Grávida e no comando: a incrível travessia de Mary Ann Patten
Quando você imagina o comandante de um navio há 150 ou 200 anos, o que lhe vem à cabeça? Eu penso num homem velho do mar. Alguém que trocou juventude por experiência. Pele curtida pelo sol e sal. Barba grisalha, cachimbo na boca. Mãos grossas, marcadas por cabos e timões. A história da exploração marítima está cheia de figuras assim. Homens quase lendários. Gente que desbravou o desconhecido e venceu desafios quase impossíveis. Mas hoje, vamos conhecer uma exceção. Mary Ann Brown Patten. Aos 19 anos — e grávida — ela assumiu o comando de um clipper em pleno Cabo Horn. Este texto é uma colaboração de Alessandro Comparini Basbaum, especial para o Mar Sem Fim.

Conheça uma líder extraordinária
Talvez por esperar sempre um comandante com aquele perfil clássico, desenvolvi um gosto especial por histórias de mulheres no comando. Não é pouca coisa se impor diante de marinheiros, cadetes ou até piratas de séculos passados.

Para isso, não bastava ter a bravura de um homem do mar. Era preciso algo a mais. Liderança. Coragem. E uma força fora do comum.
Por isso, uma das minhas histórias favoritas da tradição marítima tem como protagonista uma jovem de 19 anos. Grávida. Com o marido à beira da morte. E a poucos dias do temido Cabo Horn.
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Visão diferente e menos assustadora dos tubarões brancosJapão vende carne contaminada de baleias e golfinhosAfinal, Chile e Argentina são donos da Antártica?Foi ali, empurrada pelas circunstâncias — e guiada por coragem — que Mary Ann Brown Patten se tornou a primeira mulher a comandar um navio da marinha mercante americana.
Pequena biografia de nossa heroína
Mary Ann nasceu em Massachusetts, em 1837. Casou-se pouco antes de completar 16 anos com o jovem capitão Joshua Adams Patten.
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Em 1856, com apenas 19 anos e grávida de três meses, embarcou com o marido no Neptune’s Car — Carruagem de Netuno, em tradução livre. Partiram de Nova York rumo a São Francisco, contornando todo o continente americano.
Naquela época, não existia o Canal do Panamá. Tampouco havia ferrovias ligando a costa leste à costa oeste dos Estados Unidos. A única forma de cruzar o país era pelo mar — uma jornada épica.
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Não era a primeira viagem de Mary. Quase dois anos antes, Joshua havia comandado o Neptune’s Car por 17 meses em uma volta ao mundo. O roteiro passava por São Francisco, China e Londres.
O convite veio de última hora — apenas 12 horas antes da partida. O antigo capitão adoeceu, e Joshua foi chamado às pressas. Sem querer deixar a esposa para trás, pediu permissão para levá-la a bordo. E conseguiu. Assim, Mary viveu sua primeira grande aventura no mar.
O navio, um clipper de nome Neptune’s Car
O Neptune’s Car era conhecido pela velocidade. Tinha 66 metros de comprimento e pesava 1.617 toneladas. Era um típico clipper — navio à vela projetado para ser rápido, mesmo que isso significasse levar menos carga.
Na época, a propulsão a vapor começava a dominar os mares. Mas os clippers ainda reinavam em rotas longas e perigosas.
Eram tão velozes que viraram protagonistas de corridas informais. Navios que faziam o mesmo trajeto competiam entre si. Armadores usavam as travessias mais rápidas como propaganda. Já marinheiros e estivadores apostavam nos vencedores nas docas.
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Em 1º de julho de 1856, o Neptune’s Car zarpou de Nova York. Dois outros clippers — o Intrepid e o Romance of the Sea— seguiram a mesma rota rumo a São Francisco. A corrida era silenciosa, mas real. Cada comandante queria chegar primeiro.
Joshua estava atento. Sabia que sabotagens internas não eram raras. E logo descobriu que tinha razão.
O primeiro-imediato, William Keeler, foi flagrado dormindo no posto e mantendo as velas rizadas além do necessário — o que reduzia a velocidade do navio.
Joshua não hesitou. Destituiu Keeler e o trancou na cabine.
Tempestade, febre e silêncio no fim do mundo, o Cabo Horn
Poucos lugares na navegação despertam tanto temor quanto o Cabo Horn, no estreito de Drake. Isolado, gelado e violento, ele separa a América do Sul da Antártica.
Ali, os ventos sopram de oeste para leste sem encontrar barreiras. As ondas, impulsionadas por esse vento, podem dar a volta ao mundo. O swell é constante e as correntes são fortes.
As temperaturas caem abaixo de zero. Ondas de até 30 metros não são raras. E se alguém cai ao mar, resgatar é quase impossível — qualquer manobra exige o que o mar não permite: controle.
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É nesse cenário brutal que Joshua adoeceu. Entrou em coma à beira do Cabo Horn.

Navios que cruzam o Cabo Horn de leste para oeste, como o Neptune’s Car, enfrentam o pior cenário possível. Avançam contra os ventos, correntes e ondas predominantes. Foi o que aconteceu com o famoso navio Bounty, comandado por William Bligh, protagonista de um dos mais famosos motins da história naval.
Para piorar, os clippers foram projetados para velejar com o vento de alheta — soprando por trás, em leve ângulo. Navegar contra o vento, no contravento, era quase impossível com esse tipo de velame.
Joshua no leme: uma escolha arriscada
Com a saída de William, Joshua acumulou as funções de primeiro-imediato e capitão. As ondas varriam o convés sem trégua. Os suéteres de lã, encharcados de água salgada, nunca secavam. O navio balançava sem parar. A vida a bordo ficou ainda mais dura.
Após semanas nesse ritmo, sempre ao leme, sob frio e chuva constante, Joshua adoeceu. Contraiu tuberculose.
Mary fez o possível para aliviar o sofrimento do marido. Mas a febre e os delírios aumentaram. Nada detinha o avanço da doença. Joshua entrou em coma — em pleno Cabo Horn.

Aos 19 anos, Mary estava em um navio em águas congelantes e castigado por tempestades. Tinha seu capitão e parceiro em estado crítico, o primeiro-imediato preso, um segundo-imediato incapaz de ler cartas náuticas e, portanto, navegar, e estava em seu segundo trimestre de gravidez.
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Amotinados no Pacífico: a bordo da discórdia
Mary não era uma iniciante. Embora nunca tivesse ocupado um cargo formal, acompanhava de perto o trabalho do marido. Sabia ler, entendia de navegação e gostava de ajudar no comando do Neptune’s Car.
Com Joshua em coma e o primeiro-imediato trancado, ela era, na prática, a pessoa mais preparada a bordo. Mesmo assim, parte da tripulação não aceitou sua liderança. E o risco de motim crescia a cada dia.

Uma semana após Joshua adoecer, William escreveu a Mary alertando sobre os perigos da rota e pedindo para ser nomeado comandante. Ela recusou. Se Joshua não o considerava digno de ser imediato, ela não poderia promovê-lo a capitão.
O imediato deposto rejeitou a decisão e incitou um motim. Queria que o navio atracasse em Valparaíso, o que significaria perda de carga e tripulação. Mary reuniu todos na popa e pediu confiança para seguir até São Francisco. Conseguiu o apoio da tripulação — todos, menos William.
Milhas de coragem sob vela e dor
Grávida de cinco meses e no comando do navio, Mary virou navegadora e enfermeira. Com milhares de milhas pela frente, alternava entre o timão, as cartas náuticas e livros de medicina. Cuidava de Joshua sem descanso. Por 50 dias, não teve tempo nem para trocar de roupa. O esforço deu resultado: Joshua voltou a acordar, embora ainda fraco demais para sair da cama.
Com a tripulação reduzida, Mary permitiu que William voltasse parcialmente ao posto, sob promessa de bom comportamento. O Neptune’s Car avançava rápido pelo Pacífico Sul, deixando o cabo Horn para trás. Mas logo William voltou a trair a confiança. Mary notou que o navio desviava da rota e seguia com frequência para leste.
William seguia tentando levar o navio a Valparaíso. Nem mesmo a mudança da cama de Joshua, agora com vista para a bússola, o impediu. Foi a gota d’água: Mary o destituiu de vez. Com a chegada a águas mais quentes, a febre de Joshua piorou. Seu corpo queimava, e, à altura de Valparaíso, ele ficou cego. Mesmo diante de tantas adversidades, Mary mostrou-se uma comandante notável.
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No fim de outubro de 1857, quatro meses após a partida, o Neptune’s Car chegou a São Francisco. Apesar da gestação, da doença de Joshua, do motim e das tentativas de sabotagem, Mary aportou em segurança — e ainda à frente do Intrepid, um dos concorrentes. Recusou até a ajuda de um prático e levou o navio sozinha até o atracadouro.
Mulheres no comando de navios é algo muito raro. Porém, Mary não foi a única. Já contamos aqui a história da grega Laskarina Bouboulina que, durante a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829), comandou não só o próprio navio, bem como uma frota inteira ajudando na vitória de seu país.
Recepção de heroína
A façanha de Mary causou furor na imprensa. Ganhou mil dólares dos seguradores do Neptune’s Car por evitar uma tragédia, embora jornais exigissem ao menos cinco mil. Em pleno período vitoriano, Mary respondeu com modéstia: “apenas fiz meu dever de esposa”.
Ela e Joshua voltaram a Nova York no vapor George Law. Menos de um mês depois, Mary deu à luz. Joshua, porém, jamais se recuperou da tuberculose e morreu meses depois. Quatro anos mais tarde, a mesma doença tiraria a vida de Mary, pouco antes de completar 24 anos.
Ainda hoje, mesmo com tecnologia avançada e equipes de resgate, cruzar o estreito de Drake continua arriscado. No folclore náutico, quem consegue esse feito pode tatuar um full-rigged ship — navio com velas quadradas nos três mastros. Os que morrem na travessia são lembrados com a imagem de um albatroz, ave que voa tranquila sobre o mar revolto.
Realizar a passagem há quase duzentos anos já seria impressionante por si só. Fazê-lo sob as condições de Mary é algo para os livros de história.
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Que filme seria heim? Em vez de ficarem fazendo as mesmas refilmagens, esse seria sensacional
Que história fantástica, Parabens pela pesquisa e gratidão por compartilhar.
A tenacidade humana — contra tudo e contra todos — é a fagulha dos gigantes que arde no peito de heróis. E heroínas.
Adorei o texto, Ale. Kudos!
Viva Mary Ann! Bom artigo!