diversidade de micro-organismos, invertebrados e vertebrados. Organismos do mar e suas ações antivirais, é um artigo especial para este site de Roberto G.S.Berlinck*.
E vamos lembrar que o Mar Sem Fim já mostrou que, graças a uma enzima isolada de um micróbio encontrado em fontes hidrotermais marinhas, foi possível o teste que é usado para diagnosticar o novo coronavírus e outras pandemias como AIDS e SARS.
Oxalá, outras produzam a cura.
“Esta enzima, que funciona a temperaturas elevadas (perto dos 65 graus Celsius) dada a sua origem num ambiente de elevada temperatura, é essencial para a replicação do material genético (ARN/ADN) do vírus numa amostra, para que depois este possa ser posteriormente detetado com biotecnologia adicional”, informou o www.publico.pt .
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Muitos invertebrados marinhos são sésseis, ou seja, vivem fixos no substrato marinho. Por isso, tiveram que adquirir diferentes formas de proteção contra predadores e agentes patogênicos. A produção e acúmulo de substâncias químicas é uma das formas de defesa das mais eficazes para os invertebrados marinhos. Essas substâncias muitas vezes são tóxicas, ou podem apresentar diferentes efeitos como hemólise (rompimento dos glóbulos vermelhos), neurotoxicidade, paralisia ou outras reações. São efeitos que chamamos de atividades biológicas.
Organismos do mar que têm atividades biológicas mostraram ter utilidade farmacêutica
Várias substâncias químicas de organismos do mar que têm atividades biológicas mostraram ter utilidade farmacêutica. Duas das primeiras substâncias descobertas de uma esponja demonstraram ter aplicação como anticancerígeno e como antiviral. Nos anos 1950 a espongouridina e a espongotimidina foram isoladas da esponja Tectitethya crypta, do Caribe. A partir da espongouridina e da espongotimidina foi desenvolvido o ARA-A, que inibe a síntese do DNA do vírus causador da Herpes. Esta descoberta foi o ponto de partida para a pesquisa de novos fármacos de organismos do mar.
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Desde daquele momento, pesquisadores do mundo todo se lançaram à busca de medicamentos derivados de substâncias químicas marinhas. Nos anos 1970 dois grandes programas de farmacologia marinha foram realizados, quase ao mesmo tempo.
Coleta no Caribe e Bahamas de organismos do mar
O já falecido Professor Kenneth L. Rinehart, da Universidade de Illinois no campus de Urbana-Champaign, realizou a primeira grande expedição de coleta ao Caribe e Bahamas, com um time de pesquisadores. Desta expedição foram descobertas muitas substâncias importantes, como as didemninas do tunicado Trididemnum solidum. As didemninas apresentaram atividade anticancerígena extremamente potente. Outras substâncias anticancerígenas descobertas foram as ecteinascidinas, de outro tunicado, Ecteinascidia turbinata.
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Entre os anos 1970 e 1980 a empresa Hofmann-La Roche criou na Austrália o Instituto de Pesquisas Roche de Farmacologia Marinha. Um dos pesquisadores que trabalharam naquele Instituto, que não existe mais, é o Professor Ronald Quinn da University of Queensland, um dos grandes especialistas de química-farmacológica marinha. O programa da Hofmann-La Roche descobriu muitas substâncias bioativas, mas nenhuma se tornou medicamento.
Organismos do mar e as atividades antivirais
Desde os anos 1970 a exploração dos oceanos para a descoberta de substâncias que possam vir a ser medicamentos aumentou muito. No mundo todo pesquisadores se dedicam à busca destas substâncias, empregando seus conhecimentos de química, biologia, farmacologia, microbiologia e biotecnologia. Dentre novas substâncias descobertas várias apresentam atividades antivirais.
Fungo inibe a proliferação do vírus H1N1
O fungo marinho Eurotium rubrum F33 produz em meio de cultivo a substância neoechinulina B, que inibe a proliferação do vírus H1N1 em células do tipo MDCK (células de rins de cães). Outra substância produzida por um fungo, o Aspergillus terreus SCSGAF0162, inibe a proliferação do vírus H1N1 do tipo A/WSN/33, que é mais resistente aos antivirais do que os vírus mais comuns.
O interessante de se buscar substâncias produzidas por fungos e bactérias em meio de cultivo é que, se tais substâncias forem de interesse médico e não apresentarem efeitos colaterais, podem ser produzidas em milhares de litros de cultivo. Vários antibióticos utilizados para tratar infecções são produzidos desta maneira.
Organismos do mar e a cura da AIDS
Outros antivirais de origem marinha incluem a tachybotrina D, produzida pelo fungo Stachybotrys chartarum MXH-X73, que inibe a proliferação do HIV-1, causador da síndrome de imunodeficiência adquirida, a AIDS.
Várias outras substâncias isoladas de organismos marinhos inibem a proliferação do vírus HIV-1. Por exemplo, a cianovirina-N, isolada de uma cianobactéria marinha, Nostoc ellipsosporum.
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As cianobactérias e os anticancerígenos
As cianobactérias são bactérias que realizam fotossíntese, como as plantas. São consideradas talvez os organismos mais antigos do planeta, tendo surgido há mais de 2 bilhões de anos. Muitas cianobactérias produzem substâncias bioativas extremamente potentes, como os anticancerígenos curacina A e as criptoficinas. Várias esponjas marinhas classificadas como Monanchora, Batzella e Crambe contém várias substâncias antivirais.
Mas, e no Brasil?
Por incrível que pareça, no Brasil a pesquisa de substâncias marinhas foi iniciada por pesquisadores belgas. O Professor Bernard Tursch da Universidade Livre de Bruxelas, falecido em 2019, foi o primeiro quem isolou substâncias químicas de pepinos-do-mar do Brasil, no final dos anos 1960. Um de seus alunos de doutorado, o Professor Alphonse Kelecom, resolveu também vir para o Brasil. E não voltou mais para a Bélgica.
Algas marinhas pardas, e atividades antivirais contra os vírus HIV-1, herpes e vírus que causa a dengue
O Professor Kelecom foi contratado pela empresa SARSA nos anos 1970, na qual desenvolveu suas primeiras pesquisas com esponjas marinhas no Brasil. Depois foi contratado pela Universidade Federal Fluminense, onde se encontra até hoje. O Professor Kelecom também dedicou-se ao estudo de algas marinhas do Brasil e formou diversos alunos que seguiram seus passos, como a Professora Valéria Laneuville Teixeira. A Professora Valéria Teixeira descobriu que várias substâncias de algas marinhas pardas apresentam atividades antivirais contra os vírus HIV-1, o vírus da HERPES e também do vírus que causa a dengue.
As drogas vindas de organismos marinhos no Brasil
No Brasil são comercializados o halaven (mesilato de eribulina), que é um medicamento para tratar câncer de mama, e o yondelis (trabectedina) para tratar câncer de ovário. Ambos são de origem marinha. O halaven foi desenvolvido a partir da halicondrina B, uma substância isolada da esponja Halichondria sp. do Japão.
Já o yondelis foi desenvolvido a partir da ecteinascidina 743, isolada da ascídia Ecteinascidia turbinata.
Mas, e contra o coronavírus que causa a COVID-19?
Existe alguma substância marinha que mata esse vírus?
Ainda não.
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Mas, o importante é que existem muitos grupos de pesquisa do mundo todo trabalhando arduamente para descobrir um medicamento antiviral eficaz contra a COVID-19. Inclusive pesquisadores brasileiros, como os do meu grupo, do Instituto de Química de São Carlos da USP. Atualmente estamos engajados em um projeto colaborativo com pesquisadores brasileiros e canadenses para a descoberta de compostos antivirais, a partir de micro e macro-organismos marinhos, como esponjas, ascídias, moluscos e briozoários.
Processo longo e caro, que necessita muito investimento
Muitos outros pesquisadores brasileiros estão participando da luta contra o coronavírus. Químicos, biólogos, médicos, virologistas, farmacólogos, biotecnólogos. Porém, a descoberta de um medicamento infelizmente nunca é rápida. Muitas vezes leva tempo. E, depois de descoberto, é necessário estudar se a substância não apresenta efeitos colaterais para o homem. É um processo longo e caro, que necessita muito investimento. Por isso, as indústrias farmacêuticas também trabalham ativamente para a descoberta de antivirais contra o coronavírus.
Ciência tem a tecnologia a seu favor
A grande vantagem é que hoje em dia a ciência tem a tecnologia a seu favor. Muitos aparelhos sofisticados foram desenvolvidos, que permitem a descoberta de medicamentos de maneira muito mais rápida e eficiente. Todo o conhecimento acumulado ao longo de centenas de anos serve de fundamento para se construir o conhecimento científico que resolveu inúmeros problemas, como a produção de alimentos e a melhoria da qualidade de vida.
Expectativa de vida e exploração racional de recursos naturais
Há 100 anos o tempo de vida médio das pessoas não passava de 50 anos. Hoje o tempo de vida médio da humanidade é de mais de 70 anos. Este aumento da expectativa de vida se deve à ciência, que proporcionou vários medicamentos para tratar muitas doenças, conhecimento sobre bons hábitos de vida, e a exploração racional de recursos naturais.
Oceanos ainda pouco conhecidos e explorados
Os oceanos ainda são muito pouco conhecidos e explorados. A biotecnologia marinha é uma ciência muito jovem. Aliada da química, da microbiologia e da biologia, a biotecnologia marinha deverá proporcionar a descoberta de muitas outras substâncias importantes para a humanidade e para a melhoria da qualidade de vida em geral.
Oceanos: maltratados, muito poluídos, muito contaminados
Porém, para isso é preciso cuidar muito bem dos oceanos, atualmente muito maltratados, muito poluídos, muito contaminados, com várias espécies marinhas morrendo, como os recifes de corais. O aquecimento global e a poluição são os dois maiores problemas que afetam os oceanos, e podem causar desequilíbrios ecológicos irreversíveis. A conservação dos oceanos é essencial para a manutenção da vida na Terra, e para a sua exploração racional e equilibrada.
E, quem sabe, para a descoberta de um antiviral eficaz contra o coronavírus que causa a COVID-19.
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O autor
Roberto G.S. Berlinck: Bacharel em Química pela Universidade Estadual de Campinas (1987), doutor em Ciências (Química Orgânica) pela Université Libre de Bruxelles (1992). Professor Doutor (1993-2001), Associado Livre Docente (2001-2010) e Titular (desde 2011) junto ao Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP).
Foi professor visitante no Departamento de Química e de Ciências da Terra e dos Oceanos da University of British Columbia (Vancouver, Canadá) entre 1997 e 1998, no Departamento de Química Medicinal da University of Utah (Salt Lake City) em 2002 e no Life Sciences Institute da University of Michigan (2012 e 2014-2515).
Atua como docente e pesquisador em química orgânica, e coordenador do Grupo de Química Orgânica de Sistemas Biológicos (QOSBio).
Imagem de abertura: http://www.microbiologia.ufrj.br/.
Fonte auxiliar: https://www.publico.pt/2020/04/24/ciencia/opiniao/papel-oceano-combate-covid19-1913456.
Essa é a Ciência que deve continuar sendo incentivada no país. Parabéns aos pesquisadores de uma vida inteira…como sugestão, interessante seria menção à descoberta do anti-herpético aciclovir, bem como menção às doenças negligenciadas (malária, Chagas, etc…)
Só um pensamento: um virus cujo combate está sendo feito no mundo inteiro, por pesquisa, não precisaria de mais investimnto público, aqui, do que outros que eventualmente estejam sendo menos pesquisados globalmente e aqui predominem
Parabéns!! Um assunto pertinente nos dias atuais, gostaria de saber se tem algum artigo cientifico relacionado ao assunto? ficaria muito grata em poder ler. obrigada.
Oi Rita, tudo bem?
Muito obrigado por seu comentário. Tem sim, uma revisão bibliográfica muito boa.
Aqui vai a referência: Vedanjali Gogineni, Raymond F. Schinazi, and Mark T. Hamann, Role of Marine Natural Products in the Genesis of Antiviral Agents, Chemical Reviews, 2015, vol. 115, pp. 9655−9706. DOI: 10.1021/cr4006318.
Tudo de bom,
Roberto Berlinck
Muito obrigada!!
Cerca de 99,5% dos compostos citados neste texto mostraram efeito biológico “in vitro” (no laboratório); nem sequer foram testados em ensaios clínicos em humanos. É exagerado pensar que se pretende no país a “descoberta de um antiviral eficaz contra o coronavírus que causa a COVID-19”? Já há estudos mais avançados e com resultados muito mais promissores no exterior sobre esse “alvo terapêutico”. Os esforços nacionais poderiam focar em outras doenças de origem viral que já afetaram e continuam causando danos ao país: dengue, zika, Chikungunya, febre amarela, gripe, hepatites, etc. Algum grupo nacional desenvolveu um fármaco para esses agentes infecciosos?
Caro Nelson,
Muito obrigado por seu comentário. Todos os esforços para se descobrir antivirais são válidos. Não considero ser exagerado que pesquisadores brasileiros sejam engajados na descoberta de antivirais contra o COVID-19, muito pelo contrário, tendo em vista a urgência dessa descoberta. Muitas outras pesquisas também são feitas para se descobrir antivirais contra as doenças que você menciona, o que também é importante. O necessário é se fazer pesquisas de boa qualidade, que possam servir de fundamentos para desenvolvimento atuais e futuros para o tratamento destas doenças.
Só um pensamento: um virus cujo combate está send feito no mundo inteiro, por pesquisa, não precisaria de mais investimnto público aqui do que outros que eventualmente estejam seno menos pesquisados globalmente e aqui predominem
Excelente matéria, parabéns ao autor e ao site: nada disso sabia, quem diria!
Caro Eduardo, fico contente que tenha gostado. Acompanhe o blog, pois em breve postaremos novos textos sobre a química dos seres marinhos.