Engorda de praias, falta de políticas públicas, e outros absurdos

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Engorda de praias, falta de políticas públicas, e outros absurdos

A ressaca do fim de julho foi violenta. O mar expôs a fragilidade de nossas praias. Obras públicas e privadas construídas junto à orla bloquearam sua mobilidade natural. Com isso, não há mais reposição de areia — só perda. A erosão acelera. O episódio escancarou a ausência de um plano nacional para enfrentar o avanço do mar. Enquanto isso, se multiplicam projetos de engorda de praia. Caros. Controversos. Sem consenso técnico. O problema é nacional. A erosão já atinge 60% da costa brasileira. Sergipe, por exemplo, vive hoje um processo crônico de erosão. E o risco não é pequeno: segundo o IBGE, 111,28 milhões de brasileiros — ou 54,8% da população — vivem no litoral. Até quando vamos ignorar a urgência de uma política pública para enfrentar esse fenômeno?

erosão no litoral

Afinal de quem é o litoral?

Praias são áreas públicas. Pertencem à União. E o problema da erosão é nacional e tende a piorar. O aquecimento global avança. A temperatura e o nível do mar sobem sem trégua. E não há previsão de reversão.

população brasileira por região
Ilustração, Estadão.

Os prejuízos causados pelos eventos extremos são altos. Em junho de 2024, só no Rio Grande do Sul, passaram de R$ 237 milhões, segundo a Confederação Nacional dos Municípios.

No mesmo período, o BID divulgou um relatório que estimou em R$ 88,9 bilhões os prejuízos das cheias no Rio Grande do Sul em 2024. Segundo a Agência Brasil, 69% desse total atingiram o setor produtivo, 21% os setores sociais, 8% a infraestrutura e 1,8% o meio ambiente.

Projeto de Lei sobre  engorda de praias

Enquanto buscávamos dados sobre prejuízos provocados pela erosão na internet, nos deparamos com mais informações sobre engordas de praias — um modelo controverso que, no Brasil, virou quase regra. E pasme, descobrimos um Projeto de Lei que ‘dispõe sobre a política nacional de engorda e recuperação de praias’, de autoria do deputado federal por Pernambuco, Clodoaldo Magalhães Oliveira Lyra, PV.

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O Projeto de Lei, datado de 2025 e ainda sem número, soa como pura demagogia. Tenta ganhar votos explorando a frustração de milhares de pessoas que perderam ranchos de pesca, canoas, embarcações — ou viram seu modo de vida ameaçado. Ao mesmo tempo, o texto é impositivo. Apesar de se apresentar como uma “política nacional”, oferece apenas uma solução para enfrentar a erosão e os eventos extremos: justamente a mais contestada pelos especialistas — a engorda de praias.

É difícil acreditar no nível de certos representantes. Agem como se fossem deuses, movidos por ignorância e prepotência. E ainda têm a ousadia de defender justamente o que não se deve fazer. Por que ignorar os especialistas? Além disso, este é um tema que exige atuação do Ministério do Meio Ambiente e a participação de um conselho técnico qualificado.

Paulo Horta, professor de oceanografia da UFSC, contesta a engorda de praias

Para o professor de oceanografia da UFSC, Paulo Horta, com quem falamos, ‘o projeto de lei não enfrenta as causas fundamentais das perdas de nossos ecossistemas de praias. Precisamos de políticas nacionais em sintonia com a Política Nacional de Gerenciamento Costeiro, que nos possam garantir a restauração de processos naturais de alimentação de nossas praias’.

‘Hoje podemos dizer que nossas praias passam fome, pois as nossas cidades, instaladas sobre restingas e dunas, imobilizaram areia sob ruas, casas e prédios, que poderiam direta ou indiretamente alimentar nossas praias. Para uma construção civil baseada no concreto, mineramos milhares de m3 de areia todos anos que igualmente, que mais cedo ou mais tarde também alimentariam nossas praias’.

‘Construimos barragens, hidroelétricas, que igualmente, retêm grandes quantidade de areia, que iguamente alimentariam nossas praias. Por último, as mudanças climática intensificam e aumentamem frequência eventos extremos que agravam o processo erosivo que vem sendo cronicamenta alimentado pela elevação do nivel do mar. Portanto, nossas praias passam por esse ciclo vicioso, onde vivem um cenário que precisam de mais areia em um cenário de crescente excassez de areia’.

‘Podemos fazer aterro em praias, para ganharmos tempo. Mas esses empreendimentos devem considerar os cenários complexos relacionados a erosão. Assim, um plano deve considerar restauração de restingas, dunas, marimas, manguezais, recifes, como aliados de uma processo gestão costeira resiliente, que precisa considerar as praias como ecossistemas fundamentais e parte destes mosaicos complexos, que não podem ser tratadas com blue washing’ (mentira azul).

‘Os Aterros de Praia e a Saúde da População e do Ambiente’

O subtítulo acima está entre aspas porque é o título da Nota Técnica Nº 05, de 2025, da Universidade Federal de Santa Catarina. Você pode ler na íntegra, ou o pequeno resumo que segue. Desde a abertura ela deixa claro que os gestores políticos do Estado maltratam as praias e os cofres públicos por arrogância e desprezo aos dinheiros públicos, como aponta a NT ao afirmar que as medidas do poder público de Santa Catarina seriam apenas de estímulo econômico e aquecimento do mercado imobiliário.

‘A presente nota técnica trata de novas evidências indicando que os empreendimentos de aterro de praia realizados em Santa Catarina não cumprem com os seus objetivos e não cumprem os próprios projetos licenciados. Trazemos evidências inéditas de que após o aterro as praias apresentam piora na balneabilidade e aumento do risco de afogamentos’.

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Os negócios relacionados aos aterros têm sido estimulados pelo governo do Estado’

Os negócios relacionados aos aterros têm sido estimulados pelo governo do Estado, inclusive pelo órgão licenciador da atividade, que realizou em parceria com empresas e o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia, em novembro de 2023, o “Workshop Sobre Prática e a Gestão Ambiental da Alimentação Artificial De Praias” 

A Nota ainda aponta uma série de erros e omissões que incluem ‘uma série de monitoramentos ambientais que deveriam ser feitos, mas não foram’…

‘Que as areias utilizadas nos aterros (neste caso a praia dos Ingleses) são diferentes daquelas originalmente existentes nas praias, não estando em conformidade com a legislação’.

‘As perspectivas mais evidentes e definidoras da implementação dos aterros parecem ser decisões individualizadas por municípios, de estímulo econômico e aquecimento do mercado imobiliário, não uma solução que trate da mitigação e adaptação às mudanças em curso’.

Em tempo, a primeira Nota Técnica da UFSC foi publicada em 2023 e pode ser lida neste link. Isso mais uma vez demonstra ma fé dos gestores de Santa Catarina. É um escárnio para com a sociedade que paga a conta.

A engorda de praias e a especulação imobiliária

O Mar Sem Fim já deixou clara, inúmeras vezes, sua posição sobre esse tema. Mas este caso reforça a necessidade de repetir: as obras de engorda, na maioria das vezes, servem como pretexto para alimentar o maior flagelo do litoral — a especulação imobiliária.

Balneário Piçarras, SC, vai para a quarta engorda

Apesar dos pesares,  Balneário Piçarras, Santa Catarina, segue para a quarta engorda em 30 anos, ao custo desta vez de mais R$ 38 milhões de reais. Será que isso vai parar um dia?

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Muro subterrâneo de 6 km na Praia Central, Balneário Camboriú

Menos de um ano após a engorda da praia Central, em 2021, surgiu um enorme degrau na faixa de areia. A situação exigiu um novo aporte de sedimentos. Agora, outro problema chama a atenção: poças de água, parecidas com piscinas, passaram a se formar na orla durante as marés altas. O fenômeno tem causado estranheza entre os frequentadores e levantado dúvidas sobre os efeitos dessa ampliação. E a resposta das autoridades pode ser ainda mais polêmica: a construção de um muro subterrâneo de 1,5 km de extensão e 2 metros de profundidade sob a Praia Central, ao custo de cerca de R$ 32 milhões de reais.

engorda da praia Central, balneário Cambriú
‘Reurbanização’ da Praia Central. Imagem, Prefeitura de Balneário Camboriú.

Como as decisões sobre assuntos técnicos e complexos não são levados em conta nacionalmente, qualquer um decide o que fazer numa praia. Basta um prefeito ‘achar’ que este é o caminho para nova obra ser feita sempre ao custo de muitos milhões de reais, este parece ser o caso do absurdo muro subterrâneo de 1,5 km de extensão e 2 metros de profundidade.

engorda da praia Central com muro subterrâneo , bBalneário Camboriú, SC
Segundo o professor Paulo Horta, ‘um plano deve considerar restauração de restingas, dunas, marismas, manguezais, recifes, como aliados de uma processo gestão costeira resiliente’, tudo que Balneário Camboriú mais uma vez não fez. Imagem, Prefeitura de Balneário Camboriú.

Gestores públicos violentam as praias brasileiras

Qualquer pessoa minimamente informada sabe: não se deve mexer em praias. Ali vigora o chamado equilíbrio dinâmico — um sistema natural regulado por forças como o vento, as correntes, as ondas e as marés. Enquanto essas forças atuam livremente, as praias se transformam, recuam, avançam, se reacomodam. E, com o tempo, voltam ao seu estado natural.

engorda da praia Central, balneário Cambriú
Imagem, Prefeitura de Balneário Camboriú.

O problema começa quando a mão humana intervém. A ocupação da faixa de areia rompe esse equilíbrio, e o resultado é sempre o mesmo: dano ambiental, e acirramento da erosão. Falta explicar isso para grande parte dos prefeitos do litoral.

engorda da praia Central, balneário Cambriúl
Imagem, Prefeitura de Balneário Camboriú.

Bobagens iguais as de Camboriú e seu ‘muro subterrâneo’ também aconteceram no Rio de Janeiro do prefeito Eduardo Paes. Em 2023 seu governo decidiu instalar faixas de concreto armado sob a areia da praia da Barra da Tijuca para, segundo eles, “reduzir os danos das ressacas”. Depois de uma revolta dos professores das universidades cariocas o MPF mandou tirar da pauta o ignorante projeto.

Projeto da Recuperação da Orla de Guaratuba

Outro Estado que está prestes a entrar no time é o Paraná. Segundo o Correio do Litoral, o chamado Projeto da Recuperação da Orla de Guaratuba consiste na engorda da faixa de areia da Praia Central em 100 metros, da Praia de Caieiras, engordamento entre 50 e 80 metros, e da Prainha.

engorda de praias na Orla de Guaratuba
Projeto da Recuperação da Orla de Guaratuba. Ilustração, Projeção/Instituto Água e Terra-PR)

Também inclui calçadas, sistema de drenagem e estruturas marítimas como guia-correntes e espigões, o custo estimado da obra é de aproximadamente R$ 247 milhões para menos de 5 km de orla, e o prazo de execução é de 18 meses.

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engorda de praias na Orla de Guaratuba, Paraná.

Segundo o Portal da Cidade, a maior contestação recai sobre a instalação de um guia-corrente ao lado do Morro do Cristo, solução considerada no projeto como a Alternativa A.

Essa estrutura, segundo os técnicos, serviria para conter a areia trazida pela engorda e também como acesso para embarcações, incluindo as dos pescadores locais.

Mais adiante, revela o Portal da Cidade, ‘moradores, pescadores, surfistas e uma guarda-vidas veterana denunciaram os impactos negativos, como a alteração da paisagem mais emblemática da cidade, ameaça à pesca artesanal, interferência nas ondas utilizadas para o surf e riscos ao ecossistema, especialmente à fauna marinha, como as tartarugas.

Isso demonstra como um projeto de quase meio bilhão de reais é discutido de forma superficial por ‘moradores’, ‘pescadores’, ‘surfistas’, e até uma ‘guarda-vidas veterana’. Nada contra eles, mas o caso é um pouco mais complexo, e exige conhecimentos mais sofisticados que normalmente o vulgo não tem.

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