A mídia e o vício dos ‘paraísos’ do litoral
Para falar a verdade, a mídia não é a única obcecada pelos ‘paraísos’ do litoral; 100% da cadeia de turismo, tão presente nas redes sociais, também abusa da expressão, bem como o setor da construção civil no litoral. Acontece que o exagero destes setores, com apoio de parte da mídia, esconde muitas vezes a ação nefasta da especulação imobiliária. Enquanto isso, quase cem por cento dos empreendimentos se dizem ‘verdes’, ‘sustentáveis’, ‘planejados’, etc. Puro greenwashing, em outras palavras, mentira verde. Cada caso é um caso.
Menos adjetivo e mais verbo
A imprensa tem o dever de ser mais criteriosa, crítica e econômica no uso de sua influência. No caso do litoral, é essencial que a mídia abandone a fantasia e trate a questão com realismo em cada caso, em vez de praticamente adotar o bordão ‘paraíso’, toda vez que cita uma praia. Sim, ainda existem o que se considera como ‘paraíso’, no litoral brasileiro.
Mas, livres de ocupação, hoje apenas uma minoria mesmo que tenhamos 2095 praias em mais de 8000 Km de costa, segundo Kiko Nogueira, Guia Quatro Rodas Praias 2007, Editora Abril, São Paulo.
Este site não se cansa de chamar a atenção para a falência de nosso modelo de ocupação. O modelo de casas de segunda residência é injusto, socialmente, e insustentável, ambientalmente; promove e ameaça um dos povos tradicionais, reconhecidos, os nativos da costa, pescadores artesanais, caiçaras, catadores, etc.
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Declínio do berçário da baleia-franca e alerta aos atuais locais de avistagemCondomínio em falésia na Bahia com elevador panorâmicoLitoral Paulista Ganha Representação no Conselho Estadual de Mudanças ClimáticasAbaixo-assinado por saneamento em Ubatuba e denúncia ao MPFMas o pior é que herdamos um litoral semi-virgem desta gente que chegou antes de nós. Eles ficaram por lá por 450 anos e não mudaram a paisagem, muito menos degradaram os ecossistemas no ritmo maciço com que fazemos. Assim, de 1950 para cá, transfiguramos a zona costeira. Banalizamos sua paisagem, arrasamos parte alarmante de seus ecossistemas como mangues, restingas, dunas ou falésias; nada resiste às casas pé na areia.
É preciso repensar o modelo, para evitarmos a destruição das cerca de 20% a, no máximo, 25% destas praias ainda desocupadas. É uma questão ética, as futuras gerações têm direito de desfrutá-las.
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Os ‘paraísos tropicais’ da costa brasileira
No passado, digamos até 1950 início da ocupação da zona costeira pelo cara-pálida das metrópoles, sim, o litoral brasileiro era um imenso ‘paraíso tropical’. Cada região, Sul, Sudeste, Nordeste e Norte, com uma fisionomia diferente, e todas riquíssimas em beleza cênica.
Porém, como temos mostrado insistentemente, há muito que a maioria das praias disputa um concurso grotesco, egoísta, e sem nada que o justifique, concorrendo ao macabro prêmio por ‘mutilação, por mãos de bárbaros, com proveito pecuniário de alguns indivíduos’, como muito bem definiu a especulação imobiliária o ‘Poeta do Mar’, Vicente de Carvalho, ainda nos anos 1920.
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Litoral Paulista Ganha Representação no Conselho Estadual de Mudanças ClimáticasAbaixo-assinado por saneamento em Ubatuba e denúncia ao MPFCondomínio nos Lençóis Maranhenses é denunciado na UnescoVicente de Carvalho, que também foi jornalista contribuindo com A Província de São. Paulo, e prosseguindo quando o jornal mudou de nome para O Estado de S. Paulo, além de vários outros periódicos de Santos, não perdeu a referência mesmo mais de 100 anos atrás. Entre seu imenso legado está o famoso protesto contra a especulação: “os particulares cobiçam aquela joia (as praias) para a despedaçar e entre si partilharem os fragmentos…”
Alguma reportagem sobre a especulação e seus flagelos?
Agora diga, caro leitor, quando foi que você leu uma matéria sobre a especulação na dita grande mídia? E na TV, você se recorda de alguma? Ganha um doce quem responder. Em quase cem por cento das matérias sobre o litoral o adjetivo ‘paraíso’ está lá, como uma sentinela que se entorpeceu com ópio e dormiu em pé.
Os editores, que assim como a maioria da população dão mostras de considerar a zona costeira um simples espaço de lazer, prestam um imenso desserviço. Suponha, só por um minuto, que durante um ano inteiro a mídia chamasse a Amazônia atual de ‘paraíso verde’. O que aconteceria? Noventa por cento dos leitores, que são mais que nunca os formadores de opinião, considerariam que vai tudo muito bem com o bioma.
Assim, não protestariam, não denunciariam invasões, corte de árvores, ou incêndios, até que um dia acordaríamos sem a maior floresta tropical do mundo, savanizada para a eternidade. Por que a mídia tem senso crítico para a floresta, mas comete deliberada ‘barriga’ com o litoral?
O mal que faz a mídia e a postura ‘avestruz’
Se combinarmos a péssima qualidade da educação no País, a visão popular que reduz o litoral a um simples “espaço de lazer” e a enxurrada de desinformação que as redes sociais vomitam diariamente, o resultado é o cenário devastador que testemunhamos: a implacável destruição do litoral brasileiro. Uma paisagem magnífica, esculpida ao longo de eras, vem sendo sistematicamente mutilada, apesar de estar protegida por todas as modernas Constituições, desde 1934 até 1988. E, para piorar, quase não há protestos diante da apropriação indevida deste espaço, que pertence a todos os brasileiros.
A postura de “avestruz” da grande mídia, que frequentemente ignora esses problemas, ajuda a explicar a reeleição de alguns dos maiores responsáveis pela especulação no litoral paulista: prefeitos que atuam como facilitadores desse processo destrutivo. E não se engane, o problema está longe de ser exclusivo do litoral paulista. Acabo de voltar do Ceará, onde a situação é ainda mais alarmante. Por lá, um prefeito conhecido como o “maior dono de terras da região” declarou à Receita Federal um patrimônio impressionante de R$ 78 milhões, incluindo R$ 13 milhões em espécie guardados em casa!
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Alguns exemplos da miopia da mídia
Agora, quando a PEC das Praias ameaça transformar o litoral num imenso balneário de Camboriú, o portal UOL publicou, ‘Paraísos brasileiros: 10 destinos de praia imperdíveis no Nordeste’. Entre os destaques estão os superadensados Porto de Galinhas, PE, Maragogi, AL, Canoa Quebrada, CE, a, pasme, a praia do Pipa, RN, uma das primeiras do Nordeste a ser destruída pela especulação!
A especulação transfigurou Canoa Quebrada. O que antes era uma charmosa vila de pescadores, cercada por algumas das mais belas falésias da costa brasileira, deu lugar a uma cidade sem identidade, desconectada de suas raízes e do encanto que outrora definiu sua essência.
No Brasil, até novela já foi batizada de Paraíso Tropical, e Jorge Ben Jor imortalizou a ideia ao cantar que “moramos num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”. Tudo isso alimenta o imaginário coletivo de que vivemos em um paraíso. Mas, afinal, paraíso de quê?
Ou existe uma grande alienação, ou o meu conceito de paraíso está errado, o fato é que imprensa e eu, quando se trata de litoral, não nos entendemos. Veja um exemplo: Ndmais, Florianópolis, um paraíso turístico com mais de 100 praias! Justo Floripa, uma das capitais que mais destruiu, ou que permitiu a destruição de suas praias em troca de muita propina para ocupar áreas de mangue ou mesmo das praias.
Garopaba, paraíso ou inferno?
Estão aí a provar, a indecente Jurerê Internacional, a praia dos ingleses, ou ainda Campeche, e outras. Eu mesmo caí nesta laia. A primeira vez que fui para Garopaba estava ansioso para conhecer o tão falado ‘paraíso tropical’, quando cheguei vi um cortiço das classes média e alta. Mas para a mídia…
Enquanto isso, uma colunista da Folha de S. Paulo escreveu que ‘Trancoso hoje é conhecido por ser um destino turístico de super luxo e tem na sustentabilidade uma das suas maiores ferramentas de marketing’.
Sustentabilidade é outra palavra que precisa ser usada com parcimônia. Se Trancoso, mais uma vítima da especulação, é sustentável, então eu sou o Papai Noel. Não podemos seguir o exemplo de empresários que investem bilhões em lugares como Preá, CE, provocando um tsunami de especulação imobiliária — a mais agressiva que já presenciei —, enquanto insistem no discurso de que tudo é “planejado” e “sustentável”.
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O g1 também se rendeu ao vício. Publicou ‘O paraíso existe e o seu nome é litoral norte de São Paulo’. Parágrafo de abertura: ‘Estonteante! Esta pode ser uma boa definição para o litoral norte de São Paulo, onde as belíssimas São Sebastião, Caraguatatuba, Ilhabela e Ubatuba, exibem uma natureza vibrante em perfeita harmonia ao conforto, requinte, tranquilidade e badalação’.
Veja que o g1 destaca quatro municípios onde prefeitos corruptos comandam (ou fingem não ver) a especulação há anos. A cada seis meses, no máximo, algum desses algozes perde o cargo devido à má gestão. Mesmo assim, para a imprensa, o litoral norte continua sendo retratado como um ‘paraíso’!
‘Paraíso turístico’ de Jericoacoara
A BBC, ao contrário da mídia tupiniquim, parece manter a cabeça fria, e avaliar antes. Assim, a rede inglesa publicou ‘Como paraíso turístico de Jericoacoara virou líder em infrações ambientais?’
Arrisco-me a explicar: ao insistir no ‘paraíso’ de Jericoacoara por tanto tempo, todo mundo quis conhecer. Hoje, o local sofre com o pior tipo de turismo: o de massa. A vila é superadensada, suportando cinco ou seis vezes mais pessoas do que sua limitada infraestrutura pode comportar. A situação é tão crítica que, em breve, podem fechar a praia de Jericoacoara para recuperação, assim como fecharam Maya Bay, na Tailândia, depois de danos provocados pelo excesso de turistas.
Além disso, quem manda no pedaço é o Comando Vermelho, o C.V. O crime organizado sempre assume o vácuo deixado pelos governos. Assim, a facção domina o tráfico de drogas no ‘paraíso’, e não é muito dada a desafetos, mata.
Nada disso é novidade, mas para a mídia de Pindorama…
Arraial do Cabo, Armação dos Búzios e Cabo Frio
CNN Brasil, ‘De Quissamã a Maricá, a Costa do Sol é o paraíso turístico do Rio de Janeiro’. Agora, muita atenção ao parágrafo de abertura: ‘A Costa do Sol, região turística no Estado do Rio de Janeiro, se destaca cada dia mais como um destino cobiçado para quem procura natureza exuberante, esportes aquáticos, gastronomia, cultura local e oportunidade de negócios. Composta por 13 municípios – incluindo os famosos
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Arraial do Cabo, Armação dos Búzios e Cabo Frio – é o destino certo para visitantes de todas as idades e estilos’.
Pois saiba que é mentira. Arraial do Cabo é um horror, mais um local que foi um paraíso até 1950, mas que hoje parece mais uma sucursal do inferno.
O mesmo se pode dizer de Cabo Frio e Búzios, basta ver as fotos que a CNN parece que nunca viu.
A Folha deu outra derrapada ao publicar em 2017, Repleto de praias paradisíacas, Nordeste é eleito o melhor destino para férias em família.
Correio Brasiliense, O paraíso existe e é logo ali, no Rio Grande do Norte.’ ‘A cerca de 80km da capital potiguar, o município de Tibau do Sul causa fascinação com a charmosa e cosmopolita Praia da Pipa, além do Santuário Ecológico, com incríveis mirantes para o mar, e cenários de tirar o fôlego’.
A imprensa brasileira poderia aprender com a espanhola
O editor do El País, Andrés Rubio, compartilha da nossa indignação. Ele ganhou reconhecimento mundial ao publicar um livro contundente que denuncia como a especulação imobiliária e a feiura urbana resultante devastaram a beleza das cidades espanholas ao longo de incontáveis milhas de litoral. ‘Spain is ugly’: How uncontrolled construction has spoiled the landscape in Spain (Espanha é feia: como a construção descontrolada estragou a paisagem na Espanha), a obra expõe com clareza os danos irreversíveis causados pela falta de planejamento e pelo lucro a qualquer custo.
Está na hora da mídia abandonar o pernicioso vício. Prosseguir com a ilusão significa entregar o que resta de razoável “aos particulares que cobiçam aquela joia (as praias) para a despedaçar e entre si partilharem os fragmentos…”
E você, leitor, o que pensa sobre isso?
Balneário Camboriú. Tragédia anunciada.