Praia do Preá, turismo, e um perverso casamento
As excelentes condições meteorológicas e a construção do novo aeroporto de Jericoacoara, com voos diretos de Congonhas, Guarulhos, Confins e Viracopos, têm trazido hordas de amantes dos esportes de vento do Sudeste do Brasil para a praia do Preá, CE. Esses aficionados chegam à região com um enorme apetite para comprar um pedacinho de terra num lugar até alguns anos atrás intocado pelo turismo e pela especulação imobiliária. Quando chegam, encontram um povo nativo vulnerável, desprovido de bens materiais e seduzido pelos confortos e prazeres da ‘civilização’. Esses nativos entregam seu próprio lugar – suas raízes; sua identidade – em troca de montantes de dinheiro jamais vistos por eles. Praia do Preá, CE, e o turismo: perverso casamento de interesses.
A palavra do mantenedor do Mar Sem Fim
Este texto lúcido e terrivelmente cruel é de nosso colaborador José Barbosa. Com precisão matemática, Barbosa mostra o que ocorre quando uma praia ‘entra na moda’.
Para os míopes que chegaram recentemente, é um ‘paraíso’ na Terra; para os nativos, o começo do fim. Repetimos, e conclamamos nossos leitores a juntarem-se a nós nesta cruzada, é mais que chegada a hora de repensarmos nosso modo injusto e destrutivo de ocupação do litoral. O casamento perverso e estranho em Preá é o que acontece em numerosas praias do Sul, Sudeste e Nordeste.
Sobre o litoral do Ceará quero deixar meu depoimento (João Lara Mesquita). Foi das coisas que mais me impressionaram pela beleza cênica inigualável, e pela chaga da especulação que já tomava parte do litoral. Aconteceu durante a primeira viagem pela costa brasileira, entre 2005 – 2007.
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Fiz dezenas de programas para a TV mostrando a especulação, o disparate das fazendas de camarão que decepam o mangue e são entregues de graça a políticos, um escândalo que só este site denuncia e, finalmente, a banalização da paisagem e eternização da pobreza dos nativos.
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Passados quase 20 anos, a situação permanece e se agrava.
Com a palavra, o colaborador José Barbosa.
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Esse estranho e perverso casamento de interesses, de dois povos de mentalidade extrativista, o pescador e o turista, vem produzindo efeitos devastadores não apenas para a orla da região, mas também para o sertão onde estão localizados os vilarejos de Castelhano, Carrapateira e a comunidade Quilombola do Iús.
Aldeia da Barrinha de Baixo
A aldeia da Barrinha de Baixo, ou simplesmente Barrinha, é uma região de alagamento que, na época das chuvas, forma grandes complexos de lagoas de onde proliferam vida selvagem e beleza natural incomparável.
O nativo, de olho na valorização dessas terras, deu início a um processo de grilagem e subsequente venda da posse dessas terras exuberantes. Pudera, qual o incentivo em preservar o lugar quando forasteiros realizam lucros milionários em sua terra de origem?
Em equilíbrio com o meio ambiente
Até à chegada do turismo, o povo originário dessa região viveu por séculos em equilíbrio com o meio ambiente. Sua relação com o espaço e a natureza é a espinha dorsal de sua identidade. Uma história falada, não escrita.
Cultura frágil, invisível e vulnerável
Sua cultura é rica em mitos e costumes, porém frágil, invisível e vulnerável. Durante todo esse tempo, esse povo orgulhoso habitou grandes extensões de terra que não tinham muito valor econômico. Terras inabitadas, algumas cultivadas, que muitas vezes tinham algum dono, mas que na prática eram de todos ou, para alguns, de ninguém.
Essas terras passarão a ter dono
Só que agora essas terras passarão a ter dono. Terras incultiváveis, de frente para o mar, em cima de dunas, de mangues ou praias, que aos poucos são cercadas e divididas por quem jamais as habitou e que poderia protegê-las.
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Um povo disposto a entregar sua própria riqueza natural, sua própria história, a um destino tão trágico. Nas dunas da Barrinha de baixo, e atrás delas, em lugares onde seria escandaloso cercar, já é possível ver a proliferação de estacas de madeira para demarcação discreta de terras.
Compradores não têm muito compromisso com a preservação: triste prenúncio.
E se o povo nativo não protege sua própria terra, para piorar, os compradores que vêm de fora não têm muito compromisso com a preservação do lugar.
Em muitos casos, cortam árvores e constroem suas casas, em cima de dunas, aterrando mangues, sem esgoto tratado, usando alvenaria, concreto e madeira de lei, vinda do Pará, “com nota fiscal”. Na região há grandes armazéns de madeira e materiais para construção. Outro triste prenúncio.
Preá
Atualmente, os terrenos na região são negociados por alguns milhões de reais ou algumas centenas de milhares de reais. Não se pode dizer que os compradores não saibam que estão cometendo crime ambiental.
Não há quem se preocupe com o problema, ao contrário, muitas vezes são incentivados pelos prefeitos. Eventualmente essas áreas de alagamento precisarão ser aterradas para que nelas sejam construídas casas e condomínios de gente abastada. Essa ocupação irá alterar o movimento orgânico das águas, das areias, das barras de rios (daí o nome Barrinha) e das marés que regulam esse fluxo de água.
Não por outro motivo, a ‘preferência por casas pé na areia, a erosão atinge mais de 60% do litoral do País.
Efeitos da falta de regulamentação
Os efeitos da falta de regulamentação nas transações imobiliárias da região, a ausência de um planejamento urbanístico, somados a um adensamento populacional repentino e especulativo, coloca em risco o meio ambiente e a infraestrutura pública.
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O desastre que se avizinha parece impossível de ser evitado. Na praia do Preá, CE, por exemplo, já não é possível reverter esse processo. Mas essa tragédia ainda pode ser evitada na praia da Barrinha.
Grandes projetos de desenvolvimento imobiliário
Os grandes projetos de desenvolvimento imobiliário são pensados e liderados por empresários estrangeiros e brasileiros apaixonados pelo kitesurf, entre eles um dos fundadores da XP Investimentos, que aliás já espalha sua marca pela orla da região em bandeiras que dizem “There is no bad wind” (nomes em inglês no litoral do Brasil são um péssimo presságio, vide o suprassumo do absurdo, Jurerê Internacional).
E realmente, na costa do Ceará, para desenvolvedores imobiliários com muito dinheiro, não tem vento ruim.
Condomínios, resorts de luxo e pousadas de charme: Uma meia verdade
Os condomínios, resorts de luxo e pousadas de charme que se proliferam pelas praias têm muito a ver com o desastre social e ambiental da região, porém nenhuma ou qualquer responsabilidade lhes é atribuída. Pelo contrário, para os especuladores imobiliários e os empreendedores da indústria do turismo, sua presença na região é geradora de renda e emprego. Uma meia verdade.
“Esta montanha de dinheiro está vindo”
“Esta montanha de dinheiro está vindo”, assim começa o artigo do Diário do Nordeste de 16 de dezembro de 2021 que ilustra a chegada do projeto de desenvolvimento imobiliário da Vila Carnaúba.
Um terreno comprado por 8 milhões de reais que prevê a construção de mais de 200 residências de luxo em um vila que tem hoje pouco mais de 150 casas vernaculares. Mais um caso de inversão demográfica que reforça e não lida com as próprias consequências da desigualdade social que produz.
Outra história que reverbera a nossa cultura colonialista refletida nas ambições dos arquitetos e desenvolvedores imobiliários é relatada no vídeo que se encontra na home page do site deste empreendimento (assista abaixo).
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Nele, um estilo de vida fantasioso é vendido a possíveis clientes, numa paisagem prestes a desaparecer. Paradoxalmente, esse desaparecimento se dará, entre outros motivos, pelas transformações decorrentes da chegada de projetos como esse.
Pequenos e médios empreendimentos
Entretanto, é importante ressaltar que dinâmicas desse tipo não nascem exclusivamente em projetos grandes como o da Vila Carnaúba. Pequenos e médios empreendimentos (e são muitos) abusam do uso de palavras como “sustentabilidade”, “artesanato”, “materiais locais”, “comunidade” para revestir, sem pudores, sua comunicação de marketing com o chamado “green wash”.
Rancho do Peixe
Outras histórias semelhantes, porém já bastante estabelecidas na região, incluem o Rancho do Peixe, pioneiro no desenvolvimento turístico da região e o Casana, um hotel com diárias a preços exorbitantes que descreve seu espaço como um lugar que tem “um sabor autêntico do Brasil”, mas que nos faz perguntar que sabor de Brasil é esse que mais se parece com um condomínio da Barra da Tijuca (muitos, com nomes na língua inglesa…).
Desastre social e ambiental
Enfim, é um desastre social e ambiental em pleno andamento, que encontra ecos em outras cidades praianas que um dia foram paraísos na costa do Brasil. Não faltam exemplos. O patrimônio ambiental e cultural desses lugares são dilapidados pelas mesmas pessoas que lá nasceram, em conluio com aquelas que lá decidem se instalar para dar vazão a uma paixão contraditória, que toma lá, mas não dá cá.
É difícil pensar que o nativo da Barrinha não queira também ganhar um pouco de dinheiro com a especulação imobiliária quando seus vizinhos recém chegados lucram com uma paisagem que um dia já foi deles.
Uma alternativa, tão utópica quanto os estilos de vida promovidos por esses empreendimentos turísticos, seria criar um alinhamento de interesses entre forasteiros e nativos, no qual uma partilha dos enormes ganhos econômicos auferidos com esses projetos pudesse ser dividida com o povo originário da região.
Em troca, o nativo poderia se ocupar com serviços ambientais e adotar uma postura responsável e de respeito às leis em que não haja grilagem de terras e ocupação ilegal em áreas de preservação.
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Falta combinar com os ‘russos’
Falta combinar com os capitalistas desconstruídos da Faria Lima, do Leblon e seu séquito, que querem instalar uma heterotopia neoliberal de pés descalços, como acontece agora com a praia do Preá, CE.
Um alerta do Mar Sem Fim:a situação pode piorar
E atenção: a situação pode piorar. E muito. O litoral brasileiro corre grande risco depois que a Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de emenda à Constituição que admite o repasse a Estados e municípios dos terrenos de marinha hoje em poder da União. Se o Senado aprovar, pode ser o fim do litoral tal qual o conhecemos.
Pense sobre isso, e faça sua parte (quanto às denúncias e posts, os leitores podem ficar tranquilos. Caso não queiram assiná-las, nós o faremos. Precisamos apenas, informações. Não podemos estar em todos os lugares da enorme costa brasileira com quase 8 mil km de extensão).
Assista ao vídeo promocional da Vila Carnaúba
Este outro vídeo tem tudo a ver com a cultura local, trata-se do Vila Carnaúba Wind House
Obrigada por uma matéria tão elucidativa e clara sobre os impactos só bapitalisno doente em areas tão pristinas. Esse modelo destrutivo está em todo o litoral brasileiro. Atualmente, parques estaduais costeiros no Espírito Santo estão sendo vendidos pelo próprio Estado a empresários que não têm relação alguma com as regiões e no momento, gerando muitos conflitos com as comunidades tradicionais de pescadores, que nem bem tem apropriado as suas áreas protegidas e estão sujeitas a essa especulação maldita do capital. Quem.sabe o MSF pode fazer uma matéria sobre esse caso?
O clássico dos clássicos teria sido Búzios, cujos pioneiros ainda estão vivo/as. A compreensão geral era clara e explícita – se chegar o asfalto acabou Búzios. Dito e feito. José Bonifácio Novellino que cometeu o asfaltamento (caso não me equivoque novamente), morreu há pouco, de câncer perverso.
Reportagem esclarecedora sobre o litoral do Ceará. Mas gostaria de saber a opinião do autor do artigo sobre a cidade e as praias de Maragogi litoral norte de Alagoas.
Mando meu email caso ele ou outra pessoa queira me responder: [email protected]
Obrigado.
Estive em Jericoacoara em 1993. Uma pequena e mágica vila, Sem turismo delinquente, sem eletricidade, sem gente gananciosa por destruir paraísos. É triste o que vai acontecer com o lugar. Infelizmente, pouco se fará para interromper isso.
Há de reconhecer que então você, mesmo involuntariamente, também contribuiu para a situação atual.
Acompanho João , com imenso interesse, essa sua dedicação em relação à preservação e aos ataques que o litoral brasileiro sofre. Mencionados nesta esportagem, ainda esta semana, pesquisando sobre o Preá, tive contato com a propaganda do empreendimento Vila Carnaúba e o Hotel Casana. Sobre divulgarem a expectativa exlusivista de “estilo de vida premium” (?), na verdade trazem escondido uma visão jeca de mundo, própria dos “noveau rich” deslumbrados. Infelizmente, quase regra, os donos do grande dinheiro não aprenderam a gastá-lo, digamos, com elegância. Mas isso é outra história, Quero alertar para a situação de Barra Grande, no Piauí. Point recém descoberto para a prática do kitesurf, o pequeno litoral de 63 km do estado tendem a receber esta mesma agressão. Um pouco mais para cima, Atins, no MA, uma das entradas do parque, também corre risco. Lá no canto do Atins, no restaurante da Luzia, me disseram que existe um projeto de resort e cassino para área, captaneado por um figurão de política. Abraço e boa sorte com sua luta.
Infelizmente, caro Marcelo, sei da situação de Barra Grande. Entrou na moda, ferrou-se em seguida como sempre acontece. Neste momento há uma corrida de pessoas com posses comprando terrenos, e partes grandes da praia, à espera da valorização que começa. O lindo, e riquíssimo (em biodiversidade) litoral do Estado me parece condenado.Sobre os cassinos e políticos sem vergonha, já escrevi neste post:Terrenos de marinha, PEC ameaça zona costeira (https://marsemfim.com.br/terrenos-de-marinha-pec-ameaca-zona-costeira/). Se esta PEC, de interesse de políticos ligados ao lobby dos jogos de azar, passar, então acabará todo o litoral brasileiro.Abraços