Cores do Lagamar, um espectro de esperança

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Cores do Lagamar, um espectro de esperança

O litoral brasileiro é um dos mais belos do mundo, embora maltratado, e  abriga uma das maiores biodiversidades do planeta. Mesmo assim, enfrenta a indiferença do grande público resistindo, não se sabe como, contra a ganância de especuladores. Já comentamos que até pessoas engajadas na causa ambiental preocupam-se mais com os ambientes terrestres do que com o mar e o litoral, irremediavelmente associados ao lazer. Esse abandono motivou o Projeto Mar Sem Fim, uma tentativa de levar essa riqueza para dentro das casas por meio da série de documentários que produzimos e apresentamos por cerca de quatro anos na TV Cultura, quando mostramos também a força histórica e cultural dessa região tão importante. Curiosamente, um dos trechos mais espetaculares e bem preservados fica no sul do Estado mais rico e populoso do Brasil. Ali, as cores do Lagamar ainda brilham como novas, oferecendo um raro espectro de esperança.

As cores do lagamar em imagem de cerco e montanha
Onde é possível testemunhar uma porção de Mata Atlântica tão especial como esta?

140 quilômetros de estuário contínuo

Os estuários são corpos de água parcialmente fechados. Eles surgem quando a água doce dos rios se mistura com a água salgada do oceano. Esse encontro cria um dos ecossistemas mais produtivos do planeta. Assim é o Lagamar. Ele se estende por 140 quilômetros, de Iguape, no sul de São Paulo, até Paranaguá, no norte do Paraná. O      sistema é abraçado pelo maior trecho contínuo de Mata Atlântica do Brasil.

paisagem do Lagamar
A imagem mostra o lado de fora da Ilha do Cardoso, uma das maravilhas da região.

Ali, em Iguape, começa uma série de canais paralelos à costa. Eles seguem até Paranaguá e têm várias barras, ou aberturas para o mar. A primeira fica em Icapara, ainda em Iguape. Depois vêm a barra de Cananéia e a de Ararapira, já no Paraná. Em seguida aparece a barra de Superagui e, por fim, a de Paranaguá. Trata-se de um estuário de planície costeira.

Sambaqui no Lagamar
Há diversos sambaquis ao longo do Lagamar. São elevações de conchas, restos de animais marinhos e terrestres, artefatos, terra e até sepultamentos humanos. As datações variam, com sambaquis mais antigos com cerca de 10.000 anos e outros mais recentes com aproximadamente 1.300 anos.

Os rios nascem na Serra do Mar

Do lado oposto ao mar, a Serra do Mar acompanha os canais com variações de ângulo, altura, e contornos. Naquelas escarpas nascem centenas, talvez milhares de rios. Eles descem a serra, muitas vezes formando cachoeiras, e desembocam nesses canais que também recebem a água do mar pelas barras. A mistura transforma o conjunto no mais importante berçário do Atlântico Sul.

Guarás e biguás no lagamar
Guarás e biguás estão entre a centena de pássaros.

Em 1988, a União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) classificou o Lagamar como o terceiro estuário mais produtivo do mundo e um dos mais bem preservados. Não há dúvida, passados cinco séculos as cores do Lagamar ainda brilham.

mata atlântica

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Curiosamente, foi umas das primeiras regiões a receber um europeu, dois anos depois da ‘descoberta’ oficial  em 1502, quando Américo Vespúcio ali arribou para encontrar milhares de indígenas e um misterioso homem branco que entrou para a história como o ‘Bacharel de Cananéia’.

fandango
O fandango dá o tom no Lagamar.

Os caiçaras, quilombolas, e indígenas

Pois o Lagamar foi ocupado pelos descendentes do Bacharel, os caiçaras, além de vários grupos quilombolas, e outros indígenas, que ainda resistem e mantêm suas tradições ainda que hoje estejam enfraquecidas, contaminadas, pelos contatos inevitáveis com os seres mais insustentáveis que jamais habitaram a Terra, o Homo sapiens.

mata atlântica

Ainda assim, o Lagamar hoje é das poucas regiões do litoral pode se gabar por atingir a sustentabilidade. Em outras palavras, uma região pobre que teve evidente evolução social através do turismo de base comunitária, mantendo a biodiversidade e a paisagem, e sem apelar para nomes em língua estrangeira como beach clubs, ou estultices complementares como Jurerê ‘Internacional’, e outras aberrações de colonizados incapazes de distinguir o que temos de melhor, ao contrário, grande parte insiste em transformar o litoral  num ‘paraíso’ brega como tantos já submetidos.

família canoeira
Uma família caiçara em seu meio de locomoção, as canoas de pau. Na frente está o pai, no meio a filha, e atrás a mulher.

Entretanto, este patrimônio cultural e ambiental é reconhecido, quase toda a área é protegida por unidades de conservação, municipais, estaduais, ou federais. Desse modo, e sempre com muita mobilização em razão de seus atributos, os ataques especulativos que começaram os anos 60 do século passado não lograram corromper este trecho como fizeram na maior parte do litoral.

restinga da Ilha do Cardoso
Ilha do Cardoso, um dos poucos lugares onde se pode apreciar o esplendor de uma restinga.

Durante este período, a imprensa, melhor dizendo, o Jornal da Tarde no auge de seu prestígio, desempenhou papel preponderante na salvaguarda deste bem natural.

boto-cinza

A flora e a fauna

Em meio a esta peculiar geografia humana e topográfica, estão os habitats de um sem-número de espécies entre mamíferos, répteis, aves, e anfíbios, de tipos endêmicos como o mico-leão-da-cara-preta, ou o papagaio-de-cara-roxa, por exemplo, e outros como o boto-cinza, o macaco-muriqui (o maior das Américas), a lontra, etc. 

mico-leão-da-cara-preta
Mico-leão-da-cara-preta.

Esta rica vida animal e vegetal se divide entre ambientes tão distintos como praias, restingas, manguezais, ilhas, lagoas, brejos, dunas, costões, campos  de altitude, florestas de montanhas, de encostas, e de planícies, entre outras. Em meio a esta explosão de biodiversidade há pequenas cidades, vilas fantasmas, aldeamentos, e comunidades tradicionais.

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Ararapira
Ararapira, PR.

Riscos às cores do Lagamar

Apesar da riqueza superlativa, e da proteção, nem tanto, o Lagamar corre riscos. O Parque Nacional do Superagui foi invadido por indígenas no início de 2025, sem ação do ICMBio a quem compete a fiscalização.

canoa de bordadura
Canoa de bordadura, mais um bem cultural do lagamar.

A abertura do Canal do Valo Grande, em Iguape, segue matando o mangue e a vida marinha da região há cerca de 300 anos sem qualquer ação dos órgãos (in)competentes.

papagaio de cara roxa
O belíssimo Amazona brasiliensis, ou papagaio de cara roxa.

E políticos inqualificáveis pretendem transformar o local em polo turístico para barcos do Paraná e São Paulo, demonstrando a colossal estupidez  de quem desconhece que a beleza e a virtude não estão em Cancun, mas debaixo de seus narizes.

Ariri no fim de tarde

O lado positivo é que as cores do Lagamar têm quem as admire, entre ativistas, acadêmicos, ambientalistas e, claro, os nativos que moram no santuário.

Marlim azul com pneu no bico, um retrato da nossa ação

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