Entrevista de João Lara Mesquita para as Páginas Negras, da revista TRIP

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por Guilherme Werneck e Ronaldo Bressane
retrato Edu Simões

Que a capacidade de regeneração do mar seja impressionante – embora não infinita – sabemos desde a Antigüidade. O que não se conhece com clareza é a capacidade de os oceanos regenerarem um estilo de vida, uma carreira, um temperamento; a capacidade de os oceanos devolverem fé e força a quem já se julga sem rumo.

“Desnorteado.” Essa foi a palavra usada por João Lara Mesquita para definir seu estado de espírito quando foi forçado a sair da Eldorado – rádio que reconceituou e dirigiu por 20 anos. Caçula de uma das raras estirpes brasileiras que levam o jornalismo no DNA, os Mesquita, fundadores do centenário O Estado de S.Paulo, quando começou sua carreira o músico João Lara pegou uma rádio no fundo do poço. Sem dinheiro, sem prestígio, sem redação, sem nem mesmo funcionários. Todo mês tinha de provar à família que poderia seguir. Aos poucos, a rádio abandonava o traço absoluto de audiência e o zero de repercussão para se tornar uma das rádios com mais personalidade no país. Equalizou uma programação fora do convencional, em que o pop massificado anglo-americano não tinha vez, focando-se em música nova, seja brasileira, gringa, de raiz ou de vanguarda, jazz ou MPB, rock ou eletrônico. Agregou à surpreendente trilha sonora radialistas lacônicos, jornalismo militante e apreço aos esportes de ação – motociclismo, vela, alpinismo, surf. O compromisso com os ouvintes, que sugeriam que a rádio encampasse campanhas como Tietê Vivo, ao lado da paixão pelos esportes relacionados à natureza, pontificou a Eldorado como uma rádio pioneira na defesa do ambientalismo.

Aí, em 2003, o grupo Estado ruiu. O grupo de acionistas que geria a holding de comunicações – formada por dois jornais, uma agência de notícias, duas rádios e um portal na internet – chamou uma consultoria. O veredito: a família Mesquita deveria abandonar o castelo. Assim, cada um dos herdeiros foi alijado de seu feudo. E agora, João Lara? Enquanto a crise da família passava e o grupo se reerguia, o caçula permanecia dois anos em modo de segurança. Mal saía de casa, deprimido. Aos 50 anos, suas certezas eram movediças. “Me perguntei: o que é que eu sei fazer bem? Do que é que eu gosto? E toda hora a resposta era: o mar”, contou ele à Trip na sala de sua confortável casa no Jardim Lusitânia, um lugar forrado de livros sobre música e história – e muitos barquinhos de madeira e cartas de navegação. João Lara pegou seu veleiro Mar Sem Fim, puxou a âncora e tirou o peso de um piano das costas. Teve a idéia de documentar todo o litoral brasileiro, do Amapá ao Rio Grande do Sul, e oferecer a odisséia à TV. O resultado foi a bem-sucedida série Mar sem Fim, no ar em 2006 na TV Cultura. A série virou um par de livros publicados em outubro. E reinaugurou o radialista como um jornalista audiovisual, fotógrafo e apaixonado pela natureza – que em breve se lança em uma aventura audaciosa: documentar por três meses o litoral antártico.

Por quatro horas e doze cigarros – ele jura que um dia irá parar de fumar – , João Lara falou à reportagem sobre seu processo de regeneração profissional e pessoal, família, filhos, jornalismo, música, esporte, aventura, natureza. Em ondas, vinha e voltava o assunto que faz seus olhos brilharem: o mar. Que, segundo ele, precisa ser salvo com urgência – ou não nos salvaremos. A bordo.

Como é perder o poder de um dia para o outro?
Pra mim não tinha essa coisa de poder, juro. Fiquei desnorteado. É um filho que criei, como posso abandoná-lo agora? Que vão fazer com ele? Fiquei desesperado. Para quem que ia me oferecer para trabalhar?

Quanto tempo levou pra se reencontrar?
Passei pelo menos dois anos lost in space e, depois, fiquei meio desnorteado um ano e meio ainda. E comecei a me reerguer. Tentei ver se era possível arrendar uma rádio aqui em São Paulo. E simplesmente não tinha. As poucas que existem estão nas mãos de igrejas evangélicas, que fazem fortuna, não pagam imposto e nada indica que vão sair, porque estão dentro da lei.

Não pensou em ir pra uma gravadora?
Cheguei a pensar em gravadora, mas não era pro meu bico. Achei que talvez em publicidade, ou na área de museologia, algo ligado à arte. Tinha sido diretor do MAM, diretor da Cultura Artística. Mas fazer o que na área de museu? O que na área de publicidade? Com quase 50 anos de idade? Redator? Fazia spots muito bem, mas ia pedir emprego de redator? Aí pensei: se consegui vender a rádio num universo em 3 mil emissoras, porque não faço isso pra mim mesmo? Aí decidi que iria fazer o documentário que sempre sonhei. Nunca mais vou trabalhar pra outra pessoa!

Como foi esse desnorteamento na parte pessoal?
Foi terrível. Quando soube que ia sair, tive síndrome do pânico, emagreci 12 quilos, cheguei a pesar 62 quilos. Minhas pernas pareciam dois palitos de fósforo. Pensei que ia morrer, não sabia o que era síndrome do pânico. Um dia, estava indo para a Eldorado e ouvi o comentário do médico da rádio [Carlos Alberto Pastore] dizendo que se a pessoa tivesse quatro ou cinco dos sete sintomas de síndrome do pânico que ele enumerou, a coisa era grave. Eu tinha os sete!

E foi se tratar?
Quando fui me tratar, vi que a síndrome está relacionada à perda. Tive duas perdas vitais na época: me separei e perdi a rádio. Tinha perdas de memória… lia jornal, quando estava no segundo parágrafo não sabia o que tinha lido no primeiro. Comecei a ficar com medo de mim. Aí lembrei que palavras cruzadas eram um bom exercício, mas não conseguia me fixar em nada. Demorava um dia inteiro e não conseguia terminar a palavra cruzada. Saía para almoçar, quando chegava na porta no clube [Harmonia] não tinha coragem de entrar. Chegava a parar o carro, sair, e voltava. Era medo! Passei dois meses sem pregar o olho, insônia. É de enlouquecer! Procurei um médico, ele mandou tomar remédio e fazer terapia cinco vezes por semana. O remédio te deixa completamente zumbi, mexe com o metabolismo… Aos poucos, fui parando de tomar remédio, hoje estou zero bala!

Como foi esse processo de remédio e terapia?
Foram três anos. Chegava em casa e ficava prostrado. Sempre fui magro, mas achei que tava com câncer, aids.

Fazia esporte?
Sempre fiz atividade física muito intensa, sete dias por semana. Quando saía, esquiava, mergulhava, velejava, andava de moto, corria. Mas foram dois anos assim. Falava com alguns amigos: “Pelo amor de Deus, me ajuda”. E eles: “pega o seu barco, liga pra uma mulher…”. Ligar pra uma mulher? Eu mal conseguia falar! Libido então… Era uma das coisas que o Pastore falava: “Se você tem perda de memória, falta de libido, irritação…” Pensava: “Falta de libido? Eu nem sei mais o que é ficar com o pau duro, nem quando eu tô com tesão de mijo” [risos]. Não podia imaginar que houvesse no mundo um sofrimento tão atroz.

E como é que você teve a idéia de partir por barco?
Fiquei pensando que expertise eu tinha? Onde poderia trabalhar um cara com o meu perfil? Aí veio a idéia da televisão.

Você se encontrou como free-lance?
Estou feliz da vida. Por causa mesmo do trabalho na rádio, de estar numa empresa familiar e também por ter uma equipe grande, ou eu era pressionado pelo jornal ou pela equipe que queria melhores condições. Quando saí da rádio, me perguntava: “Vou ser feliz?”. É incrível fazer 90 documentários com uma equipe enxuta. Há tempos não sou tão feliz.

Por que fazer documentário?
Sempre gostei muito e comecei a prestar atenção nos canais que passam documentário. Me chocou o fato de que você pode ver programas sobre os lugares mais exóticos do mundo, mas sobre o Brasil que é bom, é um aqui, outro lá. Comecei a pensar o que estava faltando, e veio essa ligação com a costa, saltaram vozes sobre esse desconhecimento que o brasileiro tem com relação ao mar, o mais importante ecossistema do globo. Foi pouco antes de se soltar esse relatório dramático sobre o clima, mas ninguém fala que o clima na Terra é em função dos oceanos, das correntes quentes e frias.

Só se fala de continente e atmosfera?
Para dez matérias sobre o clima, nove são focadas no continente ou na atmosfera, o oceano passou a vir à tona porque falam que vai crescer e afogar Nova York, Bangladesh. Se fala pouco que o clima na terra é regulado por ele, que 80% do ar que respiramos vem da fotossíntese feita pelas algas do fitoplâncton.

Como começa a sua ligação com o mar?
Freqüentava desde pequeno e via a ignorância de gente que curte o mar tem em relação a ele. Comecei a sair de barco com meu pai nos anos 60. Peguei o litoral de Santos ao Rio de Janeiro praticamente virgem. Todo fim de ano a gente ia pra Angra dos Reis. Nos anos 70, duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. O “milagre brasileiro”, que fez com que sobrasse grana da classe média alta e na classe rica, e essa grana se transformou em casa de veraneio. E a abertura da BR101 rente ao litoral, sem planejamento nenhum. Quatro anos depois que abriu, o litoral de Santos ao Rio fodeu. Mangues foram aterrados para fazer casa de veraneio, hotel. Era chocante.

E como está hoje?
Uma tragédia. A primeira vez que fui pra Ilhabela, aquilo era uma tapera, pouco mais que uma vila caiçara. De repente, a cada ano que a gente ia aquele troço crescia e ficava cada vez mais feio. Quantos milhares de anos a natureza demorou para formar esse contorno da costa exuberante que a gente tem, para em cinco anos você destruir?

Levou isso em conta ao montar o programa?
Quando chega o ser humano, infelizmente, vira merda. Tomei a decisão de ser crítico, mas tive uma surpresa agradabilíssima com São Paulo. Quando desci do Oiapoque até aqui, prestando atenção, criticando, conversando, vi que é um milagre não termos destruído São Paulo. No sul do Estado até a fronteira com o Paraná, na Cananéia, está praticamente como Cabral viu.

A que atribui isso?
Há áreas de conservação nas mãos de pessoas de alto nível. Talvez o nível de informação e de pressão aqui em São Paulo seja maior. Atribuo isso à imprensa. Em outros Estados brasileiros, os jornais, as revistas, são de políticos. Aqui tem o Estado, a Folha, a Veja, veículos notoriamente críticos.

O que viu de pior?
A carcinicultura [criação de camarão], autorizada pelo Ibama, pelo município, pelo Estado, uma atividade que consegue numa tacada só fazer todos os crimes ambientais. A comunidade científica sabe, o Estado sabe que a maior causa de destruição de biodiversidade no planeta é destruição de habitat. Em segundo, é a destruição de animais exóticos. A carcinicultura faz as duas coisas de uma vez e ainda polui lençol freático, polui a água do estuário, um ecossistema importantíssimo, destrói o mangue, um berçário de vida marinha e protege a costa contra erosão. Além disso, ele retém nutrientes, peixes, crustáceos, moluscos dependem dele, e o mangue ainda filtra e melhora a qualidade da água. E os caras vão lá e detonam, cortam árvores, jogam metabisulfito nas piscinas para o camarão ficar cor-de-rosa, toneladas de antibióticos para tentar evitar pragas, depois pega essa água toda poluída devolve no estuário sem tratamento nenhum. É crime. E você vê fazendas de camarão financiadas com dinheiro público!

Quem financia?
O Fundo Constitucional do Nordeste, que eu não conhecia. Descobri que é um fundo para expansão de pequenas e médias empresas, que tem uma série de senões… entre eles, preservar o meio ambiente [risos].

Mas e o Ibama?
Nas questões costeiras, é um absurdo como um órgão. Não tem política, diretriz. É um samba do crioulo doido! Mas existem alguns gestores ótimos, e a costa não está totalmente destruída por causa dessas pessoas, que seguram algumas áreas na marra, sem estrutura nenhuma.
O que você viu de legal na costa brasileira? Em todo o canto, em toda região tem coisa boas também. Um exemplo é a grande maioria dos gestores de conservação da costa. Tem nego que é pura safadeza, em Estados, como Alagoas, aquilo é o Deus dará, uma judiação. Agora, conheci gente que merecia estátua, de tão corajoso, honesto, trabalhador. A constituição da Paraíba proíbe o espigão na orla, dominou a indústria da construção civil e dá exemplo para os outros 16 Estados costeiros. Uma ONG que não canso de citar é a AMECA (Associação dos Amigos do Carijós), da baía de Babitonga (SC). É tão pequena e pobre que não tem nem site, não tem doação nem patrocínio, mas processou a Petrobrás e ganhou, processou a Prefeitura do município, ganhou.

A costa é muito mal aparelhada também na questão portuária, não?
Totalmente. A gente não tem o direito ignorar isso. Nossa existência foi o mar! Somos filhos dos nautas portugueses. Tem muitos historiadores que defendem que a saga dos portugueses, uma das maiores epopéias da humanidade. Tenho profundo orgulho dos portugueses e adoro ler sobre isso. Em cada situação que às vezes eu tenho medo do mar, penso: “Devia ter vergonha!”. Com telefone satélite, GPS… quando a gente fazia viagem o cara chegava no porto e dizia: “Vocês são corajosos”, ficava roxo de vergonha!

Mas foi mesmo uma aventura… Não tem como não ser. Antes da viagem já até tinha sido assaltado na costa. Imagina, quando comecei a ter coragem de sair de novo depois da síndrome do pânico, entraram três caras no barco, amarraram a gente, botaram no banheiro, levaram tudo. No Amapá me roubaram, mas nem cheguei a encontrar o ladrão. E teve perigo. Toda entrada de rio a gente estava arriscado a perder o barco, ficar preso, dar medo.

Tem algum novo projeto?
Se tudo correr bem, no verão vou para a Antártida fazer uma série de documentários para a TV Bandeirantes.

Está preparado?
Dessa vez estou mais ansioso, não sei o que pode acontecer na Antártida. Na costa brasileira já tinha vivido uma carrada de situações, imaginava formas de escapar dos problemas. Na Antártida, não sei. Sempre imagino o pior. Estou com um barco novo, mais complexo que o veleiro, fico com um pouco de medo. Se passar por isso tão bem como passei pela costa, estou consagrado como marinheiro pra mim mesmo. Se precisar levar meu barco pra China depois disso, vou na boa.
Como é o barco?

É um troller, muito mais moderno, a motor. É um contra-senso, estou queimando combustível, o maior causador do efeito estufa, isso também me preocupa. Se pudesse, teria um veleiro. Mas pra ter um desse tamanho, eu teria de fazer o que o Amyr Klink fez, só que não tenho nome nem fama do Amyr para conseguir US$ 2 milhões pra fazer um barco. E ele vai se chamar Diogo Cão.

Quem foi Diogo Cão?
Um navegador português. É um nome exótico, de personalidade, e vem do mesmo poema do Fernando Pessoa de onde tirei o Mar Sem Fim. Começa assim: “Eu, Diogo Cão, navegador, deixei este padrão ao pé do areal moreno e para diante naveguei”. Achei que tinha a ver, o troller é parrudo, o Diogo Cão foi corajoso pra caralho.

Que acha de ter começado a ter turismo pra Antártida?
Muito perigoso. Tem que ser regulado, como é regulado em todas as regiões de turismo frágil.

O homem também é um ecossistema. Como você se cuida?
Quero viver trezentos anos, essa coisa de morrer com cem anos, pra mim, é pouco. Sempre gostei de vida ao ar livre. Fazia motociclismo, que precisava de força física. E quero ter isso tanto quanto puder. Por isso faço exercício físico rigorosamente. Quando encho de fazer ginástica, passo uma temporada pedalando, nadando. Final de semana, quando ia pro barco, sempre tinha que fazer isso… Sobe vela, desce vela. Só de estar em cima dele se equilibrando já é um exercício.

Antes de ir para a Eldorado você era músico?
Era estudante de música. Durante anos praticamente não ficava sem, estudava 24 horas. Hoje não ouço tanto. Eu mesmo não acredito, mas percebo que é desintoxicação. De vez em quando volto e pego coisas muito específicas, pra curtir, e essas sei exatamente onde estão. Mas a música foi muito poderosa pra mim durante muitos anos. Agora acho que preciso ficar sem, até pra botar a cabeça no lugar.

Como começou a ligação com a música?
Minha casa era muito musical. Naquele tempo tinha música diferente no mundo. Meu pai tinha uma belíssima discoteca de música brasileira, jazz, canções napolitanas, gostava de música erudita, era wagneriano. Todo dia ele chegava do jornal, tomava um drink, jantava e botava música. Era muito ponto dos amigos, toda vez tinha festa, aquela puta música alta e eu comecei a curtir assim.
Como era a sua relação com ele? Não tive uma relação boa com meu pai. Fui ter relação boa com ele adulto. Foi muito complicado, tinha essa dedicação dele com o jornal, o fato de ter quatro filhos. Meu pai era muito rigoroso com as obrigações, ele queria que a gente fosse bem na escola, tirasse notas boas, aprendesse. Me metia em aula particular, em latim, em inglês, em francês. Além da carga do colégio ele fazia questão disso.

Começou a estudar música com quantos anos?
Tarde, com 17 anos. Nem sabia bem o que fazer. Comecei com piano, música clássica. Fui teimoso e quis aprender a ler partitura. Me encantei com a história e resolvi ser maestro. Descobri que para isso precisava conhecer instrumentos de sopro, cordas, harmonia, contraponto… O segundo instrumento foi clarineta, depois estudei viola e fiz vários cursos de canto, de percussão, comecei a cantar em coral, fiz regência… Era péssimo estudante tradicional, tinha horror de escola e, de repente, com a música senti que dava pra entender.

Sempre foi mau aluno?
Sempre fui rebelde. Tomei pau na segunda série, no pré-primário já tomei minha primeira bomba e consegui a façanha de ser suspenso no terceiro ano primário!

Ainda toca hoje?
Não, mas faz tempo. Depois que cheguei dos Estados Unidos, fui estudar música lá, comecei a trabalhar na Eldorado. Entrei de cabeça e não dá para querer fazer as duas coisas.

Como você começou com vela?
Fazendo cobertura pra rádio. Quando a gente começou a fazer, pensou em que assuntos o rádio não cobria. Nos anos 80, quando assumi o Eldorado, o rádio tinha grandes limitações. Esporte era só futebol. Decidi fazer o que os outros não faziam porque se fosse competir ia tomar uma surra.

Que esportes projetaram o Brasil, trouxeram medalhas, campeonatos mundiais? Primeiro lugar naquela época, estourando, a vela.

E a partir da vela, vocês começara a abrir pra outros esportes…
Sem dúvida! Saltei de pára-quedas pra rádio. No motociclismo off road, eu fazia enduro, botava um gravador na pochete, microfone na queixeira, ligava e ia descrevendo “a planilha pede isso, agora tem um morro, tô em segunda, tô em tal velocidade”, caía! E dizia: “Ai, a moto está em cima de mim!” Depois corria pra um orelhão, mandava pra rádio, pegava a moto e continuava! Era uma maneira de chamar a atenção. Essas coisas de colocar no ar um maluco andando de moto ou cobrindo uma regata, chamava a atenção! E fez com que a gente ficasse simpático naquela comunidade.

Que rádio encontrou quando assumiu?
Assumi a direção em 82. Nessa época, tinha carta branca, mas dinheiro nem fudendo. A rádio estava em frangalhos. E tinha um grupo de gente de alto nível que queria fazer alguma coisa e não podia, e outros que se sentiam numa estatalzona. Criou-se duas equipes, uma que não se podia mandar embora, por causa de CLT, e outra que queria mostrar serviço. Tinha gente que tinha direito adquirido e não trabalhava. 99% do pessoal tinha sido contratado em 1958, no ano da inauguração. Descobri um sujeito alocado em Brasília desde 1958, um tal de Ari. Liguei pra ele, disse que tinha assumido a direção há um ano e meio e ele nunca tinha ido trabalhar. Pedi uma matéria e ele disse: “Estou contratado desde 58 e nunca me pediram pra fazer nada, não vou fazer”. Mas como? “Olha, sei que não é sua culpa, mas também não é minha” [risos]. A empresa largou o cara em Brasília sem cobrá-lo e ele adquiriu o direito. Quis demitir, mas o passivo era US$ 30 milhões! Tinha um outro “Ari” em São Paulo. Este eu pude obrigar a ir à emissora. Ele ia todo dia, ficava 40 minutos, comia uma maçã e ia embora, enquanto uma equipe de quatro pessoas se matava de trabalhar!

E como foi a mudança da programação da FM?
Também olhamos os concorrentes e vimos que tocavam só sucesso e mais dez músicas daquele gênero. A gente resolveu que ia tocar também música européia, africana… O mundo é mais que os Estados Unidos. A gente ficava ligado o tempo inteiro em músicas que não conhecia. Fizemos um comitê. só tocava a música se todo mundo dizia “Essa é do caralho!”.

Era democrático?
Muito. Eu tinha a decisão final, mas não lembro de ter tomado uma decisão contra a maioria. Usava esse poder pra comentar, jogar, provocar. Se os cinco do grupeto acham que é assim, deve ser assim mesmo.

Como vê a rádio hoje? Tem saudade?
Não posso falar uma coisa dessa. Eu tenho saudade dessa época, era uma coisa de todo mundo falar dane-se. trabalhava dez horas e ganhava uma merda de salário. Minha namorada na época ganhava de mesada mais do que eu ganhava como diretor. Não me incomodava nem um pouco, porque eu amava aquilo lá. E a turma que trabalhava comigo era a mesma coisa. E ai do cara que chegava em casa e não ia ouvir a rádio! Tinha sete rádios na minha casa, acordava já ouvindo.

Era workaholic ?
Totalmente. Mas não sabia disso. Uma vez minha segunda mulher me descreveu: “Ele é completamente workaholic”.

Soubemos de uma consultoria que afirma: dentro do Grupo Estado, a marca que mais tem chance de rejuvenescer é a Eldorado. Acha que contribuiu para isso?
Não tenho dúvida. Pode achar que é falsa modéstia. Tenho todos os defeitos do mundo, mas não esse. Se tivesse feito isso em Nova York, estava rico e famoso. Não tenho um puto no bolso. As coisas que eu faço é por maluquice, se errar não tenho como pagar colégio dos meus filhos no mês que vem. Não tenho fortuna.

Mesmo sem ganhar dinheiro, sempre teve um bom nível de vida, né?
Se disser que não sou rico, estou sendo um cretino. Sou um privilegiado, não tenho dúvidas disso, sempre fui e continuo a ser.

Como nasceram as campanhas da rádio, como a de despoluição do Tietê?
A Eldorado nunca bolou campanha nenhuma! Foram os ouvintes da rádio. Todas. A do Tietê, por exemplo. Estava acostumado a ir para o jornal passando por aquele esgoto, nem associava com rio. Fizemos um programa em acordo com a BBC mostrando que o rio pode ser despoluído. Uma equipe descia o Tâmisa, outra descia o Tietê. Mal acabou o programa e começaram a ligar pra rádio querendo doar dinheiro para a campanha. Que campanha? A gente só fez uma matéria! Aí chamei a atenção do pessoal da SOS Mata Atlântica. Eles fizeram um núcleo e nós divulgamos. Conseguimos um financiamento de US$ 350 mil do Unibanco, para manter o projeto por três anos.

E a campanha da Voz do Brasil?
Foi a mesma coisa. Na hora pior do rush em São Paulo, a gente começou a pedir permissão pra tirar do ar a Voz do Brasil e passar às 23h. A rádio apareceu com isso, a concorrência copiou e o governo ficou assustado. Um dia, decidiu não autorizar. Tinha acontecido um acidente no metrô. Os motoristas ficaram putos, porque já estavam acostumados. Foi tanto alvoroço que chamei o cara que proibiu pra dar uma entrevista na rádio explicando porque proibiu. Achei que ele ia pedir desculpa!

Pediu?
Nada! Entrou parrudo no ar, gritando. Saí da sala, entrei no ar, e comecei a bater boca com o presidente da Radiobrás, Maurílio Ferreira Lima. E ele disse que a Voz do Brasil ficava no ar. Então eu disse chega, encerrou a entrevista, vamos pro pau! Fizemos um abaixo assinado para fazer uma lei de iniciativa popular! Aí explodiu. Três dias depois, a rádio Bandeirantes aderia à campanha da Eldorado, mais um dia e a rádio Musical FM aderia, passou uma semana tinha 50 rádios. A gente começou a tirar do ar sem autorização, mas fiquei com medo porque podia perder a concessão. Levei o caso pro Yves Gandra [advogado constitucionalista]. Entramos na Justiça, ganhamos, criamos precedente e as outras rádios foram atrás.

Como era a relação da rádio com o grupo Estado?
Se a minha família tivesse me dado 1% do que gastou de consultoria, comprava um New York Times. Eu ia pro jornal e falava: olha, gente, o rádio é assim. Eu sei o que estou dizendo! Eles diziam, não, chama uma consultoria. Aí pagavam US$ 3 milhões, e depois de um ano os caras falavam exatamente aquilo que eu tinha dito. E isso porque a gente é tudo da mesma família, imagina se não fosse! Era uma coisa dramática.

Também tinha uma concorrência dentro do grupo, né?
Olha, eu percebi, mas nunca me passou pela cabeça, porque a idéia é somar e não dividir. As pessoas me perguntavam das campanhas e eu dizia: O Estado de S. Paulo não é um jornal. Ele nasceu pra acabar com a monarquia e implantar a república. A vida inteira o Estadão não fez outra coisa a não ser se engajar em campanha. Boas ou más, certas ou erradas, ele nasceu pra isso.

A rádio copiava isso?
Isso era a missão do Estado, e eu sou filho do Estado. Vamos fazer jornalismo, campanha, mostrar que os ouvintes são bons cidadãos e têm de praticar cidadania, porque aprendi de lá. E eu via que esses gols causavam mal-estar, ciumeira. Percebia sutilmente, mas nem por isso deixei de fazer. Não estava lá para reinventar a pólvora, mas para tentar fazer o que eu aprendi com o meu avô. Que foi macho, que quando precisou botar todas as fichas numa parada, perder e resignado voltar, fez e perdeu. Ficou sem nada e não arredou pé. E conseguiu retomar o jornal. Tentei traduzir o que entendia que ele fez no jornal na Eldorado.

Durante os últimos dez, quinze anos, ter uma empresa familiar era quase sinônimo de estupidez. Hoje isso está mudando um pouco…
Meu pai dizia isso e tinha razão: toda empresa do mundo começou familiar. Qual é a diferença do Estado pra qualquer outro jornal? Todos são iguais. Todo mundo cobre o Bush, o Lula, o buraco da sua rua. A diferença é o credo de cada um que está lá atrás. A maioria decidiu então juntar isto e jogar no lixo. Acho um terrível erro, todo o meu sexto familiar acha um terrível erro, mas a maioria venceu.

O conselho jogou o credo no lixo quando tirou a família?
Está jogando. Não posso dizer se já fez, porque ainda existe. O último Mesquita que sobrou lá é meu pai, que dirige a parte dos editoriais. E depois que não estiver mais lá?

Você já pensou em ir para o conselho?
Deus me livre! Tive esse desprazer durante um ano, coisa mais chata do mundo, eu não tenho a menor sensibilidade. É essa punheta de números, projeção e consultoria. Não ia nem se ganhasse um milhão de dólares por reunião! Juro que preferia pedir esmola a ter que fazer um negócio desse.

Chegou a ler a reportagem do Sandro Vaia [ex-diretor de redação do Estado] na Piauí?
Cheguei. Nada de mais. Não tem nada que eu possa desdizer, é aquilo mesmo. O Estado é daquele jeito, as famílias pensam daquele jeito. Nem meu pai achou a matéria ruim. Ali vi um homem de honra que tem 82 anos, que trabalha há 56 anos, não pensa um minuto na vida em outra coisa, nunca deu atenção pra filho, mulher, a não ser para o país, para o jornal. Acho lindo que ainda exista no mundo homens como ele. Tenho profundo orgulho de ver um sujeito assim, que não pensa em outra coisa na vida a não ser na missão, na importância que o jornal tem pro país que ele quer ver melhor.

Comentários

2 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito da entrevista de João lara Mesquita na revista TRIP.
    foi muito legal, gosto tanto que hoje vi também o programa de hoje do Rio Tocantins que foi muito bom a repotagem e espero que sempre teremos reportagem como essa Parabéns João vc é top com suas reportagens são muitas construtivas e proveitosa . Um abraço.

    • Olá,José Eugenio, obrigado pela mensagem. Fico feliz de saber que vc gostou. Em 2016, se Deus quiser, haverá outras reportagens. abraços, volte sempre!

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