Constituições brasileiras e a ‘proteção da paisagem’, um bem comum de todos
Nosso litoral tem duas características peculiares: sua incrível beleza e a imensa indiferença das autoridades públicas. As Constituições brasileiras, desde a de 1934 até a de 1988, incluem a proteção da paisagem como um princípio. No entanto, a apatia das autoridades administrativas tem sido uma constante e influenciou a opinião pública. Outro exemplo é o primeiro documento a mencionar o Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha. Nela, encontramos a referência inaugural à paisagem que encantaria os estrangeiros que a visitaram, com destacou Ivette Senise Ferreira em seu trabalho ‘A Tutela Ambiental da Paisagem no Direito Brasileiro’. Assim, o escrivão relatou: ‘de ponta a ponta, é toda praia, muito chã e muito formosa… Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem’. No entanto, trinta anos depois, os portugueses abandonaram a Terra de Santa Cruz
Todos os documentos oficiais contemplam a proteção da paisagem
A carta de Caminha, o primeiro documento oficial que elogiou a beleza cênica do país recém-descoberto, e a subsequente negligência dos portugueses, mais interessados nas feitorias da costa africana e na conquista da Índia, parecem ter sido um prenúncio do que estava por vir. Contudo, desta vez pelas mãos dos nativos da terra.
Este site continua chamando a atenção do público por dois motivos: a negligência quase generalizada na preservação da paisagem. De uma magnificência antiga para um estado deplorável, transformando-se em algo como um cortiço para as classes média alta e alta, em relação à beleza
Simultaneamente, a negligência das autoridades em relação à zona costeira, que se estende por mais de 8.500 quilômetros, persiste a ponto de repetirmos exaustivamente que ‘o litoral está entregue ao deus-dará’. É como se a especulação imobiliária fosse a única governante desse espaço.
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Declínio do berçário da baleia-franca e alerta aos atuais locais de avistagemLençóis Maranhenses, ameaçados por imenso condomínioProjeto de Lei do Governo do Paraná ameaça o licenciamento ambientalCajueiro da Praia, PI, enfrenta a especulação imobiliáriaIvette Senise Ferreira foi certeira ao mostrar que o abandono dos lusitanos facilitou os primeiros estragos na estética do litoral, bem como à biodiversidade.
Os problemas que começaram no século 16 persistem até hoje
“Ficou célebre, e ilustra bem tal fato, na história das nossas origens a captura da nau francesa “Peregrina” pelos portugueses no Mediterrâneo, quando voltava do Brasil carregada com 15 mil toras de pau-brasil, 3 mil peles de onça, 600 papagaios e 1.8 tonelada de algodão, além de outras matérias vegetais e minerais, o que motivou Portugal a voltar a sua atenção para a necessidade da colonização do Brasil e da repressão aos invasores, concedendo maior proteção ao seu imenso território.”
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A preservação dos nossos recursos naturais
“A preservação dos nossos recursos naturais expressou, pois, primeiramente, uma necessidade de garantir a exclusividade na exploração das nossas riquezas pela Coroa portuguesa, que literalmente saqueou o País desde então, embora tenha promovido uma ocupação mais intensa do território, com o envio de muitos colonos e degredados, e alguns donatários, o que deu início à miscigenação com os nativos e propiciou melhor adaptação aos trópicos para os recém-chegados.”
‘Legislação protecionista extremamente ineficaz’
Finalmente, diz Senise com absoluta precisão, “Pesquisas históricas na área ambiental apontaram a existência de uma ampla legislação protecionista no Brasil, vigente desde o século XVI, mas extremamente ineficaz, dada a extensão territorial e a ausência de fiscalização, como apontou Ann Helen Wainer, que analisou as normas vigentes nessa matéria a partir do descobrimento.”
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Cajueiro da Praia, PI, enfrenta a especulação imobiliáriaDiocese de Sobral envolvida na especulação no litoral oesteDepravação moral da Câmara de Vereadores de UbatubaDois séculos depois, lembra Senise, “Fica evidente a preocupação da Coroa portuguesa com o desmatamento desmedido, conforme se pode observar nas Cartas Regias expedidas, de que são exemplos duas Cartas em que D. Maria I, respectivamente em 1773 e em 1797, ordena ao vice-rei do Brasil e ao capitão do Rio Grande de São Pedro o cuidado na conservação das matas e arvoredos, notadamente as que tivessem árvores de pau-brasil.”
“No final do século XVII várias normas jurídicas referiram-se às questões ambientais, sempre com esse enfoque de regular as atividades exploratórias para a proteção dos interesses econômicos da Coroa, como bem expressou o Regimento concedido ao governador Roque da Costa Barreto, em 1677 que além de ordenar a vigilância das matas para evitar a falta de madeira, especialmente a utilizada na construção dos navios necessários para a comercialização dos produtos coloniais, determinava cuidados com as plantas novas que então estavam sendo transplantadas da índia para o Brasil, e recomendava o incremento da exploração das minas de salitre, da pesca de baleias e da extração dos minérios de ouro e prata.”
O Brasil do século 21
Antes de mais nada, é importante destacar a excelência das palavras de Ivette Senise Ferreira. O que ocorreu nos séculos 16, ou seja, o ‘abandono’, e no século 17, a ‘ineficaz legislação protecionista’, é a evidência mais clara de que não aprendemos com a história
A zona costeira e a ZEE sempre estiveram fora do foco dos presidentes desde a redemocratização, com exceção de Michel Temer. Essa omissão histórica permitiu a proliferação de três dos maiores problemas que enfrentamos como pragas.
Em primeiro lugar, na região costeira, as leis ambientais ‘não têm efeito’. Mesmo com proibições explícitas, tudo é feito de forma aberta, com praticamente nenhuma fiscalização. Por quê? Simplesmente porque não há qualquer tipo de controle.
Em segundo lugar, a maioria das unidades de conservação do bioma marinho existe apenas no papel. São meras ficções, com exceção de algumas poucas. Não basta criá-las por decreto; é preciso fornecer os meios para que se tornem efetivas. Portanto, o Estado também não exerce controle sobre o que ocorre dentro dessas áreas ‘protegidas’.
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Essa ausência permitiu o avanço do terceiro e maior problema: a especulação imobiliária. Apesar disso, as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967,1969 e 1988 preveem a proteção da paisagem, um fato desconhecido pela maioria da população e até mesmo por nossos representantes no Congresso, no Executivo e Judiciário. Não fosse isso já teriam agido, motivos não faltam.
É por esses motivos que, da antiga magnificência, o litoral se transformou em um pardieiro, espécie de cortiço.
Constituição de 34
Voltamos ao trabalho de Ivette Senise Ferreira. “Foi somente com a Constituição de 1934 que surgiram alguns dispositivos ambientalistas, com a primeira menção à proteção das belezas naturais, ao lado daquela dos monumentos de valor histórico, ao se estabelecer para tanto, no seu art. 10, a competência concorrente da União e dos Estados, adotando a mesma orientação já perfilhada pelo primeiro Código Florestal brasileiro, o Decreto n. 23.793, de 23.01.34, que incluíra em sua tutela as paisagens pitorescas. Ficou assegurada, desde então, a proteção à paisagem e aos valores estéticos dos recursos naturais como bens ambientais integrantes do patrimônio cultural nacional, que ao Estado cumpre fazer respeitar e proteger, evoluindo o seu conceito e a sua tutela até a concepção mais ampla que adquiriu nos nossos dias.”
“As belezas cênicas e as paisagens notáveis passaram a ser referidas na legislação brasileira quer como bens naturais quer como bens culturais, unificando-se depois a sua tutela jurídica…”
Constituição de 37
“A essa conjugação já se fazia referência, em 1937, quando o DecretoLei n. 25, que dispôs sobre o patrimônio histórico e artístico nacional para fins de tombamento, definiu-o como o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público, quer pela sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (art. Io ). E, a seguir, quando equiparou a esses bens, declarando-os também sujeitos a tombamento, ‘os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importa conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana (§ 2o).”
“Tal dispositivo seguia a orientação estabelecida na Carta Constitucional, de 1937, cujo art. 134 dispunha que os atentados cometidos sobre monumentos históricos, artísticos ou naturais, bem como sobre as paisagens ou locais particularmente dotados pela natureza, eram equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional. E reiterava disposição anterior, do Código Florestal da época, o Decreto n. 23.793/34, que estabelecia a tutela jurídica de florestas, sítios, vegetação e paisagens pitorescas.”
E o que promove a especulação se não atentados contra as paisagens do litoral?
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Constituição de 46, 67 e 69
“A Constituição, de 1946, determinava a defesa do patrimônio histórico, cultural e paisagístico, no seu art. 175; os mesmos termos aparecem no art. 172, parágrafo único, da Constituição, de 1967, e no art. 180 da Carta Constitucional, de 1969.”
Constituição de 1988
“A atual Constituição, de 1988, refere-se à proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (art. 24, VII) para estabelecer a competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal. A enumeração decorre da definição de patrimônio cultural estabelecida no seu art. 216, V. que inclui “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontologia, ecológico e científico.”
“Para o aperfeiçoamento conceitual muito concorreu a pressão exercida pelos organismos e documentos internacionais que impulsionaram a elaboração de uma legislação de caráter ambiental no nosso País, a partir da Declaração de Estocolmo, do Congresso da ONU , em 1972.”
“Nesse mesmo ano foi assinada pelo Brasil a Convenção Internacional relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, adotada em Paris durante a Conferência Geral da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura, e depois promulgada aqui pelo Decreto n. 80.978, de 12.12.1977.”
“Nessa mesma ordem de idéias foram criadas, pela Lei n. 6.513, de 20.12.77 destinadas a serem preservadas e valorizadas no sentido cultural e natural, as áreas especiais de interesse turístico e os locais de interesse turístico, considerando o legislador como de interesse turístico, entre os bens de valor cultural e natural que enumera, a serem protegidos por legislação específica, também as paisagens notáveis.”
Qual a óbvia vocação do litoral se não o turismo?
E, perguntamos, qual a óbvia vocação do litoral do País se não o turismo?
“A proteção legal foi depois intensificada com o advento da Lei n. 6.938/81, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente e os seus mecanismos de aplicação, a qual incluiu na caracterização da poluição, considerada como “a degradação da qualidade ambiental” a referência às atividades que afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente (art. 3o III, d).”
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Mais uma vez, destacamos as consequências da especulação no litoral. A falta de planejamento e o superadensamento em áreas frágeis e desprovidas de infraestrutura para a população são uma realidade. Assim que uma praia ‘entra na moda’, uma multidão de turistas nacionais e proprietários de casas de segunda residência invadem a região.
E o que ocorre em casos como esses? Bem, a já precária infraestrutura entra em colapso. O resultado é o lixo espalhado por toda parte, rios transformados em esgotos a céu aberto desaguando no mar, trânsito caótico, poluição atmosférica e, em resumo, um estado de caos
O litoral hoje
Dessa forma, gradualmente, a beleza do litoral cedeu lugar ao concreto armado. Casas, condomínios e resorts foram construídos em praias, sobre falésias ou dunas, nas encostas e topos de morros, além de restingas, mangues e até mesmo em costões.
Detalhe: todas essas áreas recebem proteção pela legislação ambiental, sendo consideradas Áreas de Proteção Ambiental; no entanto, essa interdição ocorre apenas no papel.
Devido a isso, ao longo de 60 anos de apropriação, que começou nos anos 50, quando o recebemos ainda em seu estado prístino após 400 anos de ocupação por caiçaras, o litoral se deteriorou. Hoje, uma parte significativa se assemelha a uma caricatura, um escárnio.
Mas o pior é a injustiça. Enquanto nós tomávamos conta do litoral, os guardiões por quatro séculos foram deslocados para os sertões, perdendo o acesso ao mar e à sua forma de subsistência. Atualmente, essa população nem sequer é reconhecida como povos originários
Chegada maciça de trabalhadores
A especulação imobiliária também trouxe uma chegada maciça de trabalhadores para as construções que não param. De maneira semelhante aos que antes de nós habitavam a costa, essa população foi empurrada para os sertões ou encostas da Serra do Mar, onde seus barracos se aglomeram muitas vezes com cruel indiferença da maioria.
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Por último, além da sinistra deformação da paisagem devido à visão primitiva e indiferente, ocorrem tragédias frequentes, como a que aconteceu no Carnaval deste ano, resultando na morte de 65 pessoas soterradas pela lama
E isso sucede mesmo após a tragédia na região serrana do Rio, em 2011, considerada a maior catástrofe climática do Brasil, resultando em mil mortes e deixando 30 mil desabrigados!
Para além disso, as futuras gerações jamais entenderão os versos de Jorge Benjor: País tropical/Abençoado por Deus/E bonito por natureza’.
O que dizer dos morros do Rio de Janeiro com as favelas impactando de forma horrorosa na paisagem.
Das favelas em São Paulo,Recife e de tantas outras cidades ?
Parece que a preocupação não é com a paisagem pq não vejo reclamação e nem uma matéria a respeito do visual decadente dos centros das cidades,periferias e ao longo das rodovias das grandes cidades?
Apesar da problematização dos inúmeros problemas complexos (e sociais em sua maioria) relacionados ao processo histórico da ocupação do nosso litoral, ser feita de forma rasa partir da perspectiva da proteção paisagem (sem desmerecer sua importância), parabéns pela matéria!
A Marinha podia evacuar e fazer tiro ao alvo nessas encostas como da praia das Toninhas, ao invés de em Alcatrazes, santuário de aves e peixes.
É inacreditável que em pleno 2023/2024 as pessoas ainda estão sedentas por construir/lucrar com construções à beira mar, sendo que são justamente essas que buscam refúgios quase intocáveis na natureza para relaxar.
Se continuar assim, logo não teremos mais locais de natureza para observar, respirar.
Legislação e fiscalização fracas, de um país que não há muito de se esperar… governantes corruptos, cidadãos que só pensam em si mesmos!