O sentido das águas, um guia para conhecer a Amazônia
Em tempos de COP de Belém, a Amazônia domina as redes antissociais. Fala-se de tudo e a disputa pela palavra inclui escritores, cientistas, ativistas, políticos, gurus, povos originários, economistas, empresários, ambientalistas, metidos à besta, etc. Estes, se misturam a “coletivos” de todos os tipos. Mas, hoje, vamos destacar um guia para conhecer a Amazônia.

No meio dessa enxurrada das redes antissociais, há quem entenda do assunto e contribua. Mas a quantidade de desinformados posando de especialistas é do tamanho do grande rio. Lembrei, então, das dezenas de livros que li sobre a região. E lembrei do último. Foi o de leitura mais gostosa, e riquíssimo em variados aspectos da vida dos ribeirinhos, das diversas etnias indígenas, dos missionários, dos soldados da borracha ou dos donos de barrancos, enfim, daqueles que contribuíram para moldar a Amazônia. Um livro que ensina ao contar pequenas histórias das andanças de seu autor pela região, um excelente guia para entender a Amazônia: O Sentido Das Águas- Histórias do Rio Negro, do médico, cientista, e escritor, Drauzio Varella.

À procura de plantas medicinais
A apresentação da obra nas lojas virtuais descreve o que o leitor encontrará. São cerca de 60 pequenas histórias, escritas com apuro, concisão, e sinceridade, em pouco mais de 300 páginas. Vale repetir o trecho:
“Grande afluente do Amazonas, o rio Negro percorre cerca de 1.200 quilômetros em território brasileiro. Às suas margens, florestas majestosas abrigam uma diversidade botânica incomparável. Quando folhas e galhos caem das árvores, decompõem-se nas águas e dão ao rio sua cor única — um imenso espelho âmbar que reflete as copas e o céu.”
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‘Um ambiente em que fantasia e realidade parecem se confundir’
‘Assim, nesse ambiente em que fantasia e realidade parecem se confundir, a beleza natural estonteante encontra par na variedade cultural igualmente rica e complexa dos povos que o habitam. Resultado de mais de trinta anos de viagens de Drauzio Varella pela região, O sentido das águas é um percurso singular pela bacia do rio Negro, suas paisagens e suas gentes, reveladas aqui pelo olhar curioso e empático do autor’.
Como dissemos, um guia para conhecer a Amazônia, despretensioso, curioso, e corajoso.
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No primeiro parágrafo Drauzio não esconde o fascínio, ao mesmo tempo em que se cobra por ter demorado tanto para conhecer a região.
‘Minha paixão pelo Rio Negro nasceu em nosso primeiro encontro. Quando vi aquela imensidão de águas escuras, a refletir feito espelho o mundo ao redor, senti o ridículo de ter vivido quase cinquenta anos no país em que nasci sem me dar conta de tamanha beleza’.
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Em artigo que publicamos neste site mostramos que o Brasil quase nunca deu atenção à Amazônia. Só nos viramos para ela depois de ser agredida e mal tratada à exaustão, com ainda maior ênfase recentemente.
‘A bacia do Rio Negro drena mais de 700 mil Km2’
A apresentação deste guia para conhecer a Amazônia escrita pelo autor é uma declaração de amor, de respeito, e fascínio, entremeados com muita informação. ‘O Alto Rio negro é a região com o maior índice pluviométrico do país…’
‘…Os números são astronômicos, a bacia do Rio negro drena uma área de 700 mil km2. Em volume de água é o sétimo do mundo e o rio nasce na Colômbia…Embora junto à foz a profundidade atinja cem metros, nos demais trechos pode atingir entre cinco e vinte metros na seca, tornando penosa a navegação…’

‘…Em seu leito estão localizados os dois maiores arquipélagos fluviais do mundo: Mariuá, na região de Barcelos, curso médio do rio, e Anavilhanas (saiba mais sobre o arquipélago), na parte baixa, que começa abaixo da desembocadura do Rio Branco e segue por 120 quilômetros na direção do Solimões…’
No Rio Negro a bordo do barco Escola da Natureza
A maioria das viagens de Drauzio foram feitas a bordo do barco Escola da Natureza, que é utilizado pela Universidade paulista (UNIP) em Manaus e pelo Colégio Objetivo, para aulas de botânica e ecologia com os alunos.
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O autor conta um episódio vivido em companhia do pesquisador Robert Gallo, um dos descobridores do vírus da AIDS, que perguntou quem fazia estudos sistemáticos da atividade farmacológica daquela biodiversidade botânica que tanto o impressionava.
‘Expliquei que havia estudos acadêmicos isolados. Ele ficou surpreso’.
-Se vocês pretendem preservar a floresta, precisam demonstrar a utilidade dela.
‘Meses depois desembarquei em Washington para uma visita ao Natural Products Branch, do National Cancer Institute (NCI), o maior centro mundial de pesquisas de atividade antitumoral em plantas, fungos, e animais marinhos’.
‘Fui recebido pelo diretor-geral, Gordon Cragg, um biólogo de sessenta anos nascido na África do Sul, visivelmente apaixonado pelo trabalho’.
Centro para pesquisar atividade contra células malignas
‘Ele se mostrou pessimista sobre a possibilidade de criarmos no Brasil um centro para pesquisar atividades contra células malignas em produtos naturais devido à xenofobia de nossas autoridade, que já havia afastado do país até mesmo pesquisadores estrangeiros interessados apenas na taxonomia das plantas brasileiras‘.
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Passados mais de 30 anos, no decorrer dos quais realizamos mais de cem viagens ao rio Negro, formamos uma equipe de jovens pesquisadores e coletamos plantas suficientes para preparar cerca de 2500 extratos.

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A parte mais rica, entretanto, foi conversar e ver como vivem os ribeirinhos e os indígenas diversos pelas beiradas dos rios. É transformador o contato com as etnias que habitam a bacia do rio Negro há mais de 12 mil anos, com costumes e a multiplicidade de línguas que sobreviveram apesar dos ataques continuados que escravizaram e dizimaram grupos inteiros no decorrer dos séculos.
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Este livro é um caderno de viagens, fruto de experiências que transformaram minha visão da biologia e me abriram as portas para um universo de infinita beleza natural, cenário de histórias épicas, de violências indescritíveis, febres epidêmicas, dominação, extermínio de populações originais, trabalho escravo e acontecimentos nos quais fantasia se confunde tantas vezes e de tal forma com a realidade que elas se tornam indistinguíveis uma da outra.
Comentários esparsos de Drauzio Varella em seu guia para conhecer a Amazônia
O garimpo ilegal devasta a floresta e espalha doenças como malária, infecções sexualmente transmissíveis, verminoses e desnutrição entre crianças e adultos. As principais vítimas são os povos indígenas, cujas terras sofreram invasões em proporções inéditas entre 2018 e 2022, durante o governo de um presidente negacionista.
Mesmo assim, o autor não demoniza os garimpeiros, que vivem sem alternativas. “No garimpo a gente às vezes tá rico, às vezes tá na miséria. O problema é que a riqueza dura dois, três dias, e a pobreza fica pra vida inteira”, disse um deles (saiba mais sobre o garimpo ilegal).
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Sobre os povos originais, ‘a tragédia vivida por esse povos originais foi completamente ignorada pelos brasileiros da época, e assim permanece até o presente’ (Grifo nosso), ao comentar aspectos históricos quando o Marques de Pombal, em 1759, ‘abriu espaço para que as tropas aprisionassem e escravizassem com mais liberdade os indígenas dessa área densamente povoada’.
Os ciclos da borracha
O que segue são alguns comentários sobre os dois períodos em que houve o ciclo da borracha, e nem de longe esgota as muitas informações contidas no livro. Nós apenas separamos alguns poucos trechos.
‘A partir da década de 1860, entretanto, com a valorização da borracha no mercado internacional, as exportações triplicaram. Ocorreu uma profunda transformação no cenário urbano e demográfico, O lugarejo de 10 mil habitantes, sem água encanada, sem saneamento, deu origem a um núcleo urbano com 75 mil habitantes em 1920, referindo-se a Manaus.

Drauzio conta de maneira bem-humorada a decadência deste período, ‘um processo iniciado pelo nosso já conhecido Henry Wickham, o botânico com fama de picareta’.
‘A cegueira de uma elite perdulária…’
E sobre as consequências: ‘A cegueira de uma elite perdulária que enriquecera com o extrativismo, sem acumular capital nem desenvolver outros ramos de atividade, levou à estagnação econômica iniciada em 1910 e que se prolongou até a década de 1960, quando foi criada a Zona Franca de Manaus‘.

Os Soldados da borracha
‘Os soldados da borracha viveram uma das tragédias épicas menos conhecidas da história brasileira’, assim Drauzio abre este capítulo, confirmando a omissão quase generalizada de que falamos.

Drauzio conta como o acordo de Getúlio Vargas com os Estados Unidos para que o Brasil produzisse a borracha essencial para o esforço da Segunda Grande Guerra. O relato surgiu de uma conversa com o amigo amazônida, Seu Bonifácio, cujo pai era nascido e criado no interior do Ceará. Um dia, voltando da roça topou com um caminhão do Exército.
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‘Perguntaram quantos anos tinha. Quando respondeu, 19, mandaram que se juntasse aos outros da carroceria. Estava convocado, compulsoriamente, para servir à pátria como soldado da borracha, na Amazônia’.
Cerca de 70 mil pessoas foram assim enviadas para a Amazônia, sem saber o que era aquilo, quais seriam as condições, pela companhia criada pelo governo, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia.
O Estado brasileiro lavou as mãos
‘Entregues na beira dos rios aos coronéis de barranco, assinavam contratos fraudulentos que os obrigavam a comprar dos coronéis tudo de que precisavam. A partir dali o Estado brasileiro lavava as mãos. As promessas de moradia, assistência técnica e aposentadoria como sargentos do Exército foram esquecidas’.
‘Repetiam-se o modelo e a estrutura socioeconômica vinda do passado e que se mantém até hoje nas áreas mais remotas: salários ínfimos, preços extorsivos, semiescravidão’.
‘Doenças, ataques de onças, jacarés, picadas de cobras e escaramuças com povos indígenas que reagiam à chegada dos estranhos explicam os altos índices de mortalidade dos seringueiros. O Sindicato dos Soldados da Borracha do Acre calcula que 35 mil trabalhadores perderam a vida nas matas. A título de comparação: dos 25 mil soldados brasileiros enviados para os campos de batalha italianos, na Segunda Guerra Mundial, 2700 foram feridos e 467 morreram’.
As ‘cidades flutuantes’
Depois de se estender sobre a ocupação desordenada de Manaus, Drauzio aborda as ‘cidades flutuantes’. ‘A crise da borracha e a grande enchente do estado em 1953 provocaram o êxito da população rural. Os bairros populares de Manaus incharam e os limites da cidade se alargaram para áreas mais distantes, sem luz, água encanada ou esgoto, As palafitas se espalharam pela beirada dos rios e igapós’.
Mais adiante, diz ele, pouco antes dos anos 1970 a população tinha chegado a 12 mil habitantes…Sem água ou esgoto as condições higiênicas eram deploráveis: água para cozinhar, lavar roupa e tomar banho vinha do rio, destino final dos dejetos produzidos nos flutuantes…
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…Casas com vários cômodos funcionavam como zonas de prostituição e bandidos cobravam pedágios dos moradores, à moda das milícias nas cidades de hoje’.
‘Como Manaus ficou cercada por um cinturão de pobreza’
…Com a chegada dos militares ao poder em 1964, foi nomeado um novo governador para o estado do Amazonas, que decidiu pela “extinção da {…} favela flutuante de Manaus…Para tanto em 1965 foi criada a Companhia de Habitação do Amazonas que organizou comissões para elaborar um ‘amplo processo de remoção dos 2500 barracos flutuantes com promessa de transferir seus habitantes para conjuntos habitacionais datados de infraestrutura , a serem construídos em bairros populares’.
‘Em maio de 1965 começou o desmonte, que levaria dois anos para ser concluído. Desorganizada e confusa a destruição das casas adquiriu características de expulsão dos moradores. A promessa dos conjuntos habitacionais foi esquecida: das 2 mil casas prometidas, foram entregues 130’.

‘Milhares de desabrigados migraram para a periferia mais distante, forçaram a floresta a recuar e ampliaram os limites da cidade. A ocupação de áreas sem serviços públicos nem saneamento básico originou bairros como Santa Luzia, São Jorge, Cachoeirinha, Aparecida, Mocó, e Compensa, que se tornaria o mais populoso. Manaus ficou cercada por um cinturão de pobreza’.
Esqueça os ‘arautos do apocalipse da COP30’, ou os coletivos da casa de Mãe Joana. Se você quiser aprender ao mesmo tempo em que se interna na Amazônia através de um texto apaixonado, lírico, mas comedido, fique com o guia para conhecer a Amazônia O Sentido Das Águas- Histórias do Rio Negro. Você não vai se arrepender.









