Malaca, o empório da Ásia
Malaca, o empório da Ásia, é mais um artigo especial para este site de *José Alfredo Vidigal Pontes.
Porto das especiarias
Assim que Vasco da Gama desembarcou em Lisboa, em 1499, circulou a notícia de um certo porto mais ao oriente da Índia onde se podia encontrar toda sorte de mercadorias. Logo espalhou-se a mítica de Malaca, onde se comerciavam muitas especiarias e artigos de luxo. E o maior interessado era o próprio rei D. Manuel, autocrático monarca que acompanhava pessoalmente o projeto de estabelecimento de comércio com o Oriente.


Portanto, já em 1505, o primeiro Vice-rei da Índia, D. Francisco de Almeida, foi incumbido expressamente por D. Manuel de descobrir o caminho marítimo até lá. No ano seguinte, a partir de Cochim o Vice-rei enviou dois espiões num navio islâmico, os quais foram desmascarados e quase mortos.
Obsessão de D. Manuel
Entretanto, D. Manuel não se conformava com essa dificuldade de atingir o tão famoso porto. Em abril de 1508 fez sair de Lisboa uma frota com quatro navios, comandada por Diogo Lopes de Sequeira, a qual tinha a incumbência de adotar uma aproximação diplomática com Malaca.
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Fraude no seguro defeso pago a pescadoresCem anos depois navio de Amundsen volta pra casaDesastre ecológico no Ribeira de Iguape pressiona o LagamarDesta feita com métodos diferentes daqueles empregados por Gama e Cabral na costa indiana. Chegando a Cochim, Sequeira contou com o apoio de Francisco de Almeida, o qual já tomara conhecimento da rota a seguir, acrescentando um de seus navios à esquadra de Sequeira. Neste barco cedido por Almeida havia um oficial de nome Fernão de Magalhães, que se celebrizaria anos depois a serviço de Castela ao planejar a primeira viagem de circunavegação do planeta.
Malaca
Localizada na Malásia, no estreito que liga o Índico ao Mar da China, e defronte à ilha de Sumatra, Malaca desempenhava no século 15 e 16 o que hoje cabe ao porto de Singapura.
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Era um mercado que conectava o comércio do Índico com a China, Japão e Coréia. Os comerciantes da cidade eram bem diversificados quanto à sua origem e religião, embora predominassem os islâmicos. Até mesmo cristãos armênios conviviam com indianos, árabes, turcos, persas, bengaleses, birmaneses, siameses e chineses.
Um porto cosmopolita
Conforme o relato de Tomé Pires, português que morou em Malaca de 1512 a 1514, em suas apertadas ruas falavam-se mais de 80 dialetos! As mercadorias eram diversificadas e de variadas procedências, transacionadas por embarcações oriundas de todo o Índico e do Mar da China. Assim, nada menos que porcelana, ervas medicinais, ouro, prata, pérolas, perfumes, joias, sedas, cetim e especiarias em geral estavam disponíveis.
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Cumprindo as recomendações de D. Manuel, Diogo Lopes de Sequeira aportou amistosamente em Malaca, em setembro de 1509. Através de comerciantes chineses conseguiu uma entrevista com o Sultão Mamude, o potentado islâmico local. Este foi receptivo e aceitou a abertura de uma feitoria portuguesa no porto.

Todavia, dada a reação enérgica dos mercadores maometanos, os quais não aceitavam a presença lusa, o Sultão recuou em sua generosidade e teve que aceitar um ataque aos navios portugueses ancorados. Surpreendido, Sequeira refutou os combatentes islâmicos e fez-se ao mar em direção à Índia, deixando 20 portugueses como reféns.
O persistente D. Manuel
Enquanto isto se passava, em 1510, D. Manuel enviava outra esquadra com destino a Malaca, comandada por Diogo de Vasconcelos, julgando que a missão de Sequeira havia sido bem sucedida. Ademais, tratava-se de uma das frotas que acidentalmente se juntou a Albuquerque em agosto, em Cochim, com destino ao ataque a Goa, tão logo tomou conhecimento do fracasso da missão anterior de Sequeira.

Contudo, uma vez conquistada Goa pela segunda vez, o Vice-rei Afonso de Albuquerque preparou uma nova expedição para a conquista de Malaca, e partiu em abril de 1511, com 18 embarcações e 1000 soldados.
A Cruzada de D Manuel
Todavia, mesmo tão distante, D. Manuel ocupava-se pessoalmente da estratégia comercial na Índia. E também dos objetivos religiosos conjugados, que idealizavam um ataque e tomada de Jerusalém e Alexandria, após a conquista do Cairo pelo Sul, com o almejado domínio do Mar Vermelho.
Conforme havia prometido ao Papa: uma cruzada para libertar a cidade santa! Entretanto, esse acompanhamento era prejudicado pelas comunicações demoradas e às vezes incertas. Assim, muitas vezes as recomendações reais eram contrariadas pelos Vice-reis diante da necessidade de uma eventual decisão urgente que atendia a outras prioridades.
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O cerco de Malaca
A armada de Albuquerque chegou no início de julho e ancorou ao largo do porto, com controle total do acesso. Prontamente exigiu a libertação dos reféns deixados por Sequeira. O Sultão relutou. Contudo, pacientemente, Albuquerque esperou algumas semanas. Então, inesperadamente bombardeou a cidade. O Sultão, assustado, libertou os prisioneiros.

O Vice-rei exigiu um resgate e a permissão para construir uma fortaleza, mas Mamude recusou. Na madrugada de 25 de julho, dia de São Tiago, os portugueses iniciaram o ataque a Malaca. Invadiram a cidade, feriram o Sultão quando ele caiu de seu elefante e, antes de recuar por temerem um ataque pela retaguarda, queimaram a mesquita e o palácio real.
O ataque final
Passadas duas semanas, Albuquerque estava seguro da possibilidade de um ataque decisivo. E assim foi feito! À frente de 600 infantes entrou em Malaca triunfalmente. Permitiu o saque aos mercadores islâmicos que haviam colaborado com o Sultão, de forma bem organizada.

O Sultão, por sua vez, escapou, com intenção de retomar a cidade um dia. Tentaria mais de uma vez, mas sem sucesso. Albuquerque reforçou a defesa da praça, bastante melhorada com a sua ilustre torre batizada de “A Famosa”. O Vice-rei preocupou-se também com a convivência social, condição fundamental para a continuidade da atividade comercial. As comunidades de mercadores passaram a ter cada qual seus próprios magistrados. A maior delas, a indiana, era comandada pelo rico mercador Nina Chatu.
A cobiça holandesa, mais uma vez
Com o tempo as muralhas de Malaca foram melhoradas, a ponto de os holandeses a considerarem inexpugnável no início do século 17, quando era manifesta sua intenção de tomá-la. Assim, os batavos não conseguiram conquistá-la com um primeiro ataque em 1602.
Somente o fariam décadas após, em 1641, quando planejaram e realizaram um cerco prolongado, contando com 3.000 homens, contra apenas 260 defensores portugueses, já sem mantimentos. Porém, um século e meio após, repetiu-se uma constante na História dos sucessivos impérios marítimos europeus. No ano de 1795 os ingleses desalojaram os holandeses! As fortificações foram demolidas e o protagonismo portuário e comercial da região passou a Singapura.
A herança cristang
Contudo, nem todo patrimônio cultural português foi destruído. No século 16 a Coroa incentivou a miscigenação. Em consequência, em Malaca resiste fortemente a comunidade cristang, composta por mestiços de malaios com portugueses, os quais conservam um dialeto próprio e manifestações culturais na dança e na música.
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Entretanto, apesar da marcada influência dos costumes da região do Minho, em Portugal, tanto o dialeto como os bailados e canções são muito singulares, sincretizados com a cultura malaia. E até mesmo a língua malaia conserva mais de 300 palavras de origem portuguesa.
Manter suas tradições e identidade
Os cristangs fazem questão de manter suas tradições e identidade, hoje reconhecidas pela Malásia. Resiliente e honrada por seu passado, a comunidade cristang tem mais de 35.000 pessoas nos dias de hoje, sendo que a maioria pratica o catolicismo.
*José Alfredo Vidigal Pontes: historiador e jornalista. Graduado em História pela USP é autor de livros sobre a história do Brasil.
Leituras recomendadas:
Boxer, C. R. – O Império Marítimo Português 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 2017.
Costa, João Paulo Oliveira e (coord.) – Rodrigues, João Damião – Oliveira, Pedro Aires _ História da Expansão e do Império Português, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2014.
Crowley, Roger – Conquistadores, São Paulo, Planeta, 2016.
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Pintado, Padre Manuel – Um passeio por Malaca Antiga, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1990.
Sanceau, Elaine – O Sonho da índia: Afonso de Albuquerque, Porto, Civilização, 1939.
Silva, Beatriz Basto da – Em Malaca: redescobrir Portugal, Macau, Imprensa Oficial de Macau, 1989.