As Constituições brasileiras e a proteção da paisagem
Nosso litoral reúne algumas peculiaridades marcantes: uma beleza incomparável aliada à indiferença das autoridades, e a ignorância de certos empreendedores e donos de casas de segunda residência. Todas as Constituições brasileiras, desde 1934 até a atual de 1988, adotaram a proteção da paisagem como princípio. A paisagem de um país é um bem que pertence a todos. Ninguém tem o direito de se apropriar de uma parcela, e banalizá-la ao seu critério particular. Entretanto, é o que vem acontecendo com nosso insustentável modelo de ocupação da zona costeira. Não é justo uma só geração alterar a fisionomia do planeta como estamos fazendo. As futuras gerações vão nos cobrar.

Negligência quase generalizada na preservação da paisagem
Este site continua chamando a atenção para a negligência quase generalizada na preservação da paisagem litorânea. De uma magnificência antiga para o estado deplorável atual, a especulação transformou nossas praias em algo como cortiços para as classes média alta e alta, apequenando o que era único e incomum.


O litoral está entregue ao deus-dará. É como se a especulação imobiliária fosse a única governante desse espaço.

A zona costeira e a ZEE sempre fora do foco dos presidentes

Desde a redemocratização, quase todos os presidentes ignoraram a zona costeira e a Zona Econômica Exclusiva, com exceção de Michel Temer. Essa omissão histórica abriu espaço para a proliferação de três pragas que hoje enfrentamos.
Mais lidos
Ilhabela em último lugar no ranking de turismo 2025Garopaba destrói vegetação de restinga na cara duraCores do Lagamar, um espectro de esperançaNo litoral as leis ambientais simplesmente ‘não pegaram’. Mesmo com proibições claras, tudo acontece às abertas, sem fiscalização. E o motivo é óbvio: não existe controle.

Em segundo lugar, a maioria das unidades de conservação do bioma marinho existe no papel. São meras ficções, com raras exceções. Criar por decreto não basta; é preciso garantir meios para que funcionem de fato. Sem isso, o Estado não controla o que acontece dentro dessas áreas ditas “protegidas”.
PUBLICIDADE
Essa ausência abriu caminho para o terceiro e maior problema: a especulação imobiliária. Ainda assim, as Constituições de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988 ‘garantem’ a proteção da paisagem — um fato que a maioria da população desconhece, assim como muitos de nossos representantes políticos.

Constituições brasileiras e a paisagem, conheça a de 1934
Segundo o trabalho de Ivette Senise Ferreira, A tutela ambiental da paisagem no direito brasileiro, ‘foi somente com a Constituição de 1934 que surgiram alguns dispositivos ambientalistas, com a primeira menção à proteção das belezas naturais, ao lado daquela dos monumentos de valor histórico, ao se estabelecer para tanto, no seu art. 10, a competência concorrente da União e dos Estados, adotando a mesma orientação já perfilhada pelo primeiro Código Florestal brasileiro, o Decreto n. 23.793, de 23.01.34, que incluíra em sua tutela as paisagens pitorescas. Ficou assegurada, desde então, a proteção à paisagem e aos valores estéticos dos recursos naturais como bens ambientais integrantes do patrimônio cultural nacional, que ao Estado cumpre fazer respeitar e proteger, evoluindo o seu conceito e a sua tutela até a concepção mais ampla que adquiriu nos nossos dias.”
Leia também
Cores do Lagamar, um espectro de esperançaDestruir praias é a missão dos prefeitos de Santa Catarina?Guaraqueçaba e Cananéia: o desafio da sustentabilidade
“A legislação brasileira passou a classificar as belezas cênicas e as paisagens notáveis ora como bens naturais, ora como bens culturais, até unificar a tutela jurídica sobre elas…”
Constituição de 1937
“A essa conjugação já se fazia referência, em 1937, quando o Decreto Lei n. 25, que dispôs sobre o patrimônio histórico e artístico nacional para fins de tombamento, definiu-o como o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público, quer pela sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (art. Io ). Em seguida, a lei equiparou esses bens e declarou sujeitos a tombamento “os monumentos naturais, assim como os sítios e paisagens que merecem conservação e proteção pela feição notável dada pela natureza ou moldada pela indústria humana (§ 2º).”

Constituições de 46, 67 e 69
“A Constituição, de 1946, determinava a defesa do patrimônio histórico, cultural e paisagístico, no seu art. 175; os mesmos termos aparecem no art. 172, parágrafo único, da Constituição, de 1967, e no art. 180 da Carta Constitucional, de 1969.”

Constituição de 1988
“A atual Constituição, de 1988, refere-se à proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (art. 24, VII) para estabelecer a competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal. A enumeração decorre da definição de patrimônio cultural estabelecida no seu art. 216, V. que inclui “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontologia, ecológico e científico.”

“Para o aperfeiçoamento conceitual muito concorreu a pressão exercida pelos organismos e documentos internacionais que impulsionaram a elaboração de uma legislação de caráter ambiental no nosso País, a partir da Declaração de Estocolmo, do Congresso da ONU, em 1972.”
“Nesse mesmo ano foi assinada pelo Brasil a Convenção Internacional relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, adotada em Paris durante a Conferência Geral da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura, e depois promulgada aqui pelo Decreto n. 80.978, de 12.12.1977.”
“Nessa mesma ordem de ideias foram criadas, pela Lei n. 6.513, de 20.12.77 destinadas a serem preservadas e valorizadas no sentido cultural e natural, as áreas especiais de interesse turístico e os locais de interesse turístico, considerando o legislador como de interesse turístico, entre os bens de valor cultural e natural que enumera, a serem protegidos por legislação específica, também as paisagens notáveis.”
Estatuto da Cidade também determina a proteção da paisagem
Além da Constituição, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/01) determina no artigo 2º o Direito de Paisagem como diretriz geral. Entre seus pontos, inclui a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, assim como do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico.

O litoral hoje desfigurado
Gradualmente, e quase sem reação, a beleza do litoral cede lugar ao concreto armado. Casas, condomínios e resorts são construídos em praias, sobre falésias ou dunas, nas encostas e topos de morros, além de restingas, mangues e até mesmo em costões, sem a menor preocupação em disfarçar sua chegada.

Detalhe: todas essas áreas são ‘protegidas’ pela legislação ambiental, são Áreas de Proteção Ambiental, no entanto, nem assim a ocupação deixa de acontecer.
PUBLICIDADE
A rapidez do processo impressiona. Quando começamos a frequentar o litoral, nos anos 1950, ainda o recebíamos quase prístino após 450 anos de ocupação por caiçaras e nativos. Em poucas décadas, a zona costeira se deteriorou a ponto de hoje exibir, em boa parte, uma caricatura grotesca de si mesma, um escárnio.

O pior é a injustiça. Tomamos o controle e empurramos para os sertões os guardiões que protegeram o litoral por quatro séculos, tirando deles o mar e o sustento. Os poucos que ainda resistem, como os caiçaras de Paraty, enfrentam ameaças constantes.
Chegada maciça de trabalhadores e o crime organizado
A especulação imobiliária atraiu uma massa de trabalhadores para obras que não cessam. Assim como aconteceu com os antigos habitantes da costa, essa população acabou empurrada para os sertões ou para as encostas da Serra do Mar, onde seus barracos se amontoam sob a cruel indiferença da maioria.
Essa omissão das autoridades, e a grande apatia dos frequentadores, favoreceu a ascensão do crime organizado que hoje toma conta do espaço aberto. Um dos exemplos — entre dezenas — é Búzios. Nos anos 60, a cidade encantou Brigitte Bardot; hoje, vive refém de facções do crime organizado.

Por último, além da sinistra deformação da paisagem devido à visão primitiva e indiferente, ocorrem tragédias frequentes, como a que aconteceu no Carnaval deste ano, resultando na morte de 65 pessoas soterradas pela lama
E isso sucede mesmo após a tragédia na região serrana do Rio, em 2011, considerada a maior catástrofe climática do Brasil, resultando em mil mortes e deixando 30 mil desabrigados!
Para além disso, as futuras gerações jamais entenderão os versos de Jorge Benjor: ‘País tropical/Abençoado por Deus/E bonito por natureza’.










Vendo essas fotos mostradas na reportagem nos causa uma profunda tristeza de ver como nosso pais é mal administrado e como o ser humano destrói terrivelmente a paisagem. Cada foto é pior que a anterior e nos faz pensar em um futuro trágico para a raça humana. É inacreditável ver como nosso litoral foi destruido completamente e continua sem uma intervenção governamental séria. Falata vontade do governo e consciencia do cidadão que somente quer fazer turismo e lambuzar o local dando mal exemplo para gerações novas. Que trizteza ver isso em 2025.
O que dizer dos morros do Rio de Janeiro com as favelas impactando de forma horrorosa na paisagem.
Das favelas em São Paulo,Recife e de tantas outras cidades ?
Parece que a preocupação não é com a paisagem pq não vejo reclamação e nem uma matéria a respeito do visual decadente dos centros das cidades,periferias e ao longo das rodovias das grandes cidades?
Apesar da problematização dos inúmeros problemas complexos (e sociais em sua maioria) relacionados ao processo histórico da ocupação do nosso litoral, ser feita de forma rasa partir da perspectiva da proteção paisagem (sem desmerecer sua importância), parabéns pela matéria!
A Marinha podia evacuar e fazer tiro ao alvo nessas encostas como da praia das Toninhas, ao invés de em Alcatrazes, santuário de aves e peixes.
É inacreditável que em pleno 2023/2024 as pessoas ainda estão sedentas por construir/lucrar com construções à beira mar, sendo que são justamente essas que buscam refúgios quase intocáveis na natureza para relaxar.
Se continuar assim, logo não teremos mais locais de natureza para observar, respirar.
Legislação e fiscalização fracas, de um país que não há muito de se esperar… governantes corruptos, cidadãos que só pensam em si mesmos!