Cores do Lagamar, um espectro de esperança
O litoral brasileiro é um dos mais belos do mundo, embora maltratado, e abriga uma das maiores biodiversidades do planeta. Mesmo assim, enfrenta a indiferença do grande público resistindo, não se sabe como, contra a ganância de especuladores. Já comentamos que até pessoas engajadas na causa ambiental preocupam-se mais com os ambientes terrestres do que com o mar e o litoral, irremediavelmente associados ao lazer. Esse abandono motivou o Projeto Mar Sem Fim, uma tentativa de levar essa riqueza para dentro das casas por meio da série de documentários que produzimos e apresentamos por cerca de quatro anos na TV Cultura, quando mostramos também a força histórica e cultural dessa região tão importante. Curiosamente, um dos trechos mais espetaculares e bem preservados fica no sul do Estado mais rico e populoso do Brasil. Ali, as cores do Lagamar ainda brilham como novas, oferecendo um raro espectro de esperança.

140 quilômetros de estuário contínuo
Os estuários são corpos de água parcialmente fechados. Eles surgem quando a água doce dos rios se mistura com a água salgada do oceano. Esse encontro cria um dos ecossistemas mais produtivos do planeta. Assim é o Lagamar. Ele se estende por 140 quilômetros, de Iguape, no sul de São Paulo, até Paranaguá, no norte do Paraná. O sistema é abraçado pelo maior trecho contínuo de Mata Atlântica do Brasil.


Ali, em Iguape, começa uma série de canais paralelos à costa. Eles seguem até Paranaguá e têm várias barras, ou aberturas para o mar. A primeira fica em Icapara, ainda em Iguape. Depois vêm a barra de Cananéia e a de Ararapira, já no Paraná. Em seguida aparece a barra de Superagui e, por fim, a de Paranaguá. Trata-se de um estuário de planície costeira.

Os rios nascem na Serra do Mar
Do lado oposto ao mar, a Serra do Mar acompanha os canais com variações de ângulo, altura, e contornos. Naquelas escarpas nascem centenas, talvez milhares de rios. Eles descem a serra, muitas vezes formando cachoeiras, e desembocam nesses canais que também recebem a água do mar pelas barras. A mistura transforma o conjunto no mais importante berçário do Atlântico Sul.
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Em 1988, a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) classificou o Lagamar como o terceiro estuário mais produtivo do mundo e um dos mais bem preservados. Não há dúvida, passados cinco séculos as cores do Lagamar ainda brilham.
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Curiosamente, foi umas das primeiras regiões a receber um europeu, dois anos depois da ‘descoberta’ oficial em 1502, quando Américo Vespúcio ali arribou para encontrar milhares de indígenas e um misterioso homem branco que entrou para a história como o ‘Bacharel de Cananéia’.

Os caiçaras, quilombolas, e indígenas
Pois o Lagamar foi ocupado pelos descendentes do Bacharel, os caiçaras, além de vários grupos quilombolas, e outros indígenas, que ainda resistem e mantêm suas tradições ainda que hoje estejam enfraquecidas, contaminadas, pelos contatos inevitáveis com os seres mais insustentáveis que jamais habitaram a Terra, o Homo sapiens.
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Entretanto, este patrimônio cultural e ambiental é reconhecido, quase toda a área é protegida por unidades de conservação, municipais, estaduais, ou federais. Desse modo, e sempre com muita mobilização em razão de seus atributos, os ataques especulativos que começaram os anos 60 do século passado não lograram corromper este trecho como fizeram na maior parte do litoral.

Durante este período, a imprensa, melhor dizendo, o Jornal da Tarde no auge de seu prestígio, desempenhou papel preponderante na salvaguarda deste bem natural.
A flora e a fauna
Em meio a esta peculiar geografia humana e topográfica, estão os habitats de um sem-número de espécies entre mamíferos, répteis, aves, e anfíbios, de tipos endêmicos como o mico-leão-da-cara-preta, ou o papagaio-de-cara-roxa, por exemplo, e outros como o boto-cinza, o macaco-muriqui (o maior das Américas), a lontra, etc.

Esta rica vida animal e vegetal se divide entre ambientes tão distintos como praias, restingas, manguezais, ilhas, lagoas, brejos, dunas, costões, campos de altitude, florestas de montanhas, de encostas, e de planícies, entre outras. Em meio a esta explosão de biodiversidade há pequenas cidades, vilas fantasmas, aldeamentos, e comunidades tradicionais.
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Riscos às cores do Lagamar
Apesar da riqueza superlativa, e da proteção, nem tanto, o Lagamar corre riscos. O Parque Nacional do Superagui foi invadido por indígenas no início de 2025, sem ação do ICMBio a quem compete a fiscalização.

A abertura do Canal do Valo Grande, em Iguape, segue matando o mangue e a vida marinha da região há cerca de 300 anos sem qualquer ação dos órgãos (in)competentes.

E políticos inqualificáveis pretendem transformar o local em polo turístico para barcos do Paraná e São Paulo, demonstrando a colossal estupidez de quem desconhece que a beleza e a virtude não estão em Cancun, mas debaixo de seus narizes.
O lado positivo é que as cores do Lagamar têm quem as admire, entre ativistas, acadêmicos, ambientalistas e, claro, os nativos que moram no santuário.













