Ilha de Santa Helena e o português que viveu mais de 30 anos sozinho perdido no Atlântico Sul
O escudeiro Fernão Lopes, nascido em Lisboa na virada do século 15 para o século 16, era uma pessoa comum à sua época. Um homem do povo. Viveu num período glorioso de Portugal. O período da abertura do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama. Assim, o comércio tornou Portugal a nação mais rica da época. Como tantos de seus conterrâneos, Fernão Lopes buscava fortuna e tornar-se mais que um simples escudeiro. Antes de mais nada, a única opção era ir para a Índia, consequentemente, “Ele esperava regressar a Lisboa e obter uma nomeação para uma posição de comando que lhe possibilitasse dar um salto na carreira.” Enfim, assim era naqueles tempos foi por isso que Fernão Lopes passou mais de 30 anos em solidão na Ilha de Santa Helena.
Atravessar o mar oceano
Em síntese; a única forma de progredir naquele reino era atravessar o ‘mar oceano’ e servir na Índia. Mal sabia que passaria cerca de 30 anos, sozinho, em autoexílio na ilha de Santa Helena. Mais que tudo, quando pôde voltar à civilização preferiu voltar para Santa Helena contrariando a maior parte das histórias de náufragos em ilhas desertas. Esta, a grande diferença de Fernão Lopes, analogamente, só por isso sua história merece ser conhecida.
Testemunha ocular de descobertas em pleno ‘Mar Oceano’
Entretanto, o que Fernão Lopes também não sabia é que seria testemunha da descoberta de uma ilha em sua viagem de ida para a Índia, Tristão da Cunha, e que passaria cerca de 30 anos sozinho em outra delas, também descoberta por lusitanos, a ilha de Santa Helena (João da Nova em 1502) perdida na vastidão do Atlântico Sul. Um Robinson Crusoé do século 16.
Felizmente, a história dramática e incomum deste personagem encantou o historiador Abdul Rahman Azzam, doutorado em história pela Universidade de Oxford. Em consequência, em 2018 publicou o livro O Outro Exílio, A História Fascinante De Fernão Lopes. Da Ilha De Santa Helena E De Um Paraíso Perdido. Este era Fernão Lopes, e esta, sua história singular.
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No dia 6 de abril de 1506, aos vinte e poucos anos, Fernão Lopes zarpou de Portugal. Estava cheio de esperanças. “Haviam passado apenas oito anos desde que Vasco da Gama largara com incontido entusiasmo de Lisboa em sua primeira viagem de expedição.
Uma após outra, seguiram-se novas armadas enviadas por D. Manuel I. Ele passou a se intitular ‘Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar em África, Senhor da Guiné e conquista, navegação e comércio da Etiópia, Pérsia e Índia’.
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A frota em que navegou nosso herói solitário, Fernão Lopes
“A bordo dos 15 navios que constituíam a armada portuguesa, duas figuras de proa dominavam a cena. O capitão-mor era Tristão da Cunha. Ele era um fidalgo destacado e homem de confiança do rei D. Manuel I. Dois anos antes o rei o nomeara primeiro vice-rei da Índia portuguesa. Nesta viagem seguia o seu primo. O temível Afonso de Albuquerque, que comandava uma armada de cinco navios. E que mais tarde causaria um impacto devastador em Fernão Lopes.”
De Lisboa para a costa brasileira, descendo ao sul até fazer uma curva e seguir para o Cabo da Boa Esperança
“O piloto de Tristão da Cunha definiu a rota. Os navios navegariam para o ocidente até à latitude de cinco ou seis graus norte, aproveitando os ventos alísios em direção ao Brasil. Atravessando o Equador, alcançariam os ventos alísios de sudeste do hemisfério sul até dobrarem o cabo de Santo Agostinho, não muito longe do atual Recife.
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Foi este caminho único, e natural, que transformou o Brasil em escala e estaleiro ao tempo da Carreira das Índias.
Atrasos durante a navegação
“Tornava-se cada vez mais claro que a frota seguia muito devagar. Uma das embarcações, o São Tiago, estava a perder velocidade. Isso criava uma preocupação particular, pois era o navio de comando. As ondas o faziam adernar talvez porque Tristão da Cunha, na sede de lucros, o tenha carregado demasiado.
O resultado foi o resto da frota, para grande frustração de Afonso de Albuquerque, ter de abrandar para o acompanhar.”
As temíveis tempestades: ‘sacerdotes ajoelhavam-se a rezar’
“…muito longe do destino e com um atraso considerável, desabou uma tempestade sobre a armada com tanta intensidade que os sacerdotes subiram ao convés e ajoelharam-se a rezar. Destes, alguns corriam pelo navio a espalhar água benta enquanto suplicavam aos céus. Após dois dias de tormenta, quando a frota tentava reagrupamento, não se via o navio comandado por Job Queimado.
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Estava-se no final de junho, quase três meses após a largada, entretanto, o vento contrário açoitava o navio. Embora a armada estivesse perto do Brasil, tornava-se evidente não poder avançar, consequentemente, havia opção a não ser apontar ao golfo da Guiné e prosseguir o caminho a partir dali até encontrar os alísios. Todos os dias o comandante anotava o itinerário da viagem, o roteiro da viagem, mencionando a rota, distância, observações dos astros e descrição das terras…”
A dura rotina de bordo
Contudo, era preciso ser muito idealista e corajoso para participar das frotas da época. Precários, e austeros, os navios lusos muitas vezes não passavam dos 25 metros de comprimento. A comida era ruim, e pouca; a água, escassa. E zero de conforto. “O calor sufocante, quando passavam a ilha de Ascensão, tornava a vida a bordo insuportável. Uma terrível provação apoderava-se de Fernão Lopes e dos outros que ainda não conheciam estas águas. Os conveses inferiores eram fornos.
Em consequência, Lopes e os restantes nobres eram obrigados a dormir no tombadilho embora não houvesse lugar que os apartasse do calor e mau cheiro. Não existiam sanitários. Por isso, os homens aliviavam-se por cima das amuradas; durante as tempestades, faziam-no onde se encontravam. Eles exerciam suas funções e dormiam com a mesma roupa por meses a fio e nunca se lavavam. A água doce era demasiado preciosa…”
A descoberta da ilha de Tristão da Cunha
Antes de mais nada, o primeiro destaque da tenebrosa viagem de Fernão Lopes aconteceu bem ao sul do Brasil quando deram com uma remota ilha até então desconhecida…”era uma manhã excessivamente fria do mês de outubro e parecia que os 14 navios se arrastavam…Uma ilha vulcânica surgida do oceano atravessando as nuvens e com o pico coroado de neve. Uma visão inesperada, tão surpreendente quanto lancinante. Assim que os navios se aproximaram do pequeno conjunto de ilhas, Afonso de Albuquerque, Leão dos Mares luso no Índico enviou uma mensagem a Tristão da Cunha sugerindo que desembarcassem em algum lado e investigassem.
Contudo, uma ventania de oeste impediu qualquer desembarque. Os navios seguiram seu rumo, não sem antes Tristão da Cunha atribuir seu nome às ilhas: um nome que perdura, embora na sua forma anglicizada, até nossos dias.”
‘A morte era uma visita assídua’
Acima de tudo, “Aqueles que realizavam a viagem entre Lisboa e a Índia referiam-se a três etapas nas quais a morte era uma visita assídua. A primeira, era a passagem do equador quando o calor sufocante originava muitas doenças mortais. A segunda, chegava com o frio gélido do cabo em que os homens sucumbiam serenamente à pneumonia e à febre. E, assim ,chegavam a Moçambique.
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Entretanto, com a malária e a cólera a pequena Ilha de Moçambique transformou-se num sepulcro para os portugueses, estimando-se que, nos 30 anos anteriores a 1558, 30 mil homens tenham morrido a caminho das Índias. Em dezembro de 1506, oito meses depois de deixarem Lisboa, os 14 navios de Tristão da Cunha dobraram o Cabo da Boa Esperança e atingiram a ilha de Moçambique. Ali a armada teve que passar o inverno.”
Desentendimento na frota de Fernão Lopes
Depois de muito esperarem, houve um encontro, e um desentendimento. Enquanto aguardavam as monções em Moçambique, chegava a frota de D. Francisco de Almeida, vice-rei da Índia. De regresso a Lisboa, a armada foi obrigada a parar para fazer reparos. Enquanto ali estavam, encontraram Tristão da Cunha e Afonso de Albuquerque, ‘tendo este último retirado vantagem da sua posição e coagido Flor de la Mar, o navio de João da Nova (da armada de Almeida), a juntar-se-lhe.
Depois, decidiu realizar algumas incursões pelas costas da Arábia e do golfo. Em seguida, seguiria para Ormuz, uma ilha do Golfo Pérsico, chave do comércio internacional marítimo. ‘Assumindo a ilha, Albuquerque bloqueava efetivamente a passagem de todos os navios não portugueses’. A decisão de partir aborrecera vários comandantes da frota, um em especial, João da Nova, o descobridor de Santa Helena. Ele se tornaria um inimigo implacável de Afonso de Albuquerque.
João da Nova, líder de grupo dissidente
“João da Nova tornava-se líder de um grupo dissidente contra Afonso de Albuquerque, o novo vice-rei da Índia. E Fernão Lopes viria a aderir a este grupo. No dia 25 de novembro de 1507, Afonso de Albuquerque lançava-se, mais os seus seis navios transportando cerca de 400 homens, a Ormuz…
Naquele momento, os comandantes da frota, liderados por João da Nova, colocavam a hipótese de abandonar Afonso de Albuquerque e partirem para a Índia por sua conta própria.” E assim o fizeram, partiram para Cochim.”
Batalha contra frota mameluca e sagração de Fernão Lopes cavaleiro
Desde que deixara Lisboa, três anos antes, Fernão Lopes ansiava por uma batalha onde pudesse mostrar sua qualidade e, por consequência, tronar-se cavaleiro. Aconteceu na batalha em Diu, onde derrotaram uma frota mameluca. Foi uma vitória importante. “Na verdade, histórica, ao conscientizar os muçulmanos de que os portugueses vieram para o Índico para ficar. Foi uma batalha violenta e sangrenta.
Os muçulmanos tiveram decepados pés e mãos, e atirados vivos para uma pira imensa. Por diversão, alguns foram amarrados vivos às bocas dos canhões e despedaçados pelo disparo. Quando a vitória foi assegurada, celebrou-se com fartura e D. Francisco Almeida armou cavaleiros aqueles que se destacaram pela bravura: entre eles estava Fernão Lopes, que partira para a Índia na esperança de tal distinção.”
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Em Goa, vivendo do prestígio de ser cavaleiro
Já, armado cavaleiro as frotas dirigem-se para Goa, importante porto indiano. Ali, entre escaramuças com indianos Fernão Lopes vê alguns de seus amigos desertarem para o lado inimigo. Em várias batalhas menores Fernão Lopes era obrigado a se debater contra ex-companheiros.
E, por que faziam isso? Porque eram regiamente recompensados pelos indianos, em consequência, se já eram nobres passavam a ser, também, ricos e comandavam as tropas do ex-inimigo.
As maravilhas de Goa no século 16
“…a grandeza de Goa assolou um soldado como Fernão Lopes. Ao explorar a cidade a pé ficaria maravilhado com o palácio, e os seus jardins perfumados. Passeando pelos estábulos reais, observaria cento e cinquenta cavalos árabes e cem elefantes. De reinos distantes chegavam quase todos os dias caravanas carregadas de mercadorias. Toda a cidade em Goa era um mercado onde de tudo se comprava e vendia…
Entretanto, ali havia oportunidade de riqueza, de nova maneira de viver onde tudo era possível. Para grande alarme da Igreja os portugueses começaram a seguir o costume hindu e muçulmano de ter concubinas. Não se satisfaziam com uma única mulher, tinham quatro ou cinco em suas casas. Lopes não resistiu muito tempo. Desertou, converteu-se ao islamismo, e foi morar em Bijapur.”
Nova refrega com os portugueses
“Após um ano em Bijapur, Fernão Lopes saía da cidade, a cavalo, com o exército de Ismail Adil Xá, na direção de Goa.” Nosso herói iria se digladiar com seus antigos camaradas. E, não só perdeu a batalha, como ficou prisioneiro de seu antigo desafeto, Afonso de Albuquerque.”Lopes seria punido com mais severidade por ter uma posição mais elevada. Não seria morto, mas castigado. Da forma mais exemplar, e à vista de todos. Primeiro, ele passou um ano na cadeia de Goa. Depois, foi levado em praça pública.”
O suplício
“No primeiro dia rasparam-lhe a barba, e passaram-lhe pela cara, até ficar irreconhecível, uma mistura de lama e excrementos de porco. As gentes foram estimuladas a urinarem-lhe em cima e muitos ali acorreram para tal, alguns trazendo suas crianças. Ao fim do dia regressaria a cadeia. No segundo dia, nova exposição em praça pública. “Albuquerque ordenou que lhe cortassem o nariz, castigar assim um fidalgo era inédito, os nobres nunca sofriam uma desfiguração…
Logo, Albuquerque ordenou que ficasse em pé para lhe cortarem a orelha direita… ao terceiro dia os ferimentos haviam feito perder muito sangue e mal conseguia andar. O governador ordenou que lhe cortassem o polegar da mão esquerda. Os urros de Fernão Lopes calaram a multidão. Talvez, sentindo alguma agitação entre seus fidalgos, ou que Lopes já sofrera bastante, Albuquerque, finalmente, nadou cessar a punição. Fernão Lopes poderia seguir em frente.”
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Um homem sem honra
“Albuquerque concedeu-lhe o perdão. Mas este perdão não tinha um significado real. Passara a estar impedido para o exército e incapaz de trabalhar. Havia sido alvo de humilhação e desfiguração em praça pública, sua honra desvanecera-se. As pessoas reconheciam-no, naturalmente, mas evitavam-no, muitas vezes por constrangimento ou piedade.
Depois de alguns anos vivendo como indigente, nosso herói, finalmente, decide voltar a Portugal numa frota de apenas dois navios em 1516. Era outro homem. Incapaz, cheio de vergonha,e sem saber o paradeiro de mulher e filho que deixara em Lisboa. Como poderia construir nova vida? Que reação poderia aguardar? Não vislumbrava uma saída em Portugal.”
Um Robinson Crusoé português
“O vento agitava o mar na base de altos penhascos e ondas gigantes provocavam grande rebentamentos de encontro aos rochedos. O comandante Simão da Silveira apontou embarcação para a vertente sudoeste da ilha antes de lançar ferro a noroeste, numa baía conhecida entre os portugueses como Aguada da Nova…O comandante havia permitido uma parada de dois dias, tempo suficiente para abastecer o navio de água doce que corria constante antes de levantar a âncora.
Antes de mais nada, foi num deles que Fernão Lopes, o Robinson Crusoé lusitano, abandonou o navio optando por ficar na ilha. O que terá ocorrido no espírito de Lopes no instante em que decidiu abandonar o navio e esconder-se? …Foi a atitude de um homem desesperado que perdera o tino, e, até mesmo, a vontade de viver. Entretanto, o que não sabia foi o quão se afeiçoariam a si o comandante a tripulação do Sancto António.”
Sumido na ilha de Santa Helena
A princípio, o comandante mandou homens a terra atrás de Lopes. Ao fim do dia regressaram sem sinal de o encontrarem. “Simão da Silveira ordenou que lhe deixassem alguns mantimentos, uma panela, alguns utensílios, e sal. Os homens deixaram algumas vestes, em respeito por aquela alma atormentada.
Por fim, o comandante redigiu uma carta que deixara pregada numa árvore. Era dirigida à tripulação do seguinte navio português, informando que a ilha de Santa Helena já não era deserta, pois, ali residia a partir de então um cavaleiro português e que as novas de se encontrar vivo ou morto deveriam ser transmitidas a Lisboa. No caso de se achar com vida, deveria ser tratado com respeito e ser-lhe entregue tudo o que necessitasse, por ser um nobre homem.”
Sozinho, na ilha…
“De forma admirável, Fernão Lopes permaneceu na ilha de Santa Helena, na maior solidão, durante um período inicial de 14 anos. E, após uma breve ausência, por mais 12 anos aproximadamente.”
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“O isolamento do mundo e uma existência de eremita- foi mesmo conhecido como o Eremita de Santa Helena- tornaram-no, paradoxalmente, e durante um breve momento, num dos homens mais afamados de Portugal, chamando a atenção não apenas das figuras mais afamadas do reino, mas de toda Cristandade…um desfigurado Adão iniciava a exploração de seu Éden. O Sancto António levando as novas de Fernão Lopes chegara a Lisboa em novembro de 1516.”
Mas, o que aconteceu na ilha de Santa Helena?
“Três anos se passaram e durante este período os registros revelam que pelos menos quatro navios pararam em Santa Helena. Não se viam sinais de Fernão Lopes, mas não restavam dúvidas de que estaria vivo, pois os alimentos e as roupas ali deixados desapareciam.”
“E, a cada navio fundeado em Belém, mais se espalhava sua enigmática história pelos habitantes de Lisboa…As fontes que nos relatam como foi descoberto são confusas e contraditórias. Mas todas narram uma sucessão de acontecimentos dramáticos…”
O o navio, Santa Catarina do Monte Sinai, na ilha de Santa Helena
De antemão, foi quando da estadia do Santa Catarina do Monte Sinai em Santa Helena que um de seus grumetes encontrou Fernão Lopes escondido em uma gruta. ‘O moço correu a revelar aos homens que não perderam tempo rodeando-o para que não fugisse.
Fernão Lopes trazia as calças apertadas em volta da cintura com uma corda. Na parte superior, uma camisola à qual faltava uma das mangas, contudo, o que mais chamaria a atenção do grupo não seria a barba nem as unhas, mas, aquela face sem nariz que os fixava. Quem seria este homem? Seria mesmo português?
Fernão Lopes ganha a confiança da tripulação
Aos poucos, a tripulação e o comandante da Santa Catarina de Monte Sinai ficam fascinados pela inteligência e os modos educados daquela figura. Entretanto, chegou a hora da partida. Perguntado sobre o que queria, Fernão Lopes pediu sementes. O solo fértil da ilha estava à espera de ser trabalhado. Sacos de sementes e brotos foram deixados, mas, também porcos, gado caprino e galinhas. Então, Fernão Lopes mudou.
Não só cultivou a ilha, como suas criações de animais prosperaram. ” De um tempo em que se escondia dos navios recusando mostrar-se, quase do dia para noite como revelam as fontes, Lopes passava a fraternizar espontaneamente com as suas tripulações pedindo-lhes ajuda para o cultivo.”
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‘Os anos se passavam na ilha de Santa Helena’
Aos poucos, Santa Helena se transformou num enorme pomar. As macieiras foram as árvores mais recentes a dar frutos. Não uma, mas duas vezes por ano…Mangas e amoras criavam rapidamente raízes…As bananeiras pegavam, mas, não vicejavam e outros frutos saíram-se melhor. As romãzeiras e as palmeiras, ou as laranjeiras e os limoeiros com o seu tão odorífero desabrochar.
Contudo, os anos se passaram e a ilha de Santa Helena se tornava cada vez mais familiar aos portugueses. Ao longo do decênio de 1520 uma média de sete ou oito embarcações paravam ali. Os portugueses ficavam maravilhados com as transformações sofridas em poucos anos, e as tripulações deliciavam-se com a fruta fresca que se tornara tão abundante. Naquela altura, Fernão Lopes já corria para a margem para das as boas-vindas aos mareantes, agradecendo-lhes calorosamente antes de procurar saber, em ânsias, que sementes trariam a bordo.
‘Fernão Lopes, o solitário, transforma-se no homem mais badalado da capital do reino.’
“Lopes solicitava aos comandantes o préstimo de alguns homens para o ajudarem a arar novos campos. E com quantos mais homens falava, mais se espalhava por Lisboa a gesta deste estranho de Santa Helena. Lopes transformava-se no homem mais badalado da capital do reino.
Os anos se seguiram, bem como, o cultivo de Fernão Lopes. Por vezes, os comandantes de navios perguntavam-lhe se desejava voltar a Lisboa e a sua resposta, de acordo coma fontes, foi sempre a mesma, tinha, naquela ilha, tudo de que necessitava.”
Mudança no cenário: D. João III assume o reino
“Em 1521 o rei D. Manuel I morreria sendo sucedido no trono pelo filho D. João III. E a fama, e a curiosidade em torno de Fernão Lopes aumentava. Até que Gaspar Correia escrevesse: “pelo que El-Rei o mandou rogar que por sua vontade fosse ao reino”. Agora era uma ordem. O rei queria conhecer o mito.
O soberano ordenaria que Fernão Lopes, o eremita de Santa Helena, fosse trazido ao reino, pois, tanto ele como sua esposa desejavam falar-lhe. As ordens do rei teriam de ser cumpridas, tendo sido enviado um navio para uma viagem de dois meses em busca de Lopes.” E, assim foi feito. Um navio foi despachado, as fontes não citam o comandante e, Fernão Lopes, levado à Lisboa.
Fernão Lopes encontra-se com o rei D. João III
“De acordo com Gaspar Correia, o encontro com o rei e a rainha fora aprazado para durante a noite nos aposentos reais.Antes de o acompanharem ao paço cortaram-lhe as unhas e apararam-lhe o cabelo e a barba brancos: Fernão Lopes tinha agora 52 anos.
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Contudo, quase nada é registrado deste encontro. Mas, ao final dele, “Fernão Lopes regressou ao convento que o alojava tendo sido dadas instruções aos frades para que o deixassem em descanso. Apesar disso, vivia uma esperança de regressar em breve para Santa Helena, mas, os dias e as semanas passavam e não surgiam novas do paço real. Por fim, chegaram as ordens de D. João III…”
Fernão Lopes esteve com o papa Clemente VII?
“…não seriam para permitir o regresso à ilha, mas ser levado a Roma ao encontro do papa Clemente VII. Nada nos informa da reação de Fernão Lopes que, em poucos dias, estava a bordo do navio que o levou primeiro a Nápoles e depois a Roma. Aqui chegado, foi chamado ao Vaticano para ser recebido pelo papa, que lhe concedeu absolvição depois de Lopes ter ajoelhado e confessado sua apostasia. Neste ponto é importante citar Gaspar Correia na íntegra:
…que ele nada quis aceitar, mas houve licença de El-Rei e se foi a Roma, e se confessou ao papa, que folgou de o ver, e houve cartas para El-Rei que o tornasse a mandar à ilha…
‘Uma história admirável’
“Trata-se de uma história admirável, um encontro entre um português eremita desfigurado, possivelmente ainda muçulmano, que poucos meses antes vivia num completo isolamento, e o homem mais poderoso da Cristandade. Em poucas semanas, e numa sucessão de acontecimentos desconcertantes, Fernão Lopes fora recebido em audiência pelo rei de Portugal e pelo papa, e ambos escutaram a sua história concedendo-lhe as respectivas bençãos.”
“Neste meio tempo, Fernão Lopes regressava a Santa Helena, onde permaneceria o resto de sua vida. Em 1546, um comandante português reportaria em palavras breves o falecimento de Fernão Lopes, que foi enterrado na ilha. Santa Helena ensinou-lhe que o que importa não é aquilo que se ganha, mas aquilo que se perde, pois quando perdemos tudo, o que fica é quem somos.”
Napoleão Bonaparte tira a ilha de Santa Helena do obscurantismo
Passado o período das aguadas da Carreira das Índias, ao final do século 17, a ilha de Santa Helena, contudo, mergulha no obscurantismo. Os portugueses nunca reivindicaram sua posse. Durante curto período foi disputada por ingleses e holandeses, até que, em 1673 os ingleses se apossaram e nunca mais saíram.
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Território britânico ultramarino
Hoje, é o principal componente do território britânico ultramarino de Santa Helena (onde morreu Napoleão Bonaparte), além de Ascensão e Tristão da Cunha. Santa Helena tem 122 Km2 e pouco mais de 4 mil habitantes. Entretanto, sempre viveu nas sombras até que em 1815, depois da derrota em Waterloo, Napoleão Bonaparte lá foi exilado onde ficou até sua morte em 1821. Sete anos de notoriedade. Até hoje, a ilha é conhecida por seu ilustre habitante. Não fosse por Napoleão, estaria tão esquecida e escondida como ao tempo de Fernão Lopes.
Ilha de Santa Helena hoje
Nada que se compare ao vibrante pomar do tempo de Lopes. A ilha, hoje, sofre a desertificação em razão do gado caprino ali deixado ainda ao tempo de Fernão Lopes. A criação cresceu de tal forma que, em 1610 o francês Laval registrou que seria impossível descer, e também subir as encostas sem ser atropelado.
Assim, em 1816 os britânicos registraram que ‘os caprinos são os únicos responsáveis pela total ruína da floresta e pelos males que assolam todos os habitantes da ilha’.
A introdução de espécies invasivas
Hoje se sabe o mal que ela provocam. Naqueles tempos, não. “Aves terrestres e autóctones e os petréis ficaram indefesos perante ratazanas, gatos e cães que foram sucessivamente introduzidos. Por volta de 1700, Santa Helena encontrava-se largamente desfolhada, generalizando-se a erosão dos solos e as profundas ravinas agora secas. Em 1771, o naturalista e botânico, Sir Joseph Banks, visitou a ilha. Sentiu-se chocado com o cenário.
No presente, a economia está limitada a alguns alimentos para consumo doméstico, madeira para combustível, peixe e pouco artesanato. Santa Helena deixou de produzir seus próprios alimentos. ‘Houve um tempo’, diz o autor, ‘em que, graças às sementes deitadas à terra por Fernão Lopes, a ilha resplandecia de frutos tropicais, fornecendo, no século 18, fruta suficiente para abastecer 800 navios que ali paravam todos os anos’.
Santa Helena torce pelo turismo
A quantidade de navios desceu de 1044 em 1860, para meros 51 em 1910. Hoje Santa Helena procura inaugurar um aeroporto, semi-pronto desde 2016, e torce pelo turismo. A pista de pouso transportaria um dos lugares mais inacessíveis do planeta ao mundo moderno.
Fonte: O Outro Exílio. A História Fascinante De Fernão Lopes. Da Ilha De Santa Helena E De Um Paraíso Perdido. Autor: A.R.Azzam. Editorial Presença, Lisboa, 2018.
Arquipélago dos Arvoredos transformado em Rebio, erro crasso do ICMBio
Que linda e dramática história. Daria um filme, prá ganhar prémio . Agora gostaria de saber o que houve com os caprinos, ou bovinos, comeram todos? ainda assolam a ilha ?
Magnífica história, João. Obrigado por trazê-la à luz dos leitores. Parabéns!
Obrigado Xará, é um prazer. Abraços
‘Uma história admirável’, e nesse parágrafo nos dá uma bela reflexão sobre a vida que se leva:
… “Neste meio tempo, Fernão Lopes regressava a Santa Helena, onde permaneceria o resto de sua vida. Em 1546, um comandante português reportaria em palavras breves o falecimento de Fernão Lopes, que foi enterrado na ilha. Santa Helena ensinou-lhe que o que importa não é aquilo que se ganha, mas aquilo que se perde, pois quando perdemos tudo, o que fica é quem somos.” …
Essa é uma belíssima citação.
Bela e triste história!!! Agradeço o site, abraço João.
Que história, meus queridos. Simplesmente cativante.