Orcas da Península Ibérica e seu estranho comportamento
Antes de mais nada, a partir de 2020 um grupo de orcas da Península Ibérica passou a chamar a atenção de velejadores, autoridades portuárias e pesquisadores. Apesar de ser um animal que sabidamente não ataca seres humanos, de uma hora para outra as orcas da região passaram a interagir sobretudo com veleiros, mas não apenas. Há relatos, poucos, de contatos com barcos de pesca. Recentemente, no final de julho de 2022, aconteceu novamente. À primeira vista, seriam dois ataques no mesmo dia. Num deles, na costa de Portugal, o veleiro afundou. A mídia internacional tem dado amplo destaque aos fatos. Assim, as redes sociais igualmente trazem relatos quase semanais. Invariavelmente, as matérias dizem que ‘cientistas procuram respostas’ para o comportamento incomum.
Algumas questões sobre os ataques das orcas
Inicialmente, vamos registrar que estes encontros acontecem sobretudo na região da Península Ibérica e imediações. Os litorais de Portugal e Espanha concentram a maioria dos casos. Entretanto, já houve relatos na costa francesa e do Marrocos. Contudo, restringem-se a estes trechos. Como exceção, houve um único caso no litoral baiano.
Outra similaridade é que quase todas descrições coincidem em mais um detalhe: os animais se aproximam do leme das embarcações, algumas vezes quebrando-os. Este site já leu diversos casos diferentes, porém sempre com mais este detalhe singular.
Por último, ainda não surgiu uma explicação que encerrasse o mistério. Uma coisa, entretanto, é certa: todas alertam que pesquisadores estão atônitos, ou que não sabem o motivo, mas têm sugestões.
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Conheça as orcas
São predadores do topo da cadeia. Um animal altamente evoluído. As orcas são capazes de adotar técnicas de caça inesperadas, porém quase sempre distintas entre os vários grupos que se espalham pelos oceanos. Por quê?
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Pesquisadores concordam que as orcas geralmente vivem em clãs. Os grupos normalmente são de poucos indivíduos, variando entre uma dezena até 50 animais, entretanto, o mais comum são grupos menores de até 15 animais.
Às vezes há grupos que se sobrepõem em determinadas áreas. Contudo, todos ‘respeitam’ sobretudo indivíduos do sexo feminino. Em outras palavras, são matriarcais. Além disso, outra característica marcante é que caçam em conjunto.
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Navio de cruzeiro aporta em NY arrastando baleia na proaBaleia cinzenta, tida como extinta, foi vista no AtlânticoSexo entre jubartes é fotografado, as baleias eram do sexo masculinoSegundo o www.killer.whale.org, ‘As ligações entre uma fêmea e seu filhote são as mais fortes dentro de um grupo social de orcas, mas quando crescem deixam a mãe para viajarem sozinhos ou com outro grupo. Ao contrário de outras espécies do reino animal, as orcas fêmeas são as dominantes em sua sociedade’.
Entrevista esclarecedora com um especialista brasileiro
Tão logo estes encontros começaram o Mar Sem Fim entrevistou o professor do Instituto Oceanográfico da USP, Marcos Cesar de Oliveira Santos, especializado nestes predadores.
Nós igualmente estávamos perplexos com a novidade que, para alguns, ‘parecia um ataque’. Mas, como assim? De uma hora para outra resolveram fazer o que nunca antes foi registrado?
Antes de mais nada, não há até hoje um único caso conhecido de ataque de orcas a seres humanos. Além disso, este escriba já navegou ao lado delas, na Antártica, sem qualquer problema. Ao contrário. Muitas vezes os belos animais se aproximam demonstrando curiosidade, jamais agressividade.
Marcos confirma que “as orcas são sociedades matriarcais com comportamentos distintos entre grupos e mesmo gerações.” E completou: “nós primatas é que não conseguimos entender.”
Os ‘possíveis ataques’ não foram na verdade ‘ataques’
Para Marcos ‘a imprensa usa o verbo ‘atacar’. Contudo, orcas, assim como golfinhos e baleias (todos cetáceos), são muito curiosas. A tendência, no meio em que evoluíram há 50 milhões de anos, é fuçar tudo. Elas procuram investigar tudo que encontram’.
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‘Predadores do topo da cadeia têm uma grande abundância de alimentos. Ao longo do tempo se adaptaram à disponibilidade de alimentos das regiões que frequentam. Em geral elas não se alimentam de animais de sangue quente, apenas peixes, lulas, enfim, animais de sangue frio.
Algumas poucas populações se alimentam de animais de sangue quente. Este é o caso das orcas das regiões polares, por exemplo. Elas se adaptaram para em suas estratégias aproveitarem a quantidade de focas da região.
Estratégias alimentares
Já ficou famoso um filme que mostra uma foca em cima de uma banquisa de gelo, quando um grupo de orcas nada em alta velocidade em sua direção para, ao chegarem à banquisa, pararem abruptamente levantando suas caudas. Isso produz uma onda que varre a banquisa, levando a foca para o mar. Em seguida, ela é devorada.
‘Então, diz Marcos, nós humanos vemos o sangue que se espalha no mar. E humanos têm medo de sangue, daí alguns nomes populares como ‘baleia assassina’, um nome infeliz, uma expressão cem por cento humana que não deveria ser usada’. Isso talvez explique o verbo mais utilizado pela mídia, ‘ataques’ das orcas da Península Ibérica que trazem as consequências de espanto e dúvida que vemos nas mídias sociais.
A importância do som embaixo d’água
O professor diz que ‘jamais saberemos o que de fato aconteceu nestas interações. Só poderíamos descobrir se entrássemos na cabeça delas’, brinca. Mas ele também tem um palpite. ‘Uma explicação é que atrapalhamos a comunicação dos animais.’
Marcos explica que os estudos mais longevos sobre orcas acontecem ao largo dos Estados Unidos e têm apenas 40 anos. Logo, temos ainda muito a aprender sobre estes animais e os três tipos de grupos que existem: os residentes, os transitórios e os migratórios.
No Brasil, por exemplo, sabe-se muito pouco. Apenas que as orcas aparecem no verão atrás de raias para sua alimentação. Os estudos ainda estão para serem feitos. Contudo, sabe-se que o som é importante para as orcas e cetáceos em geral.
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Marcos explica que ‘os cetáceos eram animais terrestres que reconquistaram o meio aquático’. Diz ainda que ‘o som foi sua principal ferramenta. Os animais o usam para comunicação social e para a localização entre eles’.
Poluição sonora nos mares
Esta possibilidade encontra eco em recente descoberta que comentamos em Golfinhos gritam para compensar poluição sonora. Um estudo publicado na Current Biology, prova que a poluição sonora é mais um dano da espécie Homo sapiens à vida marinha.
A pesquisa, publicada em janeiro de 2023, concluiu que os golfinhos estão “gritando” uns com os outros para conseguirem se comunicar ou completar atividades diárias. Motivo? A poluição sonora causada pela atividade humana.
Uma saída para avistagem ao largo de São Sebastião
Para encerrar, Marcos conta sobre uma saída para estudos ao largo de São Sebastião, quando viram um grupo de 16 orcas. Imediatamente, tentaram se aproximar. Contudo, quanto mais avançavam, mais as orcas se afastavam. ‘Até que o capitão sugeriu, por acaso, desligarem todos os equipamentos de bordo, sobretudo a sonda’.
Este instrumento, para quem não conhece, emite pulsos abaixo da quilha da embarcação até o fundo do mar. Ao medir o tempo que o pulso demora para voltar, descobre a profundidade do local.
Foi tiro e queda. Tão logo desligaram a sonda as orcas vieram curiosas. Todas foram fotografadas enquanto ‘fuçavam’ a novidade (ou seja, o barco). Então, para tirarem a dúvida o instrumento foi novamente ligado.
Tiro e queda, mais uma vez. Assim que a sonda foi ativada os animais fugiram outra vez. Este comportamento sugere que possivelmente são contra estes barulhos que as orcas da Península Ibérica agem. Não à toa, quase todos os relatos falam sobre a perda do leme. Acontece que o leme de fato é a parte mais frágil abaixo da linha d’água de um barco.
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E, curiosamente, as sondas quase sempre são instaladas na parte de trás do casco de um veleiro, ou seja, próximas ao leme.
Como disse o professor na interessante entrevista, ‘nunca vamos saber com certeza o motivo deste comportamento. Mas, de todas as hipóteses, a que ele oferece é a mais plausível até o momento.
Novidades trazidas por matéria do Washington Post
Em maio de 2023 o jornal publicou Why orcas keep sinking boats (Por que orcas continuam afundando barcos). ‘Então, o que está acontecendo? Os próprios cientistas que estudam as baleias também não têm certeza. Mas eles têm duas ideias principais.’
Teoria nº 1: As orcas estão brincando
‘Intimamente relacionadas com os golfinhos-nariz-de-garrafa, as orcas são mamíferos marinhos altamente inteligentes e curiosos. Usando uma série de pulsos e assobios subaquáticos, as baleias se comunicam com tanta sofisticação que os grupos formam seus próprios dialetos e os pais ensinam aos filhotes métodos de caça que são transmitidos por gerações.
‘Depois de aprender um novo comportamento, as orcas juvenis costumam repeti-lo até enjoar. Brincar é apenas uma parte de aprender a ser um predador. Isso corresponde ao padrão de ataques que os cientistas de baleias testemunharam, de acordo com Alfredo López Fernandez, pesquisador da Universidade de Aveiro, em Portugal.’
‘Nesse caso, o comportamento é “autoinduzido”, disse López Fernandez, e não causado diretamente por alguma provocação externa (isto é, humana). “O que significa que elas inventam algo novo e o repetem”, acrescentou.
Teoria nº 2: As orcas querem vingança
‘As orcas da costa ibérica gostam de seguir os navios de pesca para capturar o atum rabilho antes que os pescadores possam fisgá-los, colocando os mamíferos em risco de serem atingidos ou enredados. Os cientistas viram orcas com linhas de pesca penduradas em seus corpos.’
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‘Portanto, é possível, disse López Fernandez, que uma orca tenha tido um desentendimento ruim com um barco no passado e agora esteja ensinando outras a atacar embarcações também.’
‘López Fernandez enfatizou que ainda não temos informações suficientes para saber o real motivo dos ataques. Mesmo supondo que a segunda teoria seja verdadeira, “não sabemos o que esse estímulo desencadeador poderia ter sido.’
Grupo da Península Ibérica em risco de extinção
De todo modo, saiba que este grupo que tanto ‘barulho’ tem feito nas redes sociais é pequeno e está em risco. Segundo o Washington Post ‘Com apenas 39 orcas contabilizadas em 2011, a subpopulação de orcas ibéricas é considerada criticamente ameaçada pela União Internacional para a Conservação da Natureza. O impacto que os emaranhamentos e colisões com barcos provocam em todos os tipos de baleias e golfinhos em todo o mundo ressalta que os humanos são uma ameaça maior para eles do que eles para nós.
Assista ao vídeo que corrobora a Teoria Nº 2
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Mesmo que não tenhamos a explicação exata deste fenômeno (e talvez não a tenhamos tão logo), é imprescindível citar os efeitos colaterais da pesca industrial (ilegal e “legal”) e apontá-los como possíveis fatores para tal comportamento. A pesca industrial tem dilacerado a população de baleias/golfinhos, os mares do Japão, por exemplo, são locais de chacinas para os mamíferos aquáticos, devido ao alto valor do atum rabilho (como citado na matéria). Além disso, o material utilizado para a pesca industrial polui e degrada os oceanos direta ou indiretamente (animais capturados acidentalmente, linhas de pesca e plásticos ingeridos por várias espécies, decomposição do plástico nas águas) . Talvez esse comportamento seja uma adaptação ou em termos antropomórficos, uma revolta contra todos os males que causamos a vida marinha. Passou da hora de cercear a pesca industrial e criar mecanismos verdadeiramente eficazes de fiscalização, ou mesmo de proibição. Vale a reflexão.
Acho magnífico este animal, e mais ainda os golfinhos. Se eu tivesse, aos vinte anos, a maturidade de escolha que tenho hoje, eu não teria cursado direito, mas biologia ou oceanografia.
Só uma pequena correção : A sonda nos veleiros normalmente esta colocada à frente da quilha e mais próxima da proa do barco. Não se pode descrever os lemes partidos e um veleiro afundado na baía de Sines como uma mera interação. Até prova em contrário são sim ataques. Descubra-se a causa!!!
Agradeço esses novos conhecimentos/pesquisas; preciosos sem duvida!
Como sempre, uma excelente matéria! Parabéns