Estação Puerto Bahia Fildes, na Antártica, é destruída por incêndio
Aconteceu outra vez. Seis anos depois do incêndio que destruiu a base brasileira Comandante Ferraz, na Antártica, na mesma ilha Rei George, ontem foi a vez da Estação Puerto Bahia Fildes, da Armada do Chile. Felizmente não há registro de mortos ou feridos. Para este escriba, o acidente é duplamente doloroso. Foi ali, ao lado dos ‘imprescindíveis‘ chilenos, que passei os dias mais dramáticos e emocionantes de minha vida. Nesta quinta, 12 de julho, ao abrir meu celular, quase caí da cama ao ver as fotos e vídeos que me foram enviadas pelo Capitão de Fragata, Eduardo Rubilar Mancilla, meu cicerone à época do naufrágio do Mar Sem Fim.
Uma amizade que nunca mais se desfez
Era abril de 2012, quando naveguei até a saída do Drake, fundeando em frente à Capitania Puerto Bahia Fildes, da Armada do Chile, à espera de melhora no tempo para atravessar de volta para a América do Sul.
Mas os erros cometidos naquela viagem cobrariam seu preço. Depois de mais de uma semana lutando 24 horas por dia para que o querido Marzão não naufragasse, debaixo de um vendaval que oscilava entre 50 e 75 nós de vento (entre 100, e 150 km/h), na manhã do dia 6 de abril recebemos uma previsão de tempo que não deixava dúvidas: naquela noite um furacão iria entrar, como se o que já enfrentávamos há dias não fosse também um furacão…
Pedindo resgate ao pessoal da Capitania Puerto Bahia Fildes
Não restou alternativa a não ser pedir resgate aos chilenos. Pelo Mar Sem Fim, e para evitar um acidente ecológico, tínhamos feito o humanamente possível até aquele momento. Insistir, seria colocar em risco de vida os três tripulantes: Plinio Romeiro Jr., Alonso Goes, e Manuel de Souza. Pelo rádio de bordo conversamos com os chilenos que já nos ajudavam há dias.
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Para que tivéssemos um ponto de referência, debaixo da pauleira que enfrentávamos, eles acendiam todas as luzes e holofotes da Capitania, para que pudéssemos ao menos ver um ‘clarão’, e assim saber se estávamos fundeados no mesmo local, ou subindo nas pedras que circundam a praia. Com o vento e a neve que caía continuamente, não se enxergava um palmo adiante do nariz. Não demorou para que viessem. Eduardo Rubilar comandou a manobra da praia, que ainda contou com a ajuda indispensável do russo Ruslan Eliseev, da base Bellingshausen, que fica na mesma enseada.
Foi o que bastou para ficarmos intimamente ligados até hoje
A partir deste momento ficamos na estação chilena que agora se resume a cinzas. Ela foi nossa casa e porto seguro depois que fomos obrigados a abandonar o Mar Sem Fim. Em questão de minutos nos tornamos grandes amigos. Amizade que perdura até hoje. Vivemos momentos dolorosos juntos. Como ver a baía, defronte à base chilena, repleta de gelo no dia seguinte à nossa chegada.
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Ou, pior que isso, ver o Marzão naufragado no dia seguinte…
Homenagem antes de partirmos
Depois do naufrágio, em 9 de abril de 2012, não havia mais nada a fazer, a não ser dar o fora dali o quanto antes, ou ficaríamos todo o inverno presos na base. Durante esta estação, ninguém sai ou entra na Antártica. O congelamento do mar, o tempo ruim, com 24 horas de escuridão, não permitem. Foi o que disse-me Rubilar na manhã do naufrágio: “saiam antes que seja tarde demais.” Enquanto aguardávamos o voo da DAP o Comandante Eduardo entra na sala da Capitania onde havia uma festa de aniversário para um de seus comandados, pede que abaixem o som, e começa um discurso em nossa homenagem. Ele fala do sofrimento e emoções pelas quais passamos juntos. Foi forte. Forte até para aqueles duros marujos, acostumados a lidar com situações difíceis.
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Para que não esqueçamos, Eduardo oferece para cada um, um diploma marcando nossa presença na Base Fildes, e uma bandeira do Chile.
Foi demais. Fiquei arrepiado. Um frio gelado subiu minha espinha até a nuca. Lágrimas brotaram instantaneamente. Olhei para meus companheiros. Todos choravam. Foi a maior emoção que já senti. Em retribuição, coloquei a bandeira chilena, o “pabellón Nacional” a que ele se referiu, no bolso superior esquerdo de meu macacão, “o lado do coração”, expliquei. E no mais puro portunhol, ou “antártico”, olhei para aqueles homens de pé, em círculo, e recitei:
Há homens que lutam um dia, e são bons; há outros que lutam muitos dias, e são muito bons; há homens que lutam muitos anos, e são melhores; mas há os que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis!
E concluí:
Usteds, personal da base Fildes, son imprescindibles. Muchas gracias por todo.
Deixando Rei George
Às 18 horas deixamos a base chilena em direção ao aeroporto. Plininho, o maior caráter que já conheci, pessoa de lide fácil, ao mesmo tempo durão e emotivo, ganha a simpatia de qualquer cristão em segundos. Com os chilenos não foi diferente. Felipe, o segundo do Comandante Eduardo, vira-se para mim, aponta o Plínio, e diz: “Que personagem, João, que personagem!” Quando Plininho sai da base os chilenos se perfilam, e cantam Aquerela do Brasil aplaudindo meu amigo. Fiz força pra não desabar outra vez. Entramos no carro que nos levaria. Os chilenos se aproximam, abrem a porta e gritam em uníssono:
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Brasil: hip, hip, Urra! Brasil: hip, hip, Urra! Três vezes em seguida. Às 18h42 do dia 7 de abril, emocionados e atordoados, levantamos voo em direção à Punta Arenas.
Apenas três dias juntos…
O curioso disso tudo, é que ficamos apenas três dias juntos. Mas parece que nossa amizade tem mais de 20 anos. Quanto vale isso?
Por que incêndios são dramáticos na Antártica
Simplesmente porque o ar é extremamente seco. A secura é semelhante a de desertos. Depois que o fogo começa, não há como extingui-lo. As chamas devoram o que estiver pela frente. Por isso Comandante Ferraz virou pó. E foi o que, infelizmente, aconteceu novamente, desta vez aos nossos grande amigos chilenos. Sinto tanto quanto eles. E fico extremamente feliz por, ao menos desta vez, não haver registro de vítimas.
Dotação neste inverno era de dez pessoas
Notícia da Prensa Antártica informa que a equipe da Armada do Chile era composta por dez pessoas, e que todos passam bem. Ainda não descobriram motivo do incêndio. O Mar Sem Fim especula algumas possibilidades: como todas as bases científicas da Antártica, Puerto Fildes era abastecida por diesel…
Um problema nos geradores, tal qual o acontecido em Ferraz, pode ter sido o responsável. Assim como um curto-circuito nas instalações elétricas. Mas, o melhor, é aguardar o final da investigação.
O resgate do Mar Sem Fim
Um ano depois do naufrágio, no verão de 2013, voltei à Antártica, desta vez a bordo do navio Felinto Perry, da Marinha do Brasil. O navio partia para ajudar a reconstrução de Ferraz, incendiada no mesmo ano do naufrágio.
Eu, Plinio, e uma equipe de cinegrafistas, fomos resgatar o Mar Sem Fim e fazer documentários mostrando a faina. Mais uma vez, onde foi que ficamos depois que o Felinto Perry partiu?
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Na Capitania Puerto Bahia Fildes, desta vez comandada por Marcelo Villegas Vira. Éramos da mesma família. Mais uma vez fomos tratados como irmãos, e assistimos a solidariedade antártica se manifestar com todo o seu esplendor.
Trabalharam pelo resgate, brasileiros, chilenos, russos, chineses, enfim, representantes dos oito países que têm bases em Rei George. Houve festas na praia, na Capitania, e na base chinesa, onde participamos da comemoração do Ano Novo Chinês, uma festa maravilhosa. E ficamos ainda mais amigos dos chilenos.
Aos ‘imprescindíveis chilenos’
Meus queridos amigos, assim como vocês sofreram com o naufrágio do Mar Sem Fim, como se ele fosse seu próprio navio, eu também sofri a perda ‘de minha casinha e porto seguro’ na Antártica. A vida é assim. Impõe adversidades só para testar nossa fibra. Bola pra frente, diz um ditado brasileiro. Nós já provamos inúmeras vezes nossa fibra. Não vai ser este fato novo a nos derrubar. Viva Chile!
Assista ao vídeo:
Assista a este vídeo no YouTube
E também este:
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Fonte: https://prensaantartica.com/2018/07/12/incendio-destruye-instalaciones-de-la-gobernacion-maritima-en-el-territorio-antartico-chileno/.
Pela frequência dos incêndios acredito que falte um bom projeto de Proteção, detecção e combate automático a incêndios nestes locais.
Caro João Lara Mesquita,
É triste saber da perda chilena – nas viagens do Proantar, no “Besnard” e na estação Ferraz também tínhamos contato-rádio com a Cap Puerto Baía Fildes e usávamos seus úteis serviços de guardiães da navegação local. Mas agradeço-lhe pela notícia sobre o incêndio, e pela bem colocada e, neste novo momento de adversidade, imprescindível recapitulação do fraternal e solidário apoio que vocês receberam dos chilenos no naufrágio e salvamento do “Mar Sem Fim” em 2012. Esta sua manifestação é mais uma evidência da sua nobreza de caráter e de sentimentos! Com tais exemplos dignificantes, mantem-se viva a tradicional solidariedade antártica!
Grande abraço,
Rubens J. Villela
Rubens, querido, muito obrigado por seus comentários sempre bem- vindos e mais que corretos. Aprendi com você, meu amigo, como disse, quando fiz minha viagens, levava a bordo suas matérias para o Estadão, desde os anos 50. Saudades de um bom bate- papo. Grade abraço, e até breve.
Mi estimado Joao no puedo mas que agradecer tan noble comentario hacia la hoy en ruinas Capitanía de Puerto de Bahía Fildes.
Como muy bien dices, la vida nos pone dificultades, no para desmoralizarnos, si no para fortalecernos y con ello sacar experiencias y mejorar nuestro ser.
Lo que hoy parece una desgracia mañana será una oportunidad y lo que ayer fue un naufragio hoy es una amistad.
MIs queridos Mar Sem Fim, siempre tendrán un lugar en el corazón de los que otrora definieras como “Los Impresindibles”.
Gracias amigo, fuerte abrazo!!