A Amazônia quer destruir a floresta”, entrevista de Paulo Vanzolini ao jornal Folha de S. Paulo, março, 2008
A Amazônia quer destruir a floresta. A generosidade e as opiniões contundentes – e muitas vezes politicamente incorretas – de um zoólogo compositor poderiam servir de inspiração para um grande samba. Mas Paulo Emílio Vanzolini, que completa 84 anos no dia 25 de abril, não faz mais música. E, mesmo na ciência, anda acertando as contas com sua obra-prima: a teoria dos refúgios.
A Amazônia quer destruir a floresta: ‘fizemos apenas um modelo de especiação de uma espécie’
“Nem deveria chamar teoria dos refúgios. Fizemos apenas um modelo de especiação de uma espécie. Um bicho. Nós não desenvolvemos nada. Não usamos o termo teoria dos refúgios no trabalho de 1970.” Vanzo, como é conhecido, conta como surgiu a explicação científica mais ilustre (e debatida) sobre a origem da biodiversidade amazônica.
Origem da biodiversidade amazônica
O ano é 1969. Trabalho quase pronto sobre um lagarto do gênero Anolis, que existe em boa parte do Brasil. Vanzolini, que dividia o projeto com o americano Ernest Williams, recebe um pacote da revista científica americana “Science”. Era um trabalho assinado por Jürgen Haffer sobre distribuição de aves na Amazônia brasileira.
“Ernest, acho que passaram a perna na gente”, foi a reação de Vanzolini. Logo em seguida, o trabalho sobre a distribuição de répteis no Brasil foi enviado para Haffer. “Gosto muito dele, que é pessoa inteligente, e, além disso, como bom alemão, gosta muito de cerveja.”
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Haffer, que estava na África do Sul, pegou um avião e veio para o Brasil discutir o assunto com Vanzolini. Os dois trabalhos foram publicados em 1970. A concepção dos refúgios, provavelmente, ecoou porque encontrou dois autores generosos, algo nem sempre fácil de ocorrer no mundo da ciência.
‘Aziz Ab’Sáber em fase de invenção’
Outro pesquisador que contribuiu, com seus estudos paleoclimáticos, para o trabalho de Vanzolini e Williams foi o geógrafo Aziz Ab’Sáber, amigo com quem Vanzo anda chateado. “O Aziz é uma criança. Somos muito amigos, apesar de que agora ele está nessa fase de invenção, de dizer que ele descobriu a teoria dos refúgios. Ele colocou isso na internet.”
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Refúgios – “ilhas” de mata úmida e cerrado”
Nem Haffer nem Vanzolini aceitam as críticas que vêm sendo feitas nos últimos anos aos refúgios –nome dado às “ilhas” de mata úmida e cerrado que se formaram na Amazônia à medida que o clima oscilou entre seco e úmido da Era do Gelo para cá. Essas “ilhas” isolam geograficamente as populações, estimulando o surgimento de novas espécies.
Mas críticas são algo que não falta quando o zoólogo-sambista fala da Amazônia atual.
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“Vejo a situação da Amazônia com grande desgosto. A equipe dessa ministra [Marina Silva] é muito ruim. Você conhece o [João Paulo] Capobianco [secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente]? É o pior que tem. Agora ele inventou essa história de gestão do patrimônio genético”, dispara. Do governo, Vanzo parte para criticar os próprios moradores da floresta e as ONGs.
A Amazônia inteira quer derrubar a floresta
“A Amazônia inteira quer derrubar a floresta. Principalmente o pessoal que vive lá mesmo. O único jeito seria diminuir a população. Não existe desenvolvimento sustentável. É uma besteira completa. Enquanto a população crescer, você não vai negar comida”. A única solução é: “Tranca a porta e perde a chave. Enquanto tiver gente e gente fazendo mais gente, como você vai comer sem plantar, sem matar os bichos que estão por lá?”
A Amazônia quer destruir a floresta: ‘o grande mal são as ONGs’
Em seguida, muda de bioma, mas mantém o alvo. “O grande mal são as ONGs. Elas são ignorantes e muito militantes. Fico feliz que agora liberaram a usina de Tijuco Alto.” O projeto da hidrelétrica, que poderá ser erguida sul do Estado de São Paulo pelo Grupo Votorantim, se arrasta há 20 anos na Justiça.
“Eu e algumas alunas tínhamos uma firma de impactos ecológicos. Fizemos estudos naquela área. Lá não tem um metro de mata atlântica. Tem só capoeira, o que é pior.”
Mas as boas lembranças amazônicas do autor de “Volta por Cima” –expressão que virou verbete em dicionário e o único samba, segundo Vanzolini, que rendeu algum dinheiro (“Comprei muitos livros com ele”)– voltam logo.
Na Amazônia, ao lado de Márcio Ayres
“Uma das maiores emoções que eu tive na vida foi na Amazônia, ao lado do Márcio Ayres [primatólogo morto em 2003], que eu conheci no berço.”
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Os dois cientistas estavam atrás de uma espécie nova de macaco e pararam seu barco em uma ilha, na região de Mamirauá. “Logo quando chegamos pensaram que nós éramos regatões e foram logo perguntando o que vendíamos. Dissemos que estávamos trabalhando nessa coisa do mico-de-cheiro. “Qual o senhor quer?” –perguntaram. “O da cabecinha ruiva ou o outro?” Quase desmaiei na hora. Eles já sabiam que eram dois [tipos].”
‘Eu fui lá e matei. Depois taxidermizei’
Quando um exemplar da espécie nova foi encontrado, o próprio Vanzolini matou o animal. Ayres afirmou que não sabia fazer aquilo. “Eu fui lá e matei. Depois taxidermizei e o Márcio descreveu (e fez uma homenagem ao então orientador, dando o nome ao macaco de Saimiri vanzolinii).
A obra de Vanzolini
Apesar de ter ficado de fora dessa descrição, a obra de Vanzolini não se resume ao estudo que acabou gerando a teoria dos refúgios. Nas coletas de campo ou no Museu de Zoologia da USP, ele não tem conta do número de espécies que descreveu e batizou, principalmente de répteis e anfíbios (“Quem é sério tem perfil baixo”, disse uma vez).
Matar bicho para fins científicos é cada vez mais importante, segundo Vanzolini. “As ONGs acham isso besteira porque elas não entendem de nada”, generaliza o zoólogo.
Rodas de samba
O sorriso maroto volta a se abrir quando Vanzolini –depois de tomar dois cafés feitos por sua mulher, a cantora Ana Bernardo, e elogiá-los muito– volta a falar de música, atividade da qual, diga-se de passagem, ele nunca precisou para viver. “A zoologia foi muito boa para mim. Me deu bom emprego, viagens, boas amizades.”
‘Compor é muito difícil. Toma muito tempo’
O compositor está aposentado mas, segundo ele, continua tendo a música como diversão. “Compor é muito difícil. Toma muito tempo. Perdi o gosto.” Porém, alguns botequins do bairro da Aclimação, como o do Heleno, ainda são testemunhas das rodas de samba de que Vanzolini e os amigos costumam participar de longe em longe.
‘Beber eu tive de parar’
“Ainda frequento, a cada dois ou três meses. Beber eu tive de parar. A proibição é só para cachaça, porque eu tomava um pouco demais. Mas cerveja e vinho eu tomo.”
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Vanzolini, que em 2004 ficou 51 dias na UTI após a eclosão de quatro úlceras hemorrágicas e após ter três paradas cardíacas no mesmo dia, continua acompanhando tudo do seu refúgio na Aclimação (uma vila inteira dele e dos irmãos, com e uma das casas para ensaios). A eleição nos EUA, por exemplo.
“E essa do Obama agora? Vai ser a glória. Mas duvido que eles tenham coragem. No fim, eles [os americanos] votam em um republicano”, explica Vanzo, que ainda se considera um homem de esquerda.
Na escrivaninha
Entrevista encerrada. O zoólogo se levanta e convida o repórter a subir as escadas do sobrado. Passos lentos. Entramos num quarto com a janela quase toda fechada. A televisão ligada em um jogo da Copa dos Campeões –Vanzolini é torcedor da Ponte Preta- e uma estante com vários livros.
Ele retira dois volumes, coloca sobre a escrivaninha e diz: “Sente-se aí, leia isso”, com um tom professoral. É a publicação original do artigo com Williams (dois livros que, somados, passam das cem páginas), feita em 1970. Apesar de não existir realmente o termo no trabalho, ali está um dos marcos (e um dos pais) da teoria dos refúgios.
Por: A Amazônia quer destruir a floresta, EDUARDO GERAQUE, da Folha de S.Paulo
(Foto de abertura: Greenpeace)