Viagem do Naufrágio: Domingo – 01/04/2012
Ilha Rei George, Baía Potter, fundeados defronte à base Carlini.
Perdi a hora. Deveria ter rendido o Manoel no turno das 06h da manhã, mas passei batido. Só subi às 8h30.
Temos feito turnos de 2 horas. Dividimos entre eu, Plínio e Manoel. Começamos às 20h, e seguimos até clarear o dia, lá pelas 7 horas.
Esta madrugada fiquei devendo ao Manoel. Pago no próximo turno.
Menos 5,5ºC esta manhã. Vidros do comando congelados. A cerração se dissipou, assim como o vento Leste, que caiu para cerca de 20 nós.
Tudo indica que vamos ter um dia tranquilo.
Aproveito para falar um pouco sobre onde estamos.
Rei George faz parte do arquipélago das Shetland do Sul, formado por meia dúzia de ilhas. Ela é a maior de todas.
O arquipélago é banhado em seu lado norte pelo Estreito de Drake. Do lado sul, separando a Antártica, há outro braço de mar, o Estreito de Bransfield. Cerca de 120 quilômetros nos separam da Península Antártica. Em outras palavras, estamos em pleno Drake, isto explica a fúria dos ventos que temos encontrado.
Há cerca de seis bases científicas instaladas na ilha. Argentina, Chile, Brasil, Polônia, Uruguai, China são alguns dos países presentes.
Rei George foi descoberta por foqueiros ingleses, em 1820. Naquele tempo a pele de foca valia muito no mercado chinês que dominava a arte da peleteria.
Esses comerciantes/exploradores tiveram papel importante na descoberta da Antártica e ilhas sub-antárticas. Navegavam rumo Sul, sem cartas náuticas, às cegas, até encontrar alguma ilha. Nas duas ou três temporadas seguintes – leia-se Verão – voltavam às mesmas porções de terra até acabar completamente com as colônias de animais marinhos.
Em seguida tornavam a descer até encontrar novas terras e colônias. Em pouco mais de 50 anos quase levaram à extinção destes mamíferos marinhos, ao mesmo tempo em que ampliavam o conhecimento geográfico dos mares do sul do planeta.
Enquanto as peles de focas viravam casacos, leões e elefantes marinhos eram dizimados para que sua gordura, e óleo, lubrificassem as máquinas da revolução industrial, e iluminassem as ruas de Londres.
Quando acabaram as grandes colônias de focas e elefantes marinhos, no final do século XIX, começou a caça à baleia. Todas as ilhas desta região serviram como abrigo e local de beneficiamento de cetáceos.
Basta desembarcar em qualquer destas baías e andar alguns metros para encontrar ossos de baleias. Na enseada Martel, onde ficava a base brasileira Comandante Ferraz, há um memorial sinistro feito por Jacques Cousteau nos anos 70. Eram tantos os ossos que o francês montou um esqueleto inteiro de uma baleia. Fotografei este ícone antártico quando estive aqui no verão 2009/10, fazendo documentários para a Band. É um registro marcante do período em que o ser humano explorava a região para conseguir lucro.
O resultado não foi brilhante.
Passado mais de um século as populações de focas e elefantes marinhos mal se recuperaram. As baleias não tiveram a mesma sorte. Depois dos anos 40 do século passado, quando surgiram os navios fábricas, a matança de baleias foi pesada nesta região. E continuou em escala crescente até quase os anos 60 quando, próximo da extinção, e pressionados por cientistas e ambientalistas, foi decretada uma espécie de moratória internacional da pesca à baleia. Japão, Islândia e Noruega ignoram a pressão e continuam com a prática.
O resultado foi a extinção de algumas espécies como a baleia cinza, ou a quase extinção da baleia azul, o maior animal do planeta com cerca de 33 metros de comprimento, e um coração com o tamanho e peso de um Fusca. Os cientistas que entrevistei para a série da BAND explicaram que restam no hemisfério Sul algo como 1.500 baleias azuis.
Outras populações de baleias foram reduzidas a menos de 2% dos estoques originais. Este é o lado triste da Antártica, e também fabuloso, se pensarmos na ausência de tecnologia dos primeiros barcos foqueiros e baleeiros que, mesmo assim, se aventuravam e frequentavam estas águas.
É curioso. O ser humano avança sobre o desconhecido enfrentando obstáculos terríveis como o clima brutalmente inóspito, ou mares descomunais. Descobre e destrói. Depois volta a freqüentar justamente para o contrário: estudar, entender, e preservar. É o que se faz hoje na Antártica. Um continente dedicado à ciência e ao estudo, talvez um dos únicos lugares do planeta onde a comunidade internacional convive em perfeita harmonia.
2/4
Meia-noite. Acabo de levantar da cama e render o Manoel. Meu turno começa bem: uma raríssima calmaria total. Fico até com medo do que está por vir…
Antes de ir dormir conversamos via rádio com o navio Almirante Maximiano. Ele nos passou uma previsão para os próximos dois dias nada boa. Para amanhã está previsto vento muito forte, de leste, com rajadas força 8/9, ou cerca de 60 nós. Só de pensar sinto calafrios.
Aqui onde estamos, a faixa do Drake, é quase impossível ter mais de 24 horas de sossego.
Mas também temos boas novas. Recebemos nova previsão da Commanders Weather. Parece que sexta-feira próxima, dia 6/4, teremos a tão esperada janela: três dias para atravessarmos de volta. A ver…
Às 09h da manhã decidimos deixar a baía Potter e seguir para Fields bay, a nove milhas de distância, onde fica a base chilena Frei. O problema de Potter é que a baía é cercada de geleiras. Pedaços enormes se desprendem e ficam à deriva, ameaçando o Mar Sem Fim que está fundeado bem no meio dela. Como a previsão indica ventos muito fortes para os próximos dias, resolvemos mudar para Frei onde ao menos não temos gelo solto nos ameaçando.
Às 11h fundeamos em Frei. Até o momento, 18h, ainda não entrou vento forte, apesar de estarmos preparados para a chegada dele ainda esta noite.
Hoje também recebemos nova previsão da Commanders sobre a janela de sexta-feira. Ao que parece teremos uma viagem desagradável, com ondas na casa dos 3 para 4 metros, talvez um pouco mais.
Amanhã eles nos mandam nova previsão, com dados mais recentes. Aguardamos com ansiedade.
E por hoje é só.
Até amanhã.