Uma horrível história de terror a bordo de um veleiro
Naufrágios são acidentes que fazem parte do imaginário mesmo e, sobretudo, de quem não é do mar. Quem nunca se encantou com a história de Robinson Crusoe, talvez a mais famosa entre todas? Ou a história real que inspirou Herman Melville a escrever Moby Dick, a saga do baleeiro Essex afundado por um cachalote no Pacífico em 1820. Os tripulantes em botes vagaram à deriva por três meses. O que poderia ser sua salvação tornou-se uma sucursal do inferno. Entre os suplícios, foram obrigados a tirar a sorte e escolher quem seria comido primeiro pelos companheiros. Um desastre reconstituído pelo historiador Nathaniel Philbrick e já abordado por este site. Mas a história que provocou este post supera em tudo o que este escriba já leu, ou ouviu contar sobre histórias do mar, Uma horrível história de terror a bordo de um veleiro.
Uma horrível história de terror a bordo de um veleiro
O caso aconteceu nos anos 60, nas Bahamas, e envolveu a pequena garotinha Terry Jo Duperrault de apenas 11 anos de idade, num pesadelo difícil de ser superado. Terry Jo foi uma sobrevivente dos dramáticos dias finais do veleiro Bluebelle.
Um charter nas Bahamas
O pai de nossa heroína era um médico famoso em Wisconsin, o Dr. Arthur Duperrault. Ele queria levar a família numa viagem de férias pelas Bahamas. Para tanto, alugou o veleiro de dois mastros, Bluebelle com 60 pés. Dr. Arthur fazia um teste com aquele cruzeiro rápido. Se desse certo, e a família gostasse, os Duperrault poderiam tirar um ano sabático para velejar pelo mundo.
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Na serena manhã de 8 novembro de 1961, com as cinco pessoas a bordo o Bluebelle zarpou de Fort Lauderdale, Florida, para uma semana deliciosa em cruzeiro pelas ilhas da região.
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O cruzeiro a bordo do veleiro Bluebelle
Com muita expectativa e excitação a bordo, Harvey navegou para leste, em direção às ilhas de Bimini. Em seguida, levaria o Bluebelle para Sandy Point, uma vila idílica da ilha Ábaco.
Ali o grupo se esbaldou durante alguns dias. Mergulhavam, passeavam nas praias, divertiam-se. Foi então que a mulher do capitão, Mary Dene, se juntou ao grupo.
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Com a documentação em ordem, voltaram para bordo e jantaram. Seria a última refeição para a maioria. Eles comemoravam o sucesso da viagem. As crianças tinham adorado o passeio. Enquanto os adultos bebericavam uma taça de vinho no cockpit, Terry Jo enfurnou-se na cabine onde seus pais haviam armado uma pequena tenda onde dormiam as crianças. Estava para se encerrar o dia 12 de novembro.
Um petroleiro e um encontro com um náufrago
Em 13 de novembro de 1961 o petroleiro Gulf Lion navegava as águas de Bahamas, com destino a Porto Rico. Como o navio aproximava-se de terra seus oficiais estavam atentos no passadiço quando um deles viu algo no mar, não muito distante. O navio se dirigiu ao local. À medida que se aproximavam, perceberam tratar-se de um pequeno bote.
Uma pessoa precisa ter muita sorte para ser vista boiando em um bote à deriva. São incontáveis os casos de náufragos que sofreram meses nesta situação, cruzando com navios de tempos em tempos sem serem vistos, para o seu desespero. Mas o capitão Harvey teve sorte. Ele foi avistado e resgatado. Para surpresa do pessoal a bordo, junto com Harvey estava o cadáver de Renee Deperrault.
Comoção a bordo do Gulf Lion. O que aconteceu para encontrarem um náufrago numa balsa com o cadáver de uma criança?
O naufrágio do Bluebelle
Harvey contou da viagem que fizera com sua mulher e a família Duperrault. Estava tudo às mil maravilhas quando desabou uma forte tempestade. Depois de uma luta inglória contra os elementos, um mastro do Bleubelle veio abaixo durante uma rajada mais forte, enquanto o casco era sacudido de um lado para outro por fortes ondas. O mastro grande não resistiu, ao cair perfurou o casco do veleiro abrindo um rombo. Ato contínuo, um botijão de gás de cozinha explodiu provocando incêndio. A situação era caótica.
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Harvey sequer teve tempo de perceber o que acontecera aos tripulantes. Mas conseguiu jogar o bote salva-vida n’água, e agarrar um corpo que havia caído próximo durante aqueles minutos aterrorizantes de agonia. Quando se viu no meio do mar assistindo o Bluebelle afundar nas profundezas, percebeu que o corpo que resgatara estava sem vida.
Os oficiais do Gulf Lion se solidarizaram, acomodaram Harvey numa cabine, e o levaram, assim como o corpo sem vida de Renne, para a Flórida.
Mais um resgate no mar das Bahamas
Apesar de dramáticos, naufrágios de veleiros não são incomuns. E muitas vezes provocam a morte de seus tripulantes. Harvey tivera sorte, ao contrário da família Duperrault. Foi o que pensaram os oficiais do Gulf Lion que, ao menos, salvaram um deles.
Depois de entregar Harvey e o corpo de Renne para as autoridades da Flórida, seguiram viagem.
Quatro dias depois, outro navio adentrava aquelas águas. Era o cargueiro grego Captain Theo, que navegava pelo Canal Noroeste da Providência, nas Bahamas, vindo da Antuérpia, na Bélgica, com rumo a Houston, Texas.
Navegar num canal exige cautela e atenção. O segundo oficial Nicolaos Spaquidakis sondava o horizonte com um binóculo. De repente, observou um brilho no mar. Nicolaos ficou intrigado.
O cargueiro tinha ouvido pelo rádio a notícia do resgate do capitão Harvey e do naufrágio do seu barco. O segundo oficial chamou o comandante e apontou para a direção em que vira aquela faísca sair da lâmina d’água. Estavam prestes a testemunhar…
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Uma sinistra descoberta no mar
O cargueiro mudou seu rumou para o ponto avistado. Mas os oficiais não conseguiam distinguir quase nada, os reflexos do sol atrapalhavam sua visão. Era preciso chegar mais perto. O navio diminuiu a marcha e prosseguiu lenta e cuidadosamente.
Até que, para espanto de todos, aos poucos a silhueta de uma balsa de cortiça semi afundada começou a tomar forma. Mais um pouquinho e perceberam uma garota com o olhar assustado, quase desfalecida, a pele chamuscada pelo sol olhando em sua direção.
Foi uma correria a bordo. Eles não podiam se aproximar mais, sob pena de afundarem a balsa. Como resgatar aquela menina na iminência de cair no mar e se afogar?
No meio da algazarra o capitão ordenou que montassem uma jangada às pressas, usando tábuas e tambores de óleo vazios. Depois baixaram o equipamento até a água, quando finalmente um dos marinheiros resgatou a menina. Em seguida ela desmaiou.
Era o dia 16 de novembro de 1961, dia em que uma horrível história de terror a bordo de um veleiro começava a tomar corpo.
No Captain Theo, os oficiais gregos, com todo o cuidado possível, levaram o corpo miúdo para uma cabine. O cuidado era mais que necessário.
O corpo da criança mostrava os sinais de seu calvário chamuscado pelo sol, gravemente queimado. A menina, delirante, estava desidratada, seus lábios inchados sangravam.
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Mas ela estava viva.
As poucas informações que vieram à tona numa cabine do cargueiro Captain Theo
O capitão passou um pano úmido suavemente pelo rosto da menina. Aos poucos ela recobrou os sentidos. Mas estava fraca, com olhar assustado balbuciava coisas que ninguém entendia.
O capitão insistiu, perguntava de onde viera e como acabara numa mínima balsa sozinha no meio do oceano. Enquanto isso deram-lhe cuidadosamente alguns goles de água. A menina reagiu. Mais água para hidratá-la foi oferecida, depois, suco de laranja.
Lentamente a figura débil recobrou os sentidos. ‘Você estava a bordo de qual barco’, inquiriu o capitão. A pequena virou-se, fez um sinal com a mão apontando para baixo, para o mar, e sussurrou a palavra ‘Bluebelle’.
Mais tarde, recuperando-se depois de engolir mingau com muita dificuldade, contou que era de Green Bay, Wisconsin, onde ainda viviam os parentes.
Seu nome era Terry Jo Duperrault. Aliviado o capitão a deixou para avisar as autoridades marítimas do resgate bem-sucedido
Em seguida telegrafou para a Guarda Costeira em Miami: “Recolhemos uma garota loira, olhos castanhos, de uma pequena boia branca, sofrendo de insolação e choque. Nome Terry Jo Duperrault. Estava no Bluebelle.”
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Ele mal sabia que fizera uma dramática descoberta.
A repercussão do novo resgate
Enquanto o Captain Theo navegava para Miami, a notícia começava a repercutir. Na Flórida, o burburinho foi geral. A mídia já havia feito barulho depois do salvamento de Julian Harvey, com um cadáver ao seu lado alguns dias antes. A notícia de novo resgate espalhou-se rapidamente. Até chegar aos ouvidos do capitão do charter.
Um motel em Miami
Julian Harvey estava inseguro. A história que relatara em Miami tinha deixado a comunidade desconfiada. O dono do Bluebelle fora chamado e assegurou ao depor as perfeitas condições de seu veleiro recentemente revisado.
As autoridades também notaram contradições. Mas imaginavam que talvez o naufrágio, e a morte de toda uma família estivesse na raiz das lacunas da história de Harvey.
Tanto que ele fora liberado e ainda estava na cidade tentando retomar a vida. Mas, ao ouvir pelo rádio a descoberta de Terry Jo no meio do mar, se deu conta que a cortina estava caindo pela última vez.
Andando a esmo pensando o que fazer, de repente percebeu-se quase na porta de um motel. Entrou, pagou por um quarto e se trancou.
Suicídio num motel decadente
Na manhã seguinte a arrumadeira do motel Sandman esperou horas até finalmente entrar no quarto, mesmo sem ter visto o hóspede sair’ para fazer a arrumação. Ela percebeu que havia sangue no lençol, e que a porta do banheiro estava trancada.
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Saiu correndo e avisou o gerente. A polícia foi chamada, e encontrou Harvey morto no chão do banheiro. Tinha cortado os pulsos com uma navalha.
Uma horrível história de terror a bordo de um veleiro
Enquanto a foto de Terry Jo ganhava a capa de jornais e revistas, e o mundo se perguntava como aquela garotinha tinha sido encontrada sozinha numa balsa de cortiça, o quebra-cabeça começava a ser montado.
A reconstituição do caso
Assim que o cargueiro grego encostou no cais do porto, Terry Jo foi levada para o hospital em estado crítico. Mas a polícia reconstituiu o que acontecera a bordo do ketch alugado.
Terry passou 15 dias no hospital até se recuperar completamente.
E foi capaz de relembrar, com muita dificuldade o suplício por que passou. Em grandes linhas, eis o resumo: recuamos de volta ao dia 12 de novembro, depois do jantar, a bordo do Bluebelle.
Terry, que dormia em sua tenda, foi acordada por um barulho forte acima de sua cabine. Ao abrir a porta e subir para ver o que era, descobriu os corpos ensanguentados de sua mãe, Jean, e do irmão Brian, mortos na sala do veleiro.
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Confusa e assustada, subiu a escada que leva ao cockpit para descobrir o capitão Harvey com um cabo na mão, e um bote salva-vidas já na água. Sem entender o que se passava, perguntou se o barco estava afundando. Harvey disse que sim, e passou-lhe a ponta do cabo. Em seguida o capitão entrou na cabine.
A menina nem percebeu quando largou aquele cabo…
Perplexa, a menina nem percebeu quando largou aquele cabo, aterrorizada pela cena que vira no interior do veleiro; ela olhava em volta à procura do pai e da irmã Renee, sem saber que jamais iria reencontrá-los.
Em seguida, se recorda de ouvir um barulho de alguém pulando na água. Era Harvey, descobriu a polícia, que percebera que a menina soltara o cabo quando estava em choque.
Pulou na água e nadou até entrar no bote. Antes ele havia descido para abrir os registros do Bluebelle, deixar que a água entrasse enquanto se salvaria sozinho no bote salva-vidas.
Mas Terry era mais forte do que se pensava, a despeito de seus apenas 11 anos de vida. Esqueceu os horrores porque passou e, ao perceber a água tomando conta do Bluebelle, lembrou-se da pequena balsa de cortiça amarrada na parede do interior do barco.
Quatro dias à deriva numa balsa de cortiça
Foram quatro terríveis dias ao sabor dos humores do mar, numa balsa que mal se aguentava sozinha. O sol escaldante queimava-lhe a pele durante o dia, de noite o frio e a escuridão eram suas companhias. Mas ela não se recorda de sentir fome ou sede. Até que o destino a empurrou para o encontro com o cargueiro grego…
A menina foi enviada para a casa de seus tios em Green Bay onde passou a viver com os três primos. Naquela época a ‘receita’ para superar um trauma tão brutal era o silêncio. Terry teve seu nome mudado para Tere um ano depois. E prosseguiu em seus estudos, retraída e misteriosa até a idade adulta.
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No entreato, a polícia vasculhou a vida pregressa de Harvey. Descobriu um monte de barbaridades. Mary Dene era sua sexta esposa. Outras haviam morrido em situações mais que suspeitas.
E Harvey, ex-combatente também na guerra da Coreia, fora acusado por dois naufrágios propositais com objetivo de receber o dinheiro do seguro. Com uma das ex-mulheres acontecera a mesma coisa.
Uma morte misteriosa por trás de seu seguro de vida. Mas a história de terror a bordo de um veleiro demorou décadas para vir à tona de uma vez por todas.
Oprah Winfrey, em 1988, dá visibilidade nacional ao caso
Foram precisos mais de 20 anos para que sua história voltasse às manchetes. Em 1988 a famosa apresentadora comandou um programa em que estavam não só Terry Jo, como o comandante do cargueiro que a salvou. O mundo se deu conta da história tenebrosa que uma encruzilhada da vida havia lhe destinado.
Terry recordou sobre seus quatro dias vagando a esmo: “Eu não me sentia assustada. Eu era uma criança acostumada ao ar livre e adorava a água.” E, “eu não vi os assassinatos”, disse. “Mas eu vi a minha mãe o meu irmão mortos com sangue. Eu não vi o meu pai, a Sra. Harvey e a minha irmã.”
Terry construiu a sua carreira e vida em torno da água
De acordo com o site viral.laughingcolours.com, ‘Terry construiu a sua carreira, e vida, em torno da água’. Aquele ambiente que fora tão cruel a fascinava.
Logo ela estava empregada no Departamento de Recursos Naturais, trabalhando com pescarias. Mais tarde fez carreira em Recursos Hídricos e Regulamentação e Zoneamento de Água. Sentia que devia proteger a água, como fora protegida por ela em seus dias sozinha na balsa.
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“Para sempre fui atraída para a água depois dessa tragédia, em vez de repelida, como talvez se esperasse… eu me dediquei a proteger a água que havia me protegido quando pequena. A água é vida, e é calmante para mim estar na praia. Eu posso finalmente pensar claramente, relaxar e me sentir próxima da minha família perdida”.
Em 2010, esta formidável mulher havia superado o trauma. Tere Deperrault Fassbender, com auxílio de Richard Logan, pôs no papel a sua história no livro “Alone – Orphaned on the Ocean.”
O pesadelo de uma horrível história de terror a bordo de um veleiro ficou definitivamente para trás.
Como toda história nos traz uma lição, que tal nos inspirarmos no exemplo da extraordinária Tere Deperrault Fassbender e todos protegermos nossas águas especialmente, mas não apenas, as salgadas, tão maltratadas?
Bora lá?
Imagem de abertura: viral.laughingcolours.com/
Fontes: http://rumordaily.com/bluebelle-ocean-orphan-pr-t36/Db63/family-man; http://viral.laughingcolours.com/blog/What-Happened-In-1961-Was-Revealed-Decades-Later-Checkout-T/; http://funtobebad.blogspot.com/2016/10/young-survivor-rescued-from-sea-in-1961.html;
Uma história real trágica e terrível e um excelente artigo para ler, parabéns!
Boa tarde. Muito legal essa história. Atenciosamente. Carlos. SJCampos
Artigo muito bem escrito, de acordo com o nível intelectual de seu ilustre autor. Gosto do mar, mas tenho medo dele. Parabéns João.
João, matéria muito interessante e texto excelente, muito bem articulado, roteirizado, parece um filme, Parabéns!
Importante relato. Obrigado pelo papel que o Mar Sem Fim nos presta. Somos eternos devedores!
Escuto o barulho do mar quando leia esta belíssima coluna.
Excelente artigo de uma tragédia intrigante e inimaginável! Parabéns !
Nunca paro de me surpreender com esta excelente coluna do Mar sem Fim. Parabéns pelo maravilhoso trabalho.
Parabéns pela descrição, João! Seu relato foi sensacional
Excelente matéria!!!