Ressaca de Julho: o que podemos aprender com ela?

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Ressaca de Julho: o que podemos aprender com ela?

Para nós, a ressaca de julho serviu para demonstrar o quanto estamos despreparados para lidar com os eventos extremos cada vez mais frequentes e devastadores. Não me recordo de ter assistido cenas tão brutais no litoral Sul e Sudeste do País, salvando-se apenas o do Espírito Santo. As cenas nos mostraram o custo da insistência com a ‘vista para o mar’, esta obsessão que não aprendemos a dominar, nem o Estado, muito menos os particulares. A volúpia em construir próximo demais do mar já está nos custando milhões em prejuízos todos os anos. Entretanto, estamos apenas no começo. O que vimos nos últimos dias do mês de julho é um aperitivo do que vem pela frente.

Todos erraram: o Estado e cidadãos

Quando dizemos que o Estado também errou significa que estamos falando da infraestrutura próxima ao mar: estradas, vias públicas, calçadões, refinarias, turbinas eólicas, e até cidades foram erguidas onde não deveriam e continuam assim.

Já a parte que cabe aos particulares, em outras palavras, empreendedores e cidadãos comuns segue o mesmo e equivocado conceito. As casas-pé-na-areia são as mais valorizadas. E não são apenas casas, mas prédios, resorts, enormes complexos turísticos, etc.

Balneário Camboriú depois da ressaca de julho.
Balneário Camboriú depois da ressaca de julho.

O que ficou claro nas imagens que assistimos? Ficou óbvio que a maioria de nossas praias não têm mais para onde ir, elas estão reféns do nosso egoísmo e falta de tato ao lidar com a zona costeira. Contudo, o que mais nos incomoda é que parece que não queremos aprender. A brutal ressaca de julho não serviu para um alerta por parte do poder público, ou da mídia. E isto é o que mais nos impressiona.

Se não fosse a teimosia poderíamos salvar praias ainda não ocupadas

Marina Silva, em seu messianismo fora de moda, continua a ignorar olimpicamente a zona costeira. Nem a devastadora ressaca consegue tirá-la de seus devaneios para encarar os problemas da zona costeira. Já dissemos por aqui que, enquanto o mundo replanta mangues e restingas, no Brasil seguimos decepando estas importantes barreiras contra eventos extremos e protetoras das praias.

Comentamos, por exemplo, o caso de Dubai, na Península Arábica, na costa sudeste do Golfo Pérsico. A cidade agora prevê transformar seu litoral com o maior projeto de regeneração costeira mundial. O ambicioso plano envolve o plantio de mais de 100 milhões de árvores de mangue, protegendo a cidade da erosão e do aumento do nível do mar.

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Garopaba e a ressaca de julho
Veja-se o caso de Garopaba, a cidade foi construída em cima de áreas de restingas/dunas. Agora com a ressaca de julho tudo que se pode fazer é torcer para que os prédios continuem de pé. Imagem do Instagram @maisgaropaba.

Falamos do caso de Singapura que, enquanto a maioria dos países à beira-mar perde terreno para a erosão acirrada por eventos extremos, a cidade-estado espantou o mundo porque está aumentando o seu com um complexo arcabouço de medidas que também inclui o replantio de manguezais.

Países tão díspares como a Nigéria, o Quênia, Papua Nova Guiné, na Oceania, ou ainda o Camboja no Sudeste Asiático, além de Panamá, Colômbia e Equador, na América Latina, estão na mídia internacional pelo trabalho de replantio de mangues e restingas que fazem em seus litorais. Muitos destes projetos saem a custo zero para os governos, eles são financiados por fundos fiduciários à procura de bons projetos ambientais.

Balneário Rincão e a ressaca de julho
Balneário Rincão, SC, veja como a construção que foi desmantelada estava em cima da areia da praia. Imagem, Luca Sabino, prefeitura de Rincão.

Enquanto isso o MapBiomas (Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil) revela que entre 2001 até 2016 os manguezais perderam  20% de sua área, em parte por causa da expansão urbana. Veja bem, expansão urbana, ou seja, responsabilidade do Estado.

‘As praias do mundo podem sobreviver à escassez de areia?’

O subtítulo está entre aspas porque é o título de uma interessante matéria que o Financial Times acaba de publicar: Can the world’s beaches survive a sand shortage?

O texto realça que o o problema da infraestrutura colocada próxima demais do mar não é exclusivo do Brasil. ‘De Miami a Barcelona e à Gold Coast australiana, os governos estão tentando descobrir como salvar — ou retardar — o encolhimento de suas costas nos próximos anos’.

Praia de Ponta Negra, Maricá
Praia de Ponta Negra, Maricá, e as 18 toneladas de lixo levadas pela ressaca de julho. Imagem, Somar.

“O fato de as linhas costeiras se moverem e mudarem não destrói praias, manguezais, áreas alagadas, ou qualquer coisa do tipo”, afirma Rob Young, professor que estuda gestão costeira na Western Carolina University. “O que as destrói é quando colocamos infraestruturas no caminho.”

‘Brincando de Deus’

A matéria do  FT prossegue com outra observação relevante: “Acho que estamos tentando brincar de Deus”, diz Gary Griggs, professor da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, que estuda engenharia e processos costeiros. “As pessoas precisam aceitar a ideia de que o clima está mudando e parte disso é o aumento do nível do mar.”

O jornal inglês mostra que a forma mais comum de lidar com a erosão nas praias é o que no Brasil se chama de engorda de praias. Em outras palavras, repor a areia que é tragada pelos eventos extremos. Mas lembra que  ‘a alimentação de praias é temporária e requer reaplicação. A longevidade do tratamento depende muito das taxas de erosão locais, do clima e da geologia, bem como da infraestrutura construída perto da costa’.

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Saquarema debaixo d'água depois da ressaca
Saquarema debaixo d’água depois da ressaca.

Por outro lado, a outra opção “estruturas rígidas” como quebra-mares artificiais, podem piorar a erosão em áreas vizinhas ‘ao refletir a energia das ondas de volta para a praias vizinhas por exemplo’. Em vez disso, melhor seria a construção de recifes artificiais como muitos especialistas recomendam.

Piçarras vai engordar a praia pela quarta vez em 30 anos

Como lembrou o Financial Times, ‘a alimentação de praias é temporária e requer reaplicação’.

Então, qual é a solução? Primeiro, reconhecer que não existem respostas fáceis. O melhor é evitar repetir erros em praias ainda livres de ocupação. No Brasil, a engorda também precisa ser refeita. Em Balneário Piçarras, Santa Catarina, a quarta engorda está a caminho em apenas 30 anos, ao custo de R$ 38 milhões de reais. E tem mais. Menos de um ano depois da primeira engorda em Balneário Camboriú, surgiu um enorme degrau na praia Central que exigiu novo aporte de areia.

Degrau na praia Central
Degrau na praia Central de Camboriú em outubro de 2022. Houve necessidade de reposição de areia.

Além disso, dois anos após a engorda em Balneário Camboriú o município precisou refazer 70 metros de faixa de areia destruídos por ressacas.

Para o ecólogo marinho e professor de oceanografia da UFSC, Paulo Horta, a engorda de praias significa ‘tampar o sol com a peneira’. ‘O projeto de Camboriú deveria ter sido acompanhado de outros estudos e medidas, como instalação de recifes artificiais para contenção da ação erosiva das ondas e aumento da biodiversidade’.

Balneário Camboriú depois da ressaca de julho
Balneário Camboriú depois da ressaca de julho. Vem aí novo engorda…Imagem, Inalda do Carmo, Reprodução.

Paulo Horta disse ao jornal O Globo que ‘a urbanização dos litorais, com novos edifícios e construções de barragens (em rios), dragagens de sedimentos e outras ações impedem o transporte de sedimentos, o que deixa a praia “passando fome”.

— Se impõe a necessidade de restaurar a saúde das regiões costeiras. Para isso, precisamos restaurar a saúde dos ecossistemas dessas regiões, pensando nos sistemas recifais, bancos de gramas marinhas e marismas. Possibilidades que precisam ser pensadas como aliados das intervenções de engordamento da praia.

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Faltam planos de ação governamentais para o litoral

Conforme estudo do Mapbiomas o Brasil já perdeu 15% de suas praias e dunas desde 1985. Portanto, é mais que hora de termos um plano nacional que envolva os especialistas para estudar cada caso, enquanto seria bem-vindo um plano nacional de replantio de mangues, restingas, gramas marinhas e marismas como sugeriu Paulo Horta. Esta é uma das obrigações do Ministério do Meio Ambiente que, entretanto, age como se o litoral não fosse sua responsabilidade.

Mesmo com todas estas imagens chocantes não houve sequer um pronunciamento do MMA.

Obras públicas em cima das praias, e omissão quanto ao corte de vegetação costeira

Para nós o pior é que o tipo de exemplo que a ressaca de julho nos deu não impede que o Estado continue propondo obras estapafúrdias na orla. Este é o caso do Polo Turístico Cabo Branco, em João Pessoa, obra do governador da Paraíba, João Azevêdo (PSB) que se gaba  ‘do maior complexo turístico planejado do Nordeste’ feito em área de 654 hectares de Mata Atlântica.

Via pública na baía da traição, Paraíba.
Note a distância da via pública na baía da Traição, Paraíba.

Praia Grande, em Santa Catarina, na região da Grande Florianópolis, está perdendo sua restinga para a especulação imobiliária e, mesmo com laudo do Ibama expondo informações enganosas e omissas no processo de licenciamento ambiental IMAVEG/83492/CRF, o governo do Estado não age e o processo segue adiante.

Rodovia-ES-060-Meaipe-Guarapari-em-2019.
Mais um erro do Estado, desta vez na rodovia ES, 060, Meaípe-Guarapari.

Na Bahia constroem um resort em cima de uma falésia, que não deveria ser ocupada, situada numa das duas últimas praias desocupadas da região, a praia do Taípe, e o Estado finge que não vê.

No Ceará, na praia do Preá, o empresário paulista Júlio Cápua constrói um imenso complexo turístico em cima da vegetação que fica atrás da praia, em outras palavras, a restinga ‘protegida’, vende cada lote por milhões, e gaba-se de ser uma ‘“cidade planejada”.

praia do Preá
A obra ‘sustentável e planejada’ do empresário Júlio Capua, em cima da restinga da praia do Preá.

Em São Luís, no Maranhão, o governador Carlos Brandão (PSB) assinou a Ordem de Serviço para o início das obras de prolongamento da Avenida Litorânea, gabando-se de que será a mais importante realização do seu Governo. Como mostra a imagem abaixo, em cima da vegetação que protege a praia.

avenida litorânea São Luís
Obra pública vai deixar todas estas praias reféns dos eventos extremos. Fazemos questão de não aprender com erros do passado.

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