Mary Ann Brown Patten: 19 anos, grávida e capitã de um clipper em 1856
Se eu te pedir, caro leitor, para imaginar a pessoa na posição de comandante de um navio há 150 ou 200 anos, o que passa pela sua cabeça? Eu penso em um senhor que já trocou sua juventude por experiência, o rosto enrugado pelo sol e pelo sal, a barba grisalha de onde brota um cachimbo, as mãos engrossadas por cabos, velas e timões. A história da exploração marítima está repleta de homens fascinantes, quase lendários. Homens que viveram uma época em que ainda havia lugares na terra onde nunca antes um humano havia pisado e superaram adversidades que beiravam o impossível. Hoje vamos conhecer Mary Ann Brown Patten que, aos 19 anos e grávida, assumiu o comando de um clipper em pleno Cabo Horn! Este texto é um colaboração de Alessandro Comparini Basbaum, especial para este site.
Conheça uma líder extraordinária
Talvez justamente por esperar encontrar um personagem que se encaixe nessas características que eu desenvolvi um gosto especial por histórias protagonizadas por mulheres. De fato, uma mulher que não só consiga convencer um grupo de marinheiros, cadetes ou piratas de séculos atrás a respeitá-la, como também se impor como comandante, não tinha só que ter a bravura de um marinheiro mas também ser uma líder extraordinária.
Assim, uma das minhas histórias favoritas na tradição marítima é capitaneada por uma jovem de 19 anos. Uma jovem grávida, com o marido subitamente à beira da morte. Uma jovem que se tornou, por uma combinação de coragem e imposição do destino a poucas milhas do Cabo Horn, a primeira comandante da marinha mercante americana: Mary Ann Brown Patten.
Pequena biografia de nossa heroína
Nascida em Massachusetts, em 1837, Mary se casou pouco antes de seu 16° aniversário com um jovem capitão, Joshua Adams Patten. Alguns anos depois, em 1856 com três meses de gravidez, ela zarparia no Neptune’s Car (Carruagem de Netuno, em tradução livre) com seu marido para uma viagem, contornando todas as Américas, de Nova York a São Francisco. Em meados do século XIX não havia ainda nem o Canal do Panamá, nem um sistema robusto de ferrovias que ligasse a costa leste com a costa oeste dos EUA. Uma das únicas maneiras de ir de um extremo ao outro do país era, surpreendentemente, navegar cerca de 7.400 milhas náuticas (14.000 quilômetros) até a ponta sul da América do Sul, contornar o temido Cabo Horn e subir outras 6.400 milhas náuticas (12.000 quilômetros) pela costa do Oceano Pacífico até chegar na Califórnia.
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O navio, um clipper de nome Neptune’s Car
O Neptune’s Car era conhecido por ser veloz. Com 66 metros de comprimento e pesando 1617 toneladas, era um digno representante da era dos Clippers – navios movidos à vela que sacrificavam em parte sua capacidade de carga em favor de maior velocidade, numa época em que a propulsão a vapor se firmava como o futuro da navegação. De fato, os Clippers eram tão velozes que navios percorrendo a mesma rota competiam informalmente entre si. Seus donos usavam relatos de travessias rápidas como forma de cobrar mais por suas passagens, enquanto marinheiros, estivadores e outros trabalhadores nas docas faziam apostas na vitória de um ou de outro.
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Naquele 1° de julho de 1856, o Neptune’s Car não zarparia sozinho. Dois outros Clippers, o Intrepid e o Romance of the Sea, faziam a mesma rota. A pressão por velocidade era grande e Joshua se mantinha atento à sua tripulação – sabotagens por marinheiros que apostavam contra o próprio barco não eram incomuns. Sua suspeita se confirmaria nos dias seguintes, quando flagrou por múltiplas vezes ninguém menos que William Keeler, seu primeiro-imediato e o oficial mais alto salvo o próprio capitão, dormindo no posto de comando e mantendo as velas rizadas (parcialmente recolhidas, uma medida tomada em condições de vento intenso) além do necessário. Furioso com a insubordinação de William, Joshua tomou uma decisão drástica: o destituiu de seu posto de comando e o trancou em sua cabine.
E assim o Neptune’s Car seguia para o sul, sua liderança reduzida ao capitão e a um segundo imediato analfabeto, e com um enorme desafio à frente: a temida passagem do Cabo Horn
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Talvez não exista na navegação um lugar mais temido e respeitado do que a passagem do Cabo Horn, no estreito de Drake. Num contexto onde a maioria dos navegadores vinham do hemisfério norte, a passagem entre o sul da América do Sul e o continente antártico tem uma combinação intimidadora de fatores: longínqua, inóspita, congelante, tempestuosa.
O Cabo Horn fica no ponto mais estreito da única faixa de mar que circunda totalmente o globo. Os ventos sopram predominantemente de oeste para leste e o swell causado por eles pode dar a volta ao mundo sem encontrar qualquer faixa de terra que o pare ou diminua sua intensidade. Fortes correntes também seguem a mesma direção e sua proximidade com a Antártica faz com que as temperaturas frequentemente caiam abaixo de zero. São possíveis ondas de até 30 metros de altura e qualquer manobra para mover um navio desse porte com o intuito de recuperar alguém que por imenso azar caia ao mar é tão difícil que a tentativa se torna inútil.
Navios que queiram fazer a passagem de leste para oeste, como era o caso do Neptune’s Car, precisam enfrentar todas essas condições de frente, na direção contrária dos ventos, correntes e ondas predominantes. Somando-se a isso, o velame tradicional de um Clipper é otimizado para o curso em alheta (“empurrando” o navio num leve ângulo vindo da popa), o que torna o contravento extremamente difícil.
Joshua assumiu as funções de primeiro-imediato
Após a destituição de William, Joshua assumiu as funções de primeiro-imediato, além das de capitão que já desempenhava até então. Ondas lavavam o convés. Os grossos suéteres de lã, encharcados de água salgada, não secavam. A vida no navio, jogando de um lado a outro, se tornara exponencialmente mais difícil. Após semanas, exausto e constantemente exposto à ondas e ao frio ao timão do navio, foi precisamente nesse ponto inóspito do globo que Joshua contraiu tuberculose e adoeceu. Mary fazia o que podia para atenuar o sofrimento do marido. Porém, entre febre e delírios, ela pouco podia fazer para evitar que sua saúde se deteriorasse. Rapidamente, Joshua entrou em coma.
Aos 19 anos, Mary estava em um navio em águas congelantes e castigado por tempestades. Tinha seu capitão e parceiro em estado crítico, o primeiro-imediato preso, um segundo-imediato incapaz de ler cartas náuticas e, portanto, navegar, e estava em seu segundo trimestre de gravidez.
Um motim a bordo
Ainda que não sem experiência, Mary até esse ponto nunca ocupara nenhuma posição formal em navios. Seu marido era o capitão, seguido de seu primeiro e segundo imediatos. Mesmo assim, a jovem sabia ler e gostava de passar o tempo auxiliando Joshua na navegação e outros afazeres do comando do Neptune’s Car. Descontado o primeiro imediato, ela era então a pessoa mais competente a bordo para levar o navio até seu destino.
Uma semana após Joshua adoecer, William inicialmente escreveu uma carta para Mary, alertando sobre os perigos da navegação naquelas águas e implorando por sua restituição e elevação ao posto de comandante. Ela foi firme: se Joshua não o julgou digno de ser um imediato, ela não poderia fazer dele capitão.
O primeiro-imediato deposto não aceitou a decisão e incitou o resto da tripulação a um motim, afirmando que o Neptune’s Car deveria abandonar a viagem e atracar em Valparaíso, no Chile. Qualquer parada não programada trazia consigo a certeza de perda de parte da carga e da tripulação. Sabendo disso, Mary chamou todos para a popa do navio, onde pediu confiança em sua habilidade de conduzi-los até São Francisco. No final, exceto por William, Mary conseguiu o apoio sólido de seus agora marinheiros.
O longo caminho de volta
Desse ponto em diante, Mary era tanto navegadora quanto enfermeira. Cinco meses grávida e com o comando do navio firmemente em suas mãos, ela se encontrava a vários milhares de milhas de seu destino. Se não estava ao timão, ou debruçada sobre cartas náuticas, dissecava livros de medicina e cuidava de Joshua. Absolutamente sobrecarregada, por 50 dias Mary não conseguiu sequer trocar de roupa. Seu cuidado surtia efeito: ainda que enfraquecido demais para sair de sua cama ou retomar suas funções, Joshua acordara novamente.
Com a tripulação desfalcada e sob a promessa de melhor comportamento, Mary permitiu que William retornasse parcialmente às suas funções. O Neptune’s Car cortava veloz as águas do Pacífico Sul e deixava o Horn e suas tormentas para trás. O primeiro-imediato não tardaria, porém, a mostrar que não merecia a confiança. Mary percebeu que o navio não seguia a sua rota planejada, mas sim desviava com frequência para leste.
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William insistia em seguir em direção a Valparaíso e nem a realocação da cama de Joshua à uma posição de onde era visível a bússola o deteve. Era a gota d’água e ele foi permanentemente destituído. Os ares mais quentes, porém, não fizeram bem à febre de Joshua. Sua saúde piorou violentamente, seu corpo ardia e, à latitude do porto chileno, ficou cego. Nas mais adversas condições, Mary se provou uma exímia comandante.
No fim de outubro de 1957, quatro meses após a partida, o Neptune’s Car finalmente chegava a São Francisco. Apesar dos elementos, da gestação, da saúde de Joshua e das tentativas de motim e sabotagem, aportava não só em segurança, como à frente de um de seus competidores, o Intrepid. Nem mesmo um prático sua capitã aceitou, insistindo em conduzir pessoalmente o navio até seu atracadouro.
Recepção de heroína
O feito impressionante de Mary causou furor na imprensa da época, recebendo 1.000 dólares dos seguradores do Neptune’s Car em agradecimento por evitar uma catástrofe – embora jornais da época defendessem uma quantia de ao menos 5.000 dólares. Se tratando da era vitoriana, Mary manteve uma humildade quase frustrante para um leitor atual, dizendo que “apenas fez seu dever de esposa”.
Mary e Joshua voltaram para Nova York a bordo do vapor George Law. Menos de um mês após o retorno à costa leste, Mary deu à luz. Apesar dos cuidados, Joshua nunca se recuperou de sua tuberculose e faleceria em poucos meses. A mesma doença tomaria a vida de Mary quatro anos depois, poucos antes de completar 24 anos.
Ainda hoje, com tecnologias modernas e toda uma estrutura de busca e salvamento, navegar nas águas do estreito de Drake é uma tarefa arriscada. No folclore náutico, velejadores que conseguem esse feito ganham o direito de tatuar um “full-rigged ship” (um navio com velas quadradas em todos os seus três mastros) e aqueles que perecem na passagem são homenageados com a imagem de um albatroz, ave que voa serena sobre o mar bravio.
Realizar a passagem há quase duzentos anos já seria impressionante por si só. Fazê-lo sob as condições de Mary é algo para os livros de história.
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Que história fantástica, Parabens pela pesquisa e gratidão por compartilhar.
A tenacidade humana — contra tudo e contra todos — é a fagulha dos gigantes que arde no peito de heróis. E heroínas.
Adorei o texto, Ale. Kudos!
Viva Mary Ann! Bom artigo!