Viagem do Naufrágio: Os argentinos e o Mar Sem Fim

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Viagem do Naufrágio: Os argentinos e o Mar Sem Fim, 24/3

 

Hoje será o terceiro dia de trabalho quase ininterrupto dos argentinos. São três jovens mergulhadores, um dos quais morou algum tempo em Manaus e arranha um português. Sebastián é seu nome. Incrível, me dei conta que ainda não sei o nome dos outros dois. Temos conversado diariamente trocando ideias sobre a melhor forma de executar as tarefas. Posso dizer que somos amigos apesar deles não saberem meu nome, ou o de meus companheiros de bordo, nem eu saber o nome de dois deles. Na Antártica é assim.  O espírito das pessoas muda. Não é preciso saber nomes para se tornar amigo de alguém. Basta estar na área e precisar ajuda.

A base Carlini (num raro momento de calmaria), baía Potter, a partir do Mar Sem Fim.

Aqui não se perde tempo com burocracia. Documentos, nacionalidades…Pra que se incomodar? As pessoas vão direto ao assunto. Estendem a mão e oferecem o que têm. Este é um dos aspectos mais fascinantes deste continente. Eu já tinha sentido este calor humano desde a primeira vez que vim, no verão 2008-09, quando saí de Punta Arenas e naveguei até a ilha Rei George a bordo do navio polar brasileiro Ary Rongel. Naquela ocasião eu planejava a vinda do Mar Sem Fim. Para conhecer “in loco” o que iria enfrentar logo mais adiante, pedi carona ao pessoal da Marinha do Brasil.

Ariel e a nova bucha.

Estive na base Comandante Ferraz e fiquei muito bem impressionado com o que vi. Seja pela complexa operação de apoio e logística da Marinha, seja pelo trabalho dos cientistas patrícios.

Não demorou muito para perceber quão duras são as condições de sobrevivência, mesmo para o pessoal que fica nas bases, e a solidariedade que surge entre todos. Naquela primeira viagem lembro do apoio que a nossa Marinha prestou para uma pequena base, se não me engano de búlgaros, que tinha ainda menos recursos que os nossos ( como é sabido o Brasil investe pouquíssimo em pesquisa científica, menos de 1 % do PIB).

Geral da base carlini e o impressionante Cerro 3 irmanos.

Antes de chegar em Ferraz paramos defronte à pequena estação para desembarcar combustível que o Ary Rongel trazia de graça para o pessoal. O mar estava grosso, os tambores cheios mal se equilibravam no bote de borracha escalado para o transporte. Foi comovente ver o esforço dos brasileiros num pequeno barquinho lotado, ameaçando naufragar pelo excesso de peso, observados ansiosamente pelos búlgaros, enfrentando ondas altas para deixar o material na praia. Sem isto os europeus não sobreviveriam no inverno.

Nosso leme reserva descendo.

No recente incêndio que destruiu a base Ferraz não foi diferente. Estes mesmos argentinos que estão nos ajudando, assim como seu comandante, participaram espontaneamente, enfrentando riscos, da operação de combate ao fogo. Os chilenos de Fildes (armada chilena(, e de Frei (aeronáutica)fizeram o mesmo. Eles foram prestar ajuda em botes de borracha (o pessoal de Fildes) já que o problema aconteceu de noite, sem possibilidade dos helicópteros levantarem voo. Acredite, não é brincadeira sair num bote de borracha, de noite, por estas águas assustadoras.

Leme quase na água.

Conversei com argentinos e chilenos sobre a triste ocorrência que arrasou nossa base. Eles estão tão consternados como se o acidente fosse com eles próprios.

25/3

Acordamos com um vento do cão zunindo lá fora. Algumas rajadas ultrapassaram os 50 nós. O trabalho de mergulho não pode nem começar. Felizmente não entra mar grosso na baía Poter, onde fica a base Carlini.

Na noite anterior falamos com o navio brasileiro Almirante Maximiano que está na área cuidando dos escombros da base brasileira. Tudo que pode ser retirado esta sendo levado para o navio. Ao mesmo tempo, os marinheiros cuidam de escorar o que sobrou, de modo que esta pequena parte não seja soterrada e destruída na estação fria que se aproxima.

O navio polar Amirante Maximiano chega em Potter para nos ajudar.

Quando a base funcionava no inverno ela era constantemente aquecida por dentro o que ajudava a derreter parte da neve que caía em seu teto. O excedente era retirado diariamente pelo pessoal de apoio. Neste ano não haverá ninguém na base Ferraz para tomar conta. Somente quatro brasileiros ficarão hospedados na base Frei (aeroneautica – Chile). Para evitar que o que sobrou seja destruído pelo peso da neve que certamente vai se acumular, o pessoal do navio está trabalhando agora, escorando as paredes e laterais, para minimizar o impacto. Mesmo assim o Maximiano veio até onde estamos por que só eles têm um torno a bordo, ferramenta fundamental para que possamos diminuir a grossura da bucha de nosso eixo.

Da esquerda para a direita: Ramón, Ariel, Sebastian. Chá quente e chocolate para aquecer depois dos mergulhos.

O Maximiano chegou ao meio-dia. Eu e Plínio fomos a bordo numa impressionante operação com o bote do navio em meio a toda esta pauleira de vento que desabou. Parecia filme de cinema. O bote, às vezes, ameaçava levantar vôo. Em outras situações as ondas simplesmente entravam dentro.

Impressionante paisagem da baía Potter, Ilha Rei George, Antártica.

Uma vez a bordo fomos direto para a área do torno. A peça precisa ser diminuída em 2 milímetros para entrar no túnel do pé de galinha do Mar Sem Fim. Falamos com o comandante que, enérgico e estressado, pediu pressa. Eles precisavam voltar para a enseada Martel, onde fica a base brasileira, o mais rápido possível.

 

O excepcional trabalho dos argentinos da base Carlini.

Às três da tarde já estávamos de volta ao nosso barco, em outra navegação espetacular com o bote que, desta vez, foi lastreado com sacos de areia pesando 300 kilos.

A hélice pesa 50 quilos, mesmo assim os argentinos conseguiram tirar e recolocar.

Aguardamos que o vento diminua para podermos retomar os mergulhos e saber se a operação deu certo.

26/3

Ontem o vendaval não deu sossego. Não tivemos um segundo de calmaria. Ao contrário. O Mar Sem Fim estava fundeado, mas caturrava (balanço no sentido longitudinal) enfrentando as ondas geradas pelo vento de tal forma que parecia que estávamos  navegando.

O suporte do eixo, ou “pé de galinha”, a bucha fica dentro dele.

De noite fizemos turnos na cabine de comando gelada (0º C) de modo a detectar qualquer arrasto do barco. Felizmente nosso ferro está grudado no fundo do mar como uma porca soldada num parafuso.

O Ary Rongel chegou e foi direto para a enseada Martel. Pelo rádio ouvimos conversas entre os dois navios polares brasileiros. Ambos trabalham nos escombros da Base Ferraz.

Ferramentas (do mar sem fim) usadas pelos valorosos argentinos.

27/3

Hoje o vento começou a baixar. Mas não acredito que será o suficiente para retomarmos o trabalho. No momento (14h30) as rajadas estão na casa dos 30 nós. É preciso descer mais uns 10, 15 nós, para que nossos anjos da guarda argentinos possam mergulhar.

Estamos na torcida.

A bucha defeituosa em minhas mãos.

Para adiantar o serviço já pedi nova previsão à Commanders Weather, empresa que contratamos, para saber qual a próxima janela de tempo para atravessarmos o Drake de volta à América do Sul, em segurança. Cerca de 500 milhas, ou pouco mais de 3 dias, já que o Mar Sem Fim cobre algo como 150 milhas a cada 24 horas, separam a ilha Rei George, onde estamos, do cabo Horn.

A Commanders já nos avisou que esta semana a possibilidade é pequena. Até sábado próximo a condição do Drake é inviável.

28/3

Mais uma noite de vigília na ponte de comando do barco. O vento diminuiu bastante, as rajadas não são  tão escandalosas, mesmo assim, por precaução, fizemos os turnos.

Nevou durante a manhã. A temperatura agora é de menos 2ºC. Mas os mergulhos ainda não foram retomados. Continua ventando acima da velocidade limite, 20 nós, adotada por segurança pelos argentinos.

Às 7 horas chamamos o Maximiano para pedir a previsão de tempo. Parece que hoje e amanhã vamos continuar com ventos acima de 20 nós. Resta torcer por um erro, uma breve calmaria, de modo que possamos voltar aos trabalhos. O mais difícil, tirar a hélice e a bucha antiga, foi feito. Com duas horas de mergulho, talvez um pouco mais, poderemos saber se deram certo os reparos e, em caso positivo, voltarmos a condições plenas de navegação.

Hoje parece que não teremos mais chances. Agora o relógio marca 4 horas da tarde, e os ventos continuam acima dos 20 nós.

Amanhã quem sabe.

29/3

Finalmente veio calmaria! Esta manhã o frio está de rachar, menos 4ºC, mas o vento esqueceu da gente. Já estamos fundeados bem perto da praia (de pedregulhos) que dá acesso à base Carlini, dos argentinos. Daqui onde estou já posso vê-los preparando seus equipamentos.

Daqui a pouco começam os trabalhos.

Espero que este seja o último dia.

Vou informando.

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