A Flip em Paraty e eu, um E.T., flutuando no espaço de bicicleta
É espantoso o que acontece na Flip em Paraty, uma emblemática cidade à beira mar. Ela está entupida por uma turba de escritores, poetas, jornalistas, ministros de Estado, intelectuais, músicos, educadores e turistas que trombam nas estreitas ruas do centro histórico, tietando uns aos outros. Mas cega, incapaz de enxergar a realidade ao redor. Um evento de alto nível que atrai todas as atenções para o litoral, da mídia tradicional às redes antissociais, e que leva para a cidade uma quantidade assombrosa de formadores de opinião. Seria o momento ideal para mostrar a verdadeira Paraty — linda por fora, e podre por dentro, com um dos piores níveis de vida do Estado. Vive do turismo, mas esconde a miséria atrás de fachadas coloniais num exemplo do que aconteceu em toda a zona costeira mas que quase ninguém vê.

A cidade que não aparece nas fotos
Durante a Flip em Paraty a cidade brilha. Os visitantes ocasionais se encantam com o centro histórico, a arquitetura colonial, os cafés charmosos, as centenas de mesas redondas a discutirem temas da atualidade os mais variados. Contudo, basta sair alguns metros do centro para encontrar a outra Paraty. Menos de 10% das residências conta com saneamento básico. O restante escorre seus dejetos a céu aberto, desaguando nos rios, mangues e no mar.
A cidade cresceu desordenadamente como todas do litoral. Paraty tem uma periferia medonha, que se expande constantemente que nem o universo, com moradias subumanas, entre lixo, esgoto, gatos por toda parte, e abandono. Embora a taxa de escolarização de crianças entre 6 e 14 anos seja boa (98%), o IDH de Paraty é apenas 0,693, abaixo da média nacional. O PIB per capita também está abaixo da média do País apesar do imenso número de turistas que a celebram anualmente. E, para além da distorcida imagem de paraíso, o saneamento é medieval: mais de 40 mil pessoas vivem sem coleta de esgoto.
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A mesma imprensa que se deleita em realçar as belezas de Paraty e seu rico papel na história do País, esquece de lembrar que ela figura entre os municípios turísticos mais violentos do mais que violento Estado do Rio de Janeiro. Segundo o Instituto Igarapé, é o 2.º município com maior taxa de homicídios no RJ.
Comando Vermelho e outras facções
A Polícia Civil identificou facções como o Comando Vermelho (CV) atuando em Paraty. Elas vendem drogas, controlam bairros e dominam rotas locais.
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Em junho de 2025, uma operação na Rio–Santos prendeu líderes do Comando Vermelho em Paraty, identificados pela polícia como “homens de guerra”. Mesmo assim, ninguém deu bola. Nem os turistas que lotam os grandes eventos, muito menos os ‘bacanas’ donos de casas coloniais no centro, em ilhas, ou nas praias com mansões à beira-mar.
Paraty tem de tudo: Comando Vermelho, milionários, bilionários, e até mesmo príncipes, ‘famosos’ a dar com pau, famílias nobres, e até caiçaras
Paraty tem de tudo: milionários, príncipes, artistas, festejados navegadores, bilionários e suas casas de até 50 milhões no paraíso privado do Condomínio Laranjeiras, cercado por um exército de seguranças particulares. ‘Com a recente pandemia, os imóveis em Laranjeiras valorizaram 50%, conta o corretor Zuca Monteiro, que trabalha na região desde 1983’. “Nunca houve um período tão forte de vendas” (Revista Piauí).
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Mas… e daí? O que isso tem a ver com a Flip? Nada. Não tem nada a ver. Eu é que sou um E.T. passeando de bike pelo espaço, enxergando os buracos na Mata Atlântica “protegida” por seis unidades de conservação — constantemente invadidas e depredadas pelos bacanas. Mas, que diabo, o que isso tem a ver com a Flip?

A especulação imobiliária estupra Paraty desde os anos 70
O que mais nos deixa atônitos é ver Paraty entre as regiões mais agredidas pela pior chaga do litoral: a especulação imobiliária. Desde os anos 1970, ela avança sem trégua, sempre com o Estado se omitindo ou falhando em enfrentar o crime ambiental.
Agora mesmo, em junho deste ano, Paraty voltou a sofrer um novo e violento surto especulativo.
Um juiz inconsequente, e um leilão que quase mata os caiçaras de susto e a Flip em Paraty
De repente, um juiz liberou mais de 40 grandes lotes em áreas públicas “protegidas” por unidades de conservação. Lotes habitados por caiçaras há gerações. Os terrenos foram a leilão. Ninguém avisou os moradores. Eles só entenderam o que estava acontecendo quando os “novos donos” apareceram em seus quintais, cheios de papéis na mão, depois de arrematar quase tudo por merreca em leilão público. Um escândalo digno de Paraty — onde a especulação dita as regras e o poder fecha os olhos.

Mesmo assim, esse ataque passou em branco. A mídia ignorou. As redes antissociais fingiram que não viram. A massa de turistas e formadores de opinião seguiu lotando o centro histórico, alheia a tudo. Segundo as redes da Flip, “Paraty parou para assistir Marina Silva em telões espalhados pelo centro histórico”. Parou, sim — mas só para o espetáculo.
Algumas áreas arrematadas no leilão

Contamos o caso em detalhes no post Caos em Paraty e em publicações no Instagram que indignaram milhares de pessoas — clique em “Ver insights”. A pressão foi tanta que a imprensa, enfim, se viu obrigada a noticiar.
Movimentos sociais protestam na Flip 2016 contra o descaso pela especulação imobiliária
No passado a Flip foi mais generosa com os problemas que afligem a região. Na edição de 2016 um movimento que se autodenominou OcupaFlip promoveu atos públicos na Praça da Matriz ‘expondo suas reivindicações e buscando sensibilizar quem veio à Flip’, explicou o jornal espanhol El País, o único a cobrir a manifestação.
Um mês antes o caiçara Jaison Caíque Sampaio havia sido fiziladpo dentro de sua casa no distrito de Trindade por dois capangas a serviço da empresa paratiense Trindade Desenvolvimento Territorial (TDT). Segundo o El País, ‘uma dessas militâncias é o grupo Trindade Vive, que em comum acordo com a organização da Flip instalou-se em um espaço na Praça da Matriz para denunciar problemas que a vila, que é um dos destinos turísticos mais cobiçados de Paraty, sofre em decorrência da especulação imobiliária’.
Não adiantou. Nada aconteceu. A justiça não agiu enquanto a imprensa brasileira silenciou. Os assassinos continuam soltos, circulando pelas ruas de Paraty como se nada tivessem feito — talvez até cruzando com a multidão que curte a Flip numa boa, sem saber de nada.
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‘Marina Silva tem recepção de superstar na Flip’
Segundo a Folha de S. Paulo, Marina Silva teve recepção de superstar na Flip.”Ovacionada de pé durante mais de três minutos na noite de sexta-feira (1º), aos gritos de “Marina”, a ministra do Meio Ambiente foi protagonista da mesa mais lotada da festa até agora, tanto na tenda principal quanto no auditório externo, do telão.”

Segundo os relatos, Marina recebeu solidariedade geral após os ataques que sofreu no Congresso. Em sua fala, criticou o licenciamento ambiental “mutilado e desfigurado do jeito que está no PL aprovado pelo Congresso”.
Nem um pio sobre o litoral e o evento extremo desta mesma semana
Tudo isso é justo — e até esperado. Mas ninguém falou do litoral engolido pelo mar enfurecido nesta mesma semana, e sem políticas públicas para mitigar este problema que é mundial. Inacreditável. Até hoje, Marina Silva não disse uma palavra sobre o litoral ou o bioma marinho. A impressão que fica é simples: o assunto não é com ela.

O violentíssimo evento extremo que engoliu a zona costeira esta semana — do Arroio Chuí até a Região dos Lagos, no norte do Rio — não mereceu nenhum minuto de reflexão. Nada. Zero. Como se o litoral simplesmente não existisse.

Capão da Canoa, no sul, decreta calamidade pública
Capão da Canoa, no sul, decretou calamidade pública depois da ressaca que destruiu obras na orla despreparada. Em Santos, o maior porto do Brasil precisou fechar. A mesma ressaca devastou a orla da cidade que, esta sim, é preparada. No Rio de Janeiro, a areia foi lançada pelas ondas sobre as avenidas e invadiu garagens de prédios do outro lado da via pública.

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