Bacalhau, o peixe que mudou o mundo

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Bacalhau, o peixe que mudou o mundo (e acabou minguando…)

Durante séculos, o bacalhau foi muito mais do que alimento. Ele definiu rotas de navegação, inspirou tratados diplomáticos, sustentou economias e, como mostra o livro Bacalhau: A História do Peixe que Mudou o Mundo, de Mark Kurlansky, ajudou até a reescrever a história da “descoberta” da América.

Aparentemente, o peixe está em perigo há pelo menos 650 anos. “A história da pesca do bacalhau pelos portugueses  é pela primeira vez referenciada em 1353, quando D. Pedro I e Edward II da Inglaterra estabelecem um acordo para pescadores de Lisboa e do Porto poderem pescar o bacalhau nas costas da Inglaterra por 50 anos”.

bacalhau pescado

“A necessidade de estabelecer um acordo indica que esta atividade já se realizava em anos anteriores, e em tal quantidade, que justificava a necessidade de a enquadrar nas relações entre os dois reinos”.

Seja como for, se seguirmos a história da pesca do bacalhau através dos séculos aprenderemos muito sobre a história de vários povos navegadores. Não foram poucos os que se fizeram ao mar, desde a idade média, atrás de seus grandes cardumes. Neste trajeto foram escritas algumas das mais bonitas epopeias da história náutica.

bacalhau, ilustração do bacalhau do atlântico
Ilustração: wikipedia.pt

As rotas vikings e o habitat do peixe

Os vikings foram os primeiros a secar bacalhau ao ar livre, prática que aprenderam nas Ilhas Lofoten, no norte da Noruega. Mas não foi só isso. Coincidentemente — ou não — as rotas usadas por eles até a Groenlândia, Islândia e América do Norte coincidem com as áreas de maior abundância natural do peixe, como mostra o mapa abaixo.

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distribuição do bacalhau no mundo
A distribuição dos cardumes de bacalhau no mundo é muito semelhantes com as rotas vikings no mar do Norte. Coincidência?

Isso sugere que os vikings, além de transportar bacalhau seco, também o pescavam durante suas viagens. Em seus acampamentos na Groenlândia e no atual Canadá, tinham acesso constante ao peixe. A conservação ao ar livre, aliada à pesca nas rotas, permitiu travessias longas e bem abastecidas. Era uma estratégia simples e eficaz para sobreviver em mares gelados e desconhecidos.

Bascos: os pescadores silenciosos

Agora diga: o que têm a ver os bascos, os vikings, e o bacalhau; o famoso bacalhau do Atlântico, o Gadus morhua?

Bem, entre os séculos XI e XV os bascos dominaram a pesca e o comércio do bacalhau. Eles desenvolveram embarcações robustas, técnicas de secagem eficientes e uma cultura de sigilo absoluto. Navegavam até a Terra Nova, pescavam em silêncio, secavam o peixe em terra firme e retornavam discretamente para a Europa.

Segundo Kurlansky, a hipótese de que os bascos chegaram à América do Norte antes de qualquer outro europeu é plausível. E mais: escolheram não divulgar isso para manter os estoques de bacalhau em segredo. Ao evitar reivindicar a posse da terra, preservaram seus interesses comerciais por séculos.

Bacalhau, mapa mostrando o país basco

Vikings: navegavam para onde havia bacalhau…

“…os bascos não foram os primeiros a curar o bacalhau. Séculos antes, os vikings tinham viajado da Noruega  para a Islândia, para a Groenlândia e para o Canadá, e não era mera coincidência o fato dessa ser a área onde o bacalhau do Atlântico era encontrado”.

bacalhau, ilustração com rotas das viagens kinkings
Ilustração: Aurélio Magalhães – WordPress.com

“Como os vikings sobreviveram em uma Groenlândia sem verde, e uma Terra de Pedra sem terra, pergunta o autor?”

bacalhau, imagem de mapa dos grandes bancos de bacalhau
Os grandes bancos de bacalhau. (Ilustração: wikipedia.pt)

“O que eles comeram nas cinco expedições para a América feitas entre 985 e 1011 que estão registradas nas sagas islandesas?”

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O papel da fé na demanda por peixe seco

A expansão do cristianismo na Europa fez do bacalhau um alimento fundamental. Em diversos períodos do ano, principalmente na Quaresma, a Igreja proibia o consumo de carne vermelha. O bacalhau, fácil de secar e conservar, virou a principal alternativa.

A fé cristã criou uma demanda contínua e previsível. Comer bacalhau virou um ato de devoção — e uma oportunidade de lucro. Portos e vilas pesqueiras prosperaram abastecendo mercados religiosos. A influência da Igreja, somada ao comércio marítimo, consolidou o peixe como base da alimentação europeia

bacalhau, imagem de quadro mostrando jejum católico na idade média
O jejum na Idade Média. (Ilustração: Padre Paulo Ricardo)

E conclui: “os bascos ficavam mais ricos a cada sexta- feira”.

Colombo, Giovanni Caboto, Jacques Cartier — e o silêncio dos bascos

Cristóvão Colombo tinha o objetivo de encontrar uma nova rota para as especiarias da Ásia, conhecida naquela época como as Índias. Em 1492, desembarcou no Caribe e, acreditando ter chegado às Índias, batizou os nativos de “índios”.

Já o navegador Giovanni Caboto, em 1497, tinha outro foco. Partiu de Bristol na esperança de encontrar a rota que Colombo não descobrira. Ao alcançar uma costa rochosa — a atual Terra Nova — escreveu:
“Era uma vasta costa rochosa, ideal para secar e salgar peixe, perto de um mar onde pululavam bacalhaus.” E imediatamente reivindicou a posse da terra para a Inglaterra.

Trinta e sete anos depois, Jacques Cartier aportou na mesma região e fincou uma cruz na península de Gaspé, assumindo a foz do rio São Lourenço em nome da França. Mas algo chamou sua atenção: Cartier relatou ter visto cerca de mil barcos de pesca bascos na área.

Os bascos, por interesse comercial, nunca haviam reivindicado a posse daquela terra. Mantiveram segredo absoluto. A observação de Cartier reforça a tese de que foram eles os primeiros a explorar a América do Norte — motivados, exclusivamente, pela pesca do bacalhau.

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bacalhau, ilustração de Giovane Caboto
Caboto. (Ilustração: exploration-and-piracy.org)

O peixe que alimentou impérios

Do século XVI em diante, portugueses, ingleses, franceses e holandeses disputaram os bancos de bacalhau do Atlântico Norte. O peixe alimentava populações, exércitos e marinhas. Era barato, nutritivo e fácil de estocar.

O bacalhau tornou-se essencial para a manutenção das colônias e para o comércio transatlântico. Era o elo silencioso entre Europa e América.

bacalau, imagem do navegador jacques cartier
Jacques Cartier. (Ilustração: Bio.com)

A relação visceral com Portugal

Portugal adotou o bacalhau como símbolo nacional. Mesmo sem pescar o peixe em suas águas, transformou-o em patrimônio culinário. Durante o Estado Novo, o regime de Salazar o promovia como “fiel amigo”, recomendando seu consumo até três vezes por semana.

A tradição segue forte. O bacalhau é prato central em festas religiosas, reuniões familiares e datas nacionais. Nenhum outro país se identifica tanto com esse peixe quanto Portugal.

Um colapso anunciado

No século XX, a pesca predatória quase extinguiu os estoques da Terra Nova. Em 1992, o governo canadense decretou moratória. Milhares de pescadores perderam o sustento. Vilas inteiras foram abandonadas.

Hoje, mesmo com avanços tecnológicos, o bacalhau continua ameaçado. O colapso canadense serve como alerta. O peixe que moldou o mundo precisa agora de proteção global.

bacalhau, desenho mostrando a moderna pesca de bacalhau com redes de arrasto
Depois dos trawlers, com arrasto, acabou o bacalhau. (Ilustração: O Direito à Vida – blogger)

Um personagem da história

A trajetória do bacalhau cruza com a dos vikings, dos bascos, de navegadores como Caboto e Cartier, de reis e de tratados. Alimentou guerras, impérios e fés. Ele navegou com os homens e ajudou a moldar fronteiras.

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Poucos peixes influenciaram tanto o destino humano quanto o bacalhau. Ele não mudou só paladares — mudou o mundo.

Ilustração de bacalhau
Quem não lembra desta icônica imagem?

Fontes e leitura sugerida:

‘Bacalhau- A história do peixe que mudou o mundo’ ,  Mark Kurlansky.  Ed.  Nova Fronteira.

‘Faina Maior – A Pesca do Bacalhau nos Mares da Terra Nova’,  Francisco Marques  e  Ana Maria Lopes. Quetzal  Editores, Lisboa, 1996.

‘A Campanha do Argus’,  Alan Villiers.  Ed.  Cavalo de Ferro,  setembro de  2005.

Wikipedia e Deutsche Welle.

Foto de abertura:  https://ensina.rtp.pt/

O mar sem fim é portuguez…Saiba porquê

Comentários

37 COMENTÁRIOS

  1. Sendo o legítimo bacalhau ou não, muitos brasileiros em meio a essa crise financeira, irão sim comer tubarão (“vulgo cação”) como sempre fizeram sem ao menos saber e além do mais irão alimentar outros com as intragáveis sopas de barbatanas de tubarão cujos benefícios nunca foram comprovados.

  2. Há dias atrás e não me lembro em qual site eu li, mas havia uma matéria assaz ameaçadora para nossa teórica riqueza amazônica ou seja a China já está em condições de exportar o RED PACU para o mundo. Eu comi alguns exemplares do pacu pescado no que era o pantanal mato-grossense e era uma experiência sensacional.

    Fico a pensar o que será que impede um brasileiro se mudar para Argentina ou Paraguai e lá tentar produzir “bacalhaus de DOURADOS e outros peixes de rios que possam ser criados e trabalhados como os NORWAY CODFISH? Ainda, o que será que impedem criar manjubas mais desenvolvidas e transformar em simulacros das ACHOVAS???

    Será que num futuro breve estaremos comprando CARÁS e LAMBARIS Made in China???? Surubins e tucunarés em breve virão do extremo oriente e talvez carnes de jumentos, de bodes, quando todos poderão comer as deliciosas buchadas de bodes….

    Que bom que já sou rotulado de idoso e talvez não tenha tempo de ver tantos disparates.

  3. Peixes parecidos, creio que são três, cada um com seu próprio nome, que depois de tratados/salgados tornam-se o que se conhece por Bacalhau, que de facto não é “um” peixe. Interessante a história da pesca destes peixes, aparentemente de um deles. Muito completa a matéria, como deve ser. Grato por isso meu caro.

    • Fernando, obrigado pelo comentário. Aproveito para tentar desfazer a confusão. Como se vê pelos comentários de leitores, muitos ainda não aprenderam. Disseminam informações erradas de que bacalhau não seria um peixe, ‘mas um modo de preparo’. É uma pena que a rede mundial de computadores sirva ao propósito de disseminar informações equivocadas quando é tão fácil pesquisar. O fato concreto é que a taxonomia moderna reconhece apenas três espécies neste gênero: Bacalhau do Atlântico, Gadus morhua
      Bacalhau do Pacífico, Gadus macrocephalus
      Bacalhau da Groenlândia, Gadus ogac
      Estes são os fatos. O resto é lenda, confusão.

  4. Somente podem ser considerado bacalhau as epecies de peixes Gadus Morhua, Gadus Macro Cephalus e Gadus Ogac (Gadus, Saithe, Ling e Zarbo), mas o de melhor qualidade e mais caro e` o primeiro, do Atlantico Norte.

  5. Há cerca de 40 anos atrás no bairro do Bresser em SP havia um galpão onde por obras de gnomos ou encostos aconteciam fenômenos fantásticos: às segundas-feiras chegavam carretas de 18 rodas trazendo caixas de madeiras com inscrições PIRARUCU DA AMAZÔNIA. Nas quartas-feiras da mesma semana encostavam carretas vazias que recebiam do dito galpão, caixas com inscrições GENUINE NORWAY CODFISH. Traduzindo sempre compramos gatos sarnentos por lebres e ainda tem gente acreditando em bacalhau fresco.

  6. O tal de Mark Kurlansky e sua extraordinária pesquisa: “os bascos são enigmáticos…vivem no extremo noroeste da Espanha” não deve ter sido um bom aluno em Geografia porque o extremo noroeste da Espanha deve fazer vizinhanças com Portugal e não com a França; eu diria que os bascos estão na região centro-nordeste da Espanha e, se, aceitarmos que o dito cujo está certo em seus conceitos, no Brasil os habitantes do polígono da seca podem exigir que nunca mais sejam taxados de nordestinos.

    Quanto os bacalhaus e outros frutos do mar???? Aprenderemos como cuidar quando uma única sardinha custar uns 3.000 euros e uma manjuba, mais baratinha, uns 1.800 euros. Como o Brasil diz que exporta tilápias então, nas Semanas Santa os ditos exemplares terão preços de bacalhau. Muito bom já que exportar é que importa, né não?????

  7. João Lara Mesquita existe algum requisito que não atendo, pois meus comentários não permanecem publicados? Caso não seja notificado no quê estou falhando, sinceramente para que eu perderei o meu tempo no Mar Sem Fim?????????????

    • Depende do que você escreve. Se eles, os editores, não concordarem com o que você escreveu, simplesmente não será publicado.
      Esta turma só quer ler o que lhe interessa.

  8. No futuro isso, no fiuturo aquilo… E o presente continua como o passado.
    Bacalhau rareando? Onde, se a oferta continua a crescer ainda que os preços não caiam (altos desde sempre)?
    No futuro estaremos mortos…

  9. Dizem que por volta de 2050, 2060 a humanidade terá algo como 9 bilhões de comedores, bebedores e evacuadores e, se, cada humano puder comer 300 gramas de alimento em cada refeição serão necessários 2,7 bilhões de quilos/refeições e, se, beberem 2 litros de água serão necessárias 18 bilhões de litros/dia. Não sei das probabilidades de reprodução dos bacalhaus, mas “chutando” que de cada ova com dois mil apenas uns cinco ou dez chegarão a fase adulta, teremos de criar berçários, creches e habitáculos hiper protegidos contra os predadores e mesmo assim faltarão alimentos, água e talvez até ar respirável para que nossos descendentes possam perpetuar nossos DNA.

    • TENHO 70 ANOS
      DESDE CRIANÇA ESCUTAVA QUE IA ALTAR ALIMENTOS
      NOVAS TÉCNICAS ENGENHARIA GENÉTICA
      PRODUTIVIDADE AUMENTANDO
      DE UMA PASSADA NAS FEIRAS LIVRES NO BRASIL VERIFICAR A FARTURA
      O HOME SEMPRE SE ADAPTOU

      • Tenho a sua idade e não sou tão convicto da sua linha de pensamento. Aliás deixando de ser egoístas e de ver somente os próprios umbigos, veja e se sensibilize pelos seres humanos que estão em peles e ossos ou seriam obras de Photoshop para arrecadarem contribuições enganosas.

  10. Com o altos preços do bacalhau original, há uma tendência de queda no consumo, que pode resultar num alívio para as espécies comprometidas. Note-se que hoje já existe bacalhau com a Polaca do Alaska que custa menos. Uma alternativa que poderá levar esta espécie que era menos explorada à extinção. Resumindo, o homem por trás, destruindo a natureza de forma predatória e descontrolada.

    • Marco Aurélio os altos preços aqui praticados são decorrências de desonestidades à toda prova começando pelos governos que tributam como se dinheiro fossem capim tiririca, em seguida a cadeia de ladrões oficializados e com CNPJs, IEs e por aí afora. Enquanto os brasileiros se permitirem ser roubados nada mudará nesta terra. Ainda existem algumas CEPAS (expressão é correta) de brasileiros que se sentem melhores em comer toneladas de camarões, bacalhaus, salmões com dinheiro roubados às mãos armadas que são os que se dizem governantes.

      • Seguindo o comentário: …com dinheiro roubado a mão armada…” Nada disto Tetsuo, os sortudos dos politicos que são postos lá pelo voto dos brasileiros nem precisam usar armas!!! Nós os brasileiros aceitamos esta situação e ainda cooperamos com ela via nosso voto e nossa passividade. Aliás, isto fez com que eu há muitos anos me mudasse para outro país!
        Em Portugasl o quilo de bacalhau custa entre EUR 8,00 e EUR 12,00 o quilo e é consumido no ano inteiro. A carne de res é mais cara!!!

  11. Ótima história, mas o WWF, prá variar errou feio. Estamos em 2018, há bacalhau fresco na Europa à vontade a preços muito baixos. Isso não se parece nada com extinção. A realidade se sobrepõe, sempre. Abraços.

  12. Bacalhau não é um peixe e sim um processo de salgamento que conserva o peixe por mais tempo.
    existe o bacalhau português, o norueguês e até o do amazonas que é do peixe pirarucú

  13. é uma das historias mais maravilhosa que ja li sobre o bacalhau; vou aproveitar e comerf bastante bacalha esse ano vai que o peixe acaba……..jose bonifacio das nevsz- bauru-sp

  14. Se o estudo foi feito pelos hipócritas nórdicos, desconsidere. Estes vermes estão matando a população no Pará contaminando os rios com chumbo e metais pesados. Aposto que como o petróleo que fez sua riqueza através da shell e statoil é sujo hoje e eles pedem consumirem veículos elétricos, e energia limpa, aposto que querem acabar com a pesca e produção de bacalhau, ams continuam a caçar baleias, bando de hipócritas.

  15. Nada como um belo prato de Cod Gadus Morhua e uma taça de puro vinho, mas o bacalhau não é mais português virou chines e o vinho puro foi dilapidado pelo marketing ganancioso.

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