O filho José, de 9 anos, ouve as aventuras do pai estatelado num sofá branco, e sorri fácil. O sol ilumina o sobrado pra lá de aconchegante nas fronteiras do Parque do Ibirapuera, em São Paulo. O segurança sentado à porta exibe um ar amistoso. Tudo estaria perfeito e calmo naquela manhã abafada de outubro na casa de João Lara Mesquita – jornalista puro-sangue, herdeiro dos fundadores do Estadão –, não fosse o latido impertinente que martelava no quintal. O labrador com nome de um personagem da série Pokémon andava indócil. Nem João Lara – bermuda, camiseta larga e Havaianas brancas – nem o filho José conseguiam sossegar o bicho, que quase arrastou a dupla dia desses nas águas do lago do parque, tamanha a disposição para tentar mordiscar um pato.
Havia dois dias, João Lara acabara de lançar um de seus projetos mais ambiciosos de uma vida, sabe-se, pródiga em confrontos: O Brasil Visto do Mar sem Fim (editoras Albatroz, Loqüi e Terceiro Nome), livro composto de dois belos volumes com 312 páginas cada um, dois catataus de 25 por 40 centímetros – há quem diga que, pelo peso, eles poderiam substituir a âncora de um barco. Neles, ele relata em textos e 600 fotos – de um total de 15 mil – sua viagem no veleiro Mar sem Fim por toda a costa brasileira. O lançamento teve a presença de prefeito e governador. Afinal, foram ao todo 6.263 milhas navegadas, ou 11.273 quilômetros, do Oiapoque ao Chuí, entre abril de 2005 e abril de 2007. Durante a empreitada, João Lara e seus timoneiros – a jornalista Paulina Chamorro, o cinegrafista Paulo Cezar Cardozo e seu escudeiro-mor, o experiente marinheiro Alonso Góes – registraram não só a exuberante paisagem do litoral do País como num sedutor livro de viagens, mas também sua terrível e acelerada degradação. “A beleza cênica do litoral que deixou extasiados os europeus que chegaram de navio no século 16 até o século 20 está sendo destruída”, atesta João.
A viagem resultou em uma série de 90 documentários exibidos semanalmente pela TV Cultura de São Paulo e foi realizada em 33 etapas, já que o material colhido precisava ser sempre editado em São Paulo, o que acarretou também infindáveis traslados de avião. Os dois livrões são uma espécie de extensão dos programas, cujos direitos pertencem a João Lara, e devem, num primeiro momento, ser transformados em quatro DVDs, cada um destinado a uma região do País. A caixa de e-mails de João anda inchada de pedidos de capítulos dos programas vindos das mais variadas instituições educacionais brasileiras. Faz sentido. Mais do que emoldurar paisagens de cartões-postais, os 90 episódios apresentam um vasto e preocupante olhar para a costa brasileira, que parece querer estender uma bandeira de SOS antes de perder por completo sua majestade. A cada destino, João dissecou problemas ambientais crônicos e, principalmente, cobrou soluções a quem fosse necessário.
Capitão amador desde os anos 1990, com cerca de 40 mil milhas percorridas, João navega desde os anos 1960 e é figurinha carimbada em algumas das principais regatas do País. Hoje, conhece como poucos a extensão do litoral brasileiro. Viu a opulência da natureza ainda preservada até seu desastre atual. Os livrões são uma ótima tradução dos programas e funcionam como um Moleskine das observações do capitão. Moleskine, só para lembrar, são aqueles cadernos de anotações dos quais gente da estirpe de Hemingway ou do poeta francês Paul Valéry jamais desgrudava, para registrar as idéias para seus escritos em prosa e verso.
Ao lado das fotos, surpreendentemente boas – segundo João, não por seus dotes de fotógrafo, mas pelo esmero do projeto gráfico –, despontam narrativas bem amarradas, de causos cotidianos da odisséia, que não ficou imune a contratempos, tormentas, chuvas torrenciais, acidentes – o veleiro encalhou num banco de areia no Oiapoque, por exemplo – e muito mais. Durante o trajeto, João conversou e entrevistou nativos e caiçaras – os únicos que ele não viu degradar as praias – e especialistas no assunto, como professores universitários, oceanógrafos e ambientalistas. Não se furtou ainda a oferecer boas doses da história de cada lugar. “Quis chamar a atenção para o nosso espaço marítimo. As pessoas desconhecem a influência dos oceanos em questões como o aquecimento global”, pontua João, sob o olhar compenetrado do filho José e já com seu labrador em silêncio. “A maioria das pessoas associa o mar a lazer. Não enxerga o oceano além da arrebentação. As pessoas só defendem as baleias, os golfinhos e os pássaros. Porque eles estão acima da superfície do mar.”
João lembra que os oceanos representam 71% da área da Terra e são decisivos para o clima do planeta. Ele recorre a um globo terrestre para mostrar que, embora estejam na mesma latitude, a Groenlândia e a Inglaterra possuem temperaturas bem diferentes. É que as duas regiões são banhadas por correntes marítimas diversas, frias e quentes, respectivamente, determinantes para moldar suas temperaturas. “O oceano é um problema do mundo inteiro e sua capacidade de agüentar tanto descaso não é gigantesca.” Mas, pelo menos por aqui, João faz sua parte.
De forma quase que solitária, tenta chamar a atenção para o problema. “Participava das regatas em Ilhabela (litoral norte de São Paulo), e as pessoas que me perguntavam por que não havia mais peixes eram as mesmas que jogavam embalagens PET no mar. Mas ninguém é Bin Laden de propósito, mas por ignorância. Só que a saúde do oceano depende de como a costa é ocupada.” E nesses dois anos João pôde observar um quadro assustador. Navegou propositadamente sempre a apenas 10 milhas da costa para averiguar de perto os problemas da ocupação desmedida. Deparou-se com florestas devastadas, problemas gravíssimos de saneamento, construções em mangues, que são praticamente exterminados, praias úblicas “privatizadas” por poucos veranistas, pescas irregulares, hotéis em cima de falésias e muita erosão. Até lugares considerados exemplos de preservação têm lá seus problemas. “Para mim, Fernando de Noronha deve restringir o número de pessoas. Todas as ilhas são muito frágeis. Tem gente demais lá, mais de 2 mil bugues e já teve acidente com morte. Quando Charles Darwin esteve lá, descreveu pujantes florestas e hoje Fernando de Noronha está quase pelada.”
Mas João ainda se julga otimista. Viu hotéis de ponta construídos em harmonia com a natureza e se impressionou com iniciativas de uns poucos altruístas, como aponta neste trecho do livro que vale destaque:
“A ONG que mais me impressionou é formada por meia dúzia de abnegados, não tem sócios nem patrocínios. Sequer um site. Mas é uma das responsáveis pela integridade da baía de Babitonga, ao norte da costa de Santa Catarina. É a Ameca, de Ana Paula Cortez. Com disposição, espírito público e competência, essa pequenina ONG dobrou a Petrobras, colocou a prefeitura da cidade no banco dos réus (por omissão em relação ao saneamento básico) e conseguiu a dificílima, e rara, demolição de construções irregulares”.
Segundo ele, “todos têm sua parcela de culpa” por essa agressão sistemática, principalmente pela omissão e talvez pela ausência de instrumentos legais mais acessíveis. “A legislação ambiental brasileira é uma das mais perfeitas do mundo, mas é inexeqüível. Impossível de se colocar em prática e sempre provoca um conflito de poder: nunca se sabe quem pode autorizar o quê.” Ainda assim, João acredita.
“Falta engajamento. Se dermos uma mãozinha, a natureza vai. Veja Cubatão – diminuiu em 90% sua poluição e dá até para ver lobo-guará. É só ser didático, mostrar que não se pode construir na areia, mostrar que o mangue é o mais importante berçário da vida marinha.” O mar ganhou um aliado. A casa de João é toda decorada com excelentes espécimes de modelismo naval, que reproduzem à perfeição os barcos mais tradicionais e populares do País, alguns em vias de extinção. E, com eles, João demonstra o zelo do apaixonado. “Ainda quero fazer uma exposição.”
João gosta de brigar. Diretor da rádio e estúdio Eldorado de 1982 a 2003 e de empresas do grupo do jornal O Estado de S. Paulo, pertencente a sua família, ajudou a fundar o Núcleo União Pró-Tietê, ligado à Fundação SOS Mata Atlântica, ONG que comanda a campanha de despoluição do rio Tietê desde 1990, e fez parte do conselho do Greenpeace de 2001 a 2004. À frente da Eldorado, liderou uma campanha contra a obrigatoriedade da Voz do Brasil e a rádio obteve uma liminar para não transmiti-la. Foi o primeiro jornalista a cobrir o Paris-Dakar em 1990 e atuou como navegador do carro pilotado por Klever Kolberg em 1997. Ficaram em décimo na categoria. Seu próximo passo é uma expedição pela Amazônia. Quando o pai fala isso, José se inquieta e pergunta se ele vai ficar muito tempo longe de casa. João diz que não: vai voltar sempre.