Paraty e turismo, um casamento mórbido e insustentável

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Paraty e turismo, um casamento mórbido e insustentável

Eu já sabia que a infraestrutura do município, que é Patrimônio Mundial pela UNESCO, era um retrato da mediocridade de sucessivos prefeitos: menos de 6% de saneamento básico, por exemplo. Mas nunca imaginei que Paraty e turismo eram uma patologia doentia, esquizofrênica, e insustentável.

Paraty e turismo
Havia poucos turistas neste início de julho, eles estão previstos para chegar a partir do dia 15/07. Acervo MSF.

A penúltima vez que estive em Paraty eu tinha 62 anos e estava em plena forma. Aconteceu quando fiz a segunda série de documentários para a TV Cultura (2014 – 2016), visitando todas as cerca de 60 unidades de conservação federais do bioma marinho. Há várias na região, entre elas a APA do Cairuçu, em Paraty propriamente, e a ESEC de Tamoios, na baía de Angra dos Reis.

Após os dias de gravação e entrevistas, eu costumava levar o barco até defronte à cidade onde desembarcava para passear, comer em algum restaurante, e depois voltar para dormir. Não sei se por fazer sempre o mesmo trajeto, do cais para o restaurante, e de volta para o cais, não me perdia. E achava a cidade encantadora com seu lindo casario do século 18 pintado em cores vibrantes. Voltei à Paraty com 70 anos e sofrendo ‘disautonomia’.

Voltei com 70 anos e diagnosticado com  ‘disautonomia’

Fui diagnosticado com câncer em 2016. Recebi alta em 2018 depois de um transplante de medula. Desde então, enfrentei algumas doenças ‘comuns’ para um idoso que passou por quimioterapia e tomou altas doses de cortisona, entre elas o diagnóstico de disautonomia.

rua de Paraty

De acordo com o Oráculo do século 21, o Google,  ‘disautonomia é um transtorno provocado por alterações do sistema nervoso autônomo, quando um desequilíbrio afeta as funções involuntárias que ajuda a coordenar’.

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No meu caso isso significa que tenho dificuldade de andar, os movimentos não são naturais mas, de certo modo, bruscos. Além disso, de repente simplesmente perco o equilíbrio e me estatelo no chão.

O quarto destino brazuca mais procurado por turistas estrangeiros

Pela beleza do centro histórico, e a riqueza e exuberância do entorno com a Serra do Mar e seus mais belos picos emoldurando o cenário, tudo coberto por  Mata Atlântica, e um mar calmo e convidativo à frente do centro antigo, Paraty conquistou brasileiros e, sobretudo, estrangeiros.

Serra do Mar
A Serra do Mar vista de Paraty Mirim. Acervo MSF.

Entretanto, o município é um retrato do Brasil e seus irresponsáveis políticos. Talvez os 10 últimos prefeitos da cidade não sejam capazes de gerenciar nem mesmo um carrinho de pipocas. E isto ficou absolutamente claro para mim depois desta última visita entre os dias 1º e 5 de julho.

O despreparo para receber turistas é acintoso!

Como não estaria de barco, eu precisava alugar um carro para ir de um lado a outro, ao encontro dos caiçaras que sofrem um violento ataque especulativo, este foi o motivo de minha viagem: ver in loco e conversar com eles. Eu fora informado uns 10 dias atrás quando publiquei o post Caos em Paraty, disputa de terra opõe milionários a caiçaras.

Centro velho de Paraty e turistas

Pois bem, todas as cidades turísticas que conheço têm pelo menos uma rede nacional de empresas que alugam carros quase zero km. Paraty, não. A cidade tem uma locadora que fecha na hora do almoço, entre 12h e 13h30, e que não trabalha sábado depois das 12 horas.

Um carro com 76 mil km que demorava para pegar

Tudo bem, isso não é um grande problema. Mas foi incômodo lidar com o automóvel com 76 mil quilômetros que me foi alugado. De tão maltratado, pela manhã ao dar partida ficava gelado. O motor reagia com o nhec-nhec-nhec quando você pensava, vou ficar na mão…,mais uma tentativa e finalmente o motor pega. Mudar de marcha era uma dificuldade, do nada surgiam barulhos de ferro com ferro e as engrenagens rugiam selvagemente.

Quando cheguei de madrugada – fui de ônibus noturno para evitar estrada – me perguntaram na pousada em que no centro antigo, que não era nem das mais caras, nem das mais baratas, a que horas queria meu café da manhã, se às 8h00 ou na turma das 9h00.Casario de Paraty

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Como eram 6h30, e estava com fome optei pelo primeiro turno. Fui dormir. Acordei às 9h00. Desci. Meu lugar já estava na mesa com comidas e bebidas colocadas uma hora antes. Não precisei experimentar. Uma atendente passou por mim e sapecou: tá tudo frio, o senhor demorou…e seguiu seu caminho sem dar mais os ares.

Também decidi experimentar um restaurante a quilo, há vários na avenida principal que leva ao centro histórico. Eu queria saber como os menos privilegiados se viravam na cidade. A comida era deliciosa, do tipo caseiro com preço bom e ofertas variadas. Porém, quando fui ao banheiro a casa caiu: havia uma poça enorme no chão exalando forte cheiro de urina que me deixou enjoado.

Comecei a ficar assustado. Seria possível este tratamento numa cidade que vive do turismo? Descobri que o despreparo era muito maior.

Paraty não tem Uber, táxis funcionam quando querem e as ruas não têm placas

Na pousada a atendente me deu um mapa do centro antigo, antes marcou um ‘X’ no local onde estávamos e eu que me virasse dali em diante. Quando saía para almoçar e jantar era um suplício. Já me acostumei a andar com disautonomia por locais minimamente planos. Mas caminhar por cima daquelas pedras era um exercício de equilibrismo.

condominio meia boca
A classe média alta, e os ricos, ficam trancados em condomínios em cima dos morros, enquanto os podres de ricos preferem Laranjeiras.

Tinha que ir passo a passo, devagar, apoiando ora nas paredes das casas, ora nos postes. Até que num momento longe de um muro e um poste, lá fui eu para o chão. Felizmente pessoas em volta me ajudaram a levantar.

rua de Paraty e poça d'água

Era compicado voltar para a pousada. Para quem não está acostumado, aquelas ruas são todas iguais com os mesmos tipos de sobrados, tudo quase idêntico. Apesar de ter o mapa na mão nunca sabia onde estava porque, descobri agora, as ruas não têm placas.

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Além disso, a numeração dos imóveis parece obra de bêbado. Você está defronte ao Nº 4, anda 20 metros, e chega no Nº 315. Mais um pouco, a numeração retrocede e desce para o Nº 115, e segue assim, ilógica.

Táxi na volta: mais um desespero

Meu ônibus sairia às 23h10. Quando deu 22h, comecei a procurar táxi. A atendente da locadora tinha me passado um número. Liguei. Nada de atender.

Fiquei nervoso. Insisti. Não tinha outra opção.

Finalmente, alguém  atendeu só para dizer que não poderia me levar. Implorei. Expliquei que não podia perder o ônibus. Apelei mesmo.

Ele disse que ligaria para outros motoristas e me passaria os contatos. Pouco depois, chegou o primeiro via zap. Liguei. O sujeito estava dormindo. Bocejou ao dizer não.

Tornei a ligar para o primeiro. Relatei e pedi ajuda novamente. O homem repetiu o processo.  O tempo voava. Já eram 22h45. Eu grudado no celular, ansioso. Veio um novo contato. Liguei. Dessa vez o motorista poderia me atender, ufa!

Expliquei onde eu estava: numa praça em frente à igreja de Santa Rita. E veio mais uma surpresa. O cidadão pediu que eu fotografasse e mandasse a foto.

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Não sei como… mas cheguei em São Paulo.

O que fazem os prefeitos desta cidade além de mentir e se aproveitarem do cargo em benefício próprio?

Comecei a me perguntar o que fazem os alcaides, além de incentivar a especulação imobiliária, superfaturar contratos e torrar dinheiro público. E isso numa cidade que vive do turismo, com fama internacional.

E o que dizer dos nove vereadores que custam uma fortuna por ano, e que  sequer lembram-se de que as ruas mais visitadas não têm uma mísera placa? A maioria destes políticos é formada por uma gangue de sangue-sugas imorais, nada mais que isso.

Mas não são apenas eles os excêntricos. Para conseguir me situar na volta à pousada, entrei em algumas lojas e bares e indaguei o nome da rua. Passei duas vezes pela mesma situação: um disse que não sabia, e outros dois deram nomes diferentes para a mesma via. Fiquei pasmo. Como pode?

ruca de Paraty
Se maré alta até que parece que vai tudo bem…

Decidi não perguntar mais. Um garoto me salvou: “Tio, você não tem o Google Maps?” Lembrei que tinha. A partir daí, só andei  grudado no celular, tentando achar o caminho de volta pra casa.

Ruim era desviar da maré alta. Ela invade as ruas perto do mar. Como Paraty não tem saneamento básico a água entra nas fossas e levanta as fezes acumuladas. O fedor é insuportável.

A praia de Paraty Mirim exala fedor de fezes humanas

Quando sentia o cheiro dava meia-volta mesmo que o Google Maps indicasse o contrário. Senti o mesmo cheiro insuportável na praia de Paraty Mirim, apesar da cidade estar vazia. Era puro esgoto!

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Irritado, me peguei pensando: como é possível que tantos ricos e ‘famosos’, que frequentam ou têm imóvel ali, jamais tenham denunciado uma situação tão absurda, sem sentido — ou será que eu estava sonhando?

Que ninguém se levante contra a especulação que mata e expulsa os caiçaras, vá lá. Em 2016, capangas da Trindade Desenvolvimento Territorial (TDT) assassinaram o jovem Jaison Caíque Sampaio, de apenas 23 anos, dentro da própria casa, em Trindade. E os criminosos seguem à solta, vagando impunes pelas ruas da cidade.

Mas… e o resto?

Aliás, sejamos justos: parte da culpa também recai sobre a imprensa — omissa. Quando soube do assassinato, procurei notícias. Vasculhei jornais, revistas, sites. Só encontrei uma matéria publicada pelo espanhol El País.

Amyr Klink, um príncipe da casa real, Marcel Telles, Tutinha, famílias Marinho, Setúbal e Villela, Nanda Costa, Sandra Foz…

Enquanto andava por aquele caos urbano eu pensava nessas figuras públicas. Gente com prestígio, influência e presença constante em Paraty. Por que ninguém nunca denunciou o descalabro por que passa a cidade, a inação de variados prefeitos?

O famoso navegador, por exemplo, é um dos mais conhecidos. Dono da praia de Jurumirim, da ilha da Bexiga e de uma marina com mais de 300 barcos. Está sempre na TV, nos programas de maior audiência. Mas nunca disse uma palavra sobre o que acontece em Paraty. Por quê?

Os caiçaras não o perdoam. Reclamam da omissão diante da especulação imobiliária e do bloqueio à ilha da Bexiga.

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Um príncipe da família real de Pindorama

E o que dizer do príncipe Orléans e Bragança? Paraty é tão fora da curva que até tem um “príncipe” da família real caminhando por suas ruas.

Ele vive dando festas em seu sobrado colonial. Mas nunca — nunca — ouvi uma crítica aos políticos da cidade, dos maus tratos, da falta de saneamento, etc. Jamais um comentário sobre o caos que só deprecia Paraty.

Por quê? Como ignorar o esgoto nas ruas, o abandono dos caiçaras, a especulação selvagem?

sobrado em Paraty

E os donos da Globo? Ou o proprietário de uma rádio em São Paulo, sempre envolvido em polêmicas e inventor do jabá, que ficou milionário? Ou ainda o investidor bilionário, ex-dono de uma casa no Condomínio Laranjeiras onde os imóveis custam de 5 a 41 milhões de reais?

Sobre o controverso Condomínio Laranjeiras, que tem a cara-de-pau de revistar qualquer um que venha da praia do Sono e atravesse o oásis milionário para ir a Paraty, vale ler a matéria da revista Piauí que desvenda este suprassumo da escatológica divisão de renda do País.

Meu Deus do céu… será que essa turma é tão egoísta que não sai da própria bolha nem para denunciar os boçais que assumem a prefeitura e prejudicam, ano após ano, a cidade que eles tanto parecem amar?

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Os bairros da periferia, uma sucursal do inferno

Meu interesse sempre foi a integridade do litoral — e a vida dos caiçaras que moram na orla há gerações. Por isso, tomei coragem e fui conhecer os bairros periféricos.

É pra lá que empurram os caiçaras. Uns vendem suas posses por merreca. Outros simplesmente perdem tudo para especuladores como Gibaril Tannus Notari.

Gatos em postes de Paraty
Isso é o que mais se vê nos bairros periféricos.

Repugnância

Passei a nutrir repugnância pelos prefeitos. Irresponsáveis, imorais, e desonestos, só assim para justificar o que vi, fotografei e filmei.

Ano após ano, pioram o nível de vida da população, apesar do turismo crescer sem parar. A cidade recebe de 250 a 350 mil turistas por temporada. Mesmo assim, tudo degenera para quem mora lá.

Rua da periferia
Uma das melhores ruas da periferia que visitei.

Como pode o turismo gerar tantas divisas, e o município continuar inchando as periferias mais miseráveis? Dá medo andar por lá. O crime organizado domina. PCC, Comando Vermelho e afins.

As ruas estão tomadas por casebres paupérrimos, gatos por todos os lados, lixo no chão. Um cenário desesperador, como mostra o filme.

Essa viagem me revoltou. Passei a sentir asco dos últimos prefeitos de Paraty, e da maioria dos vereadores, morcegos que ganham a vida sugando o sangue alheio. De acordo com o site da Câmara de Vereadores, eis os atuais.

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Os (ir) responsáveis políticos de Paraty hoje

Vereadores de Paraty

E, ao mesmo tempo, sinto profundo desprezo pelos ricos, famosos e influentes que têm imóveis ou frequentam a cidade.

Prefeito e vice-prefeito de Paraty
À esquerda, Zezé Porto o prefeito; à direita, Lulu, o vice. E, segundo a Folha do Interior, em matéria de 25/11/2025, o Ministério Público Eleitoral (MPE) protocolou uma denúncia que pode levar à cassação do prefeito eleito de Paraty, José Carlos Porto Neto (Zezé Porto), e de seu vice, Luiz Cláudio de Alcântara (Lulu), além de quatro vereadores envolvidos no processo. A ação, apresentada no último dia 19, aponta abuso de poder político e irregularidades em uma votação da Câmara Municipal para reverter a rejeição das contas de gestão de Zezé Porto, referente ao ano de 2012, e que daria sua inelegibilidade para a disputa da prefeitura neste ano, pois já existiam outras duas contas reprovadas.

Conheça a periferia de Paraty e não se revolte se for capaz

O escândalo da especulação

Antes de encerrar, preciso dizer: fui a Paraty para ver de perto o que está acontecendo com o ataque especulativo. Queria ouvir as famílias caiçaras que vivem há séculos no lugar e agora sofrem ameaça de despejo.

O lado bom é que o post que publiquei no Instagram teve resposta imediata. Já passou de 244.3 mil visualizações até a data em que escrevo este post, e os compartilhamentos não param. Foi esse barulho que ampliou o escândalo até o ponto em que a AGU requereu a suspensão do leilão. Assim, não restou ao  juiz Dr. Fernando Antonio de Souza e Silva suspender, por ora, os leilões do espólio do português. Um documento comprado ainda na época da ditadura Vargas.

No meio dessa história, descobri outro escândalo envolvendo a prefeitura de Paraty e um ministro do STF que morreu junto com Carlos Alberto Filgueiras. O empresário de turismo, dono da J. Filgueiras Empreendimentos e Negócios Ltda., queria construir um hotel SPA Emiliano de alto luxo dentro de uma área federal protegida. A licença ambiental concedida pela prefeitura de Paraty acaba de ser contestada pelo Ministério Público Federal, que pediu sua anulação.

Mas isso fica para outro post

Você já conhece o novo escândalo do seguro defeso aos pescadores artesanais? Sabia que o Maranhão concentra um terço dos pescadores do País registrados para receber o seguro, são 590 mil. Só que há apenas 621 barcos de pesca cadastrados no Estado, uma média de mil pescadores por barco. 

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