Isolado numa ilha, você viveria assim?
Quem nunca pensou em viver isolado numa ilha num momento de raiva ou frustração, e como nos contos de fada ser feliz até o resto de sua vida? O quadro faz parte do cenário humano com, ou sem, intenção.
A história mais famosa é uma ficção baseada na realidade. Robinson Crusoé, romance de Daniel Defoe, publicado em 1719 no Reino Unido. O livro conta a vida do personagem que passou 28 anos isolado numa ilha até ser finalmente resgatado. Quem não leu, e sonhou, deixou de ser criança.
A obra de Defoe teria tido como referência a história de vida de Alexander Selkirk, náufrago escocês que passou quatro anos numa ilha do Pacífico hoje conhecida como Robinson Crusoé. Na verdade, trata-se da maior ilha do arquipélago Juan Fernandez, na costa chilena, assim rebatizada em 1966.
O enredo escolhido por Defoe tem tudo a ver conosco. A imaginação do autor coloca Crusoé, nascido na Inglaterra no século 17, no Brasil onde plantava cana-de-açúcar. Mas eis que nosso herói decide comandar um navio da África ao Brasil para trazer escravos. Quando navegava pelo mar do Caribe uma tempestade provoca o naufrágio em que todos, menos ele, morrem.
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Juntos viveram uma série de aventuras até serem resgatados. De volta à Inglaterra, o personagem casa-se, recupera sua fortuna, e vive feliz até o fim de seus dias. Poderia ser diferente num romance do século 18?
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O curioso é que até mesmo hoje, tem quem considere viver numa ilha a melhor solução. Neste post vamos mostrar alguns casos, até mesmo o de uma brasileira.
Um luso em 30 anos de solidão isolado numa ilha
Já contamos neste site a inacreditável e real história do escudeiro Fernão Lopes, nascido em Lisboa na virada do século 15 para o século 16. Depois de escolhas erradas, e muitas aventuras em Goa, Fernão Lopes desertou, converteu-se ao islamismo, e foi morar em Bijapur.
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Foi espancado, e seus algozes esfregaram uma mistura de lama e excrementos de porco em seu rosto. No dia seguinte nova seção, quando deceparam-lhe o nariz. No terceiro, mais uma, desta vez foi decepado o polegar direito para que nunca mais segurasse uma espada. Finalmente, cortaram-lhe a orelha direita.
Desfigurado, foi solto em Goa para ser reconhecido e maltratado por todos. Depois de alguns anos vivendo como indigente, ele finalmente consegue voltar a Portugal numa frota de apenas dois navios, em 1516.
Era outro homem. Incapaz, cheio de vergonha, e sem saber o paradeiro de mulher e filho que deixara em Lisboa. Não vislumbrava uma saída em Portugal.
Ilha de Santa Helena
Assim, no caminho de volta quando as naus pararam na erma ilha de Santa Helena, Fernão Lopes desertou outra vez e viveu em solidão por quase 30 anos. Curiosamente, as naus da Carreira da Índia, a mais notória rota marítima desde então, continuavam a parar em Santa Helena para a ‘aguada’.
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Ao longo do decênio de 1520, uma média de sete ou oito embarcações paravam ali. E, apesar de nunca se mostrar, os lusos sabiam de sua existência. Deixavam-lhe roupas, utensílios e alguma comida, além de sementes de árvores frutíferas que ele pediu na única vez em que se mostrou aos marujos que desembarcaram.
Aos poucos Santa Helena se tornou um pomar que atendia às necessidades das naus que retornavam a Portugal. O nome de Fernão Lopes passou a se tornar mais conhecido até o ponto em que o rei de Portugal, D. João III, mandou buscá-lo.
Foi recebido pela família real. E, mais tarde, chamado ao Vaticano para ser recebido pelo Papa Clemente VII ‘que lhe concedeu absolvição depois de Lopes ter ajoelhado e confessado sua apostasia’.
Ao retornar a Portugal, D. João III quis conceder-lhe uma graça depois de tanto sofrimento. O que ele quisesse. Fernão Lopes não teve dúvidas. Escolheu voltar para Santa Helena onde viveu em solidão até morrer. Sua fascinante história foi recontada no post Ilha de Santa Helena, um luso e 30 anos de solidão.
Mas, o que isso tem a ver com a pergunta que fizemos: você viveria isolado numa ilha? Pois saiba que há quem goste até hoje.
‘Acabamos de nos mudar para uma ilha deserta que nunca havíamos visitado antes’
Este é o título de matéria da BBC News de 4/12/2020. Ela conta sobre a decisão de ‘Alex Mumford e Buffy Cracknell, um casal de Bristol, no Reino Unido, que largou tudo para começar uma nova aventura vivendo e trabalhando em uma pequena comunidade na Ilha de Rum, a 50 quilômetros do continente escocês.’
‘Em agosto, o Isle of Rum Community Trust, uma organização comunitária da ilha, fez uma chamada para aceitar novos residentes’. A dupla estava entre as quatro mil consultas, acredite se quiser.
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‘Agora, nesta semana, eles finalmente conseguiram chegar ao lugar sobre o qual só haviam pesquisado no Google’. Segundo a BBC, ‘Rum é uma pequena ilha das Hébridas Interiores, um arquipélago da Escócia. Entre 30 e 40 pessoas moram na ilha, dependendo da época do ano e dos trabalhadores sazonais’.
Ao que parece a comunidade precisava de mais pessoas. Fizeram um financiamento para construir quatro casas ecológicas no vilarejo de Kinloch, e abriram as inscrições.
Eles queriam “indivíduos ou famílias interessados em se adaptar ao modo de vida da ilha”, e capazes em ofícios e habilidades que diversificassem a (pequena) economia local. Foi o que levou o casal Alex e Buffy a dizerem adeus aos prazeres mundanos do século da tecnologia. Juntos, embarcaram na empreitada ‘mais três casais da Inglaterra e um da Escócia, com seis filhos entre eles’.
E estes não foram os únicos a dizer bye, bye, pra civilização.
‘Esta mulher mora sozinha numa ilha desabitada há 40 anos’
Este é o título da matéria do site www.resilienciamag.com em novembro de 2019. O texto lembra que ‘normalmente o isolamento social prejudica a saúde das pessoas. No entanto, a solidão é geralmente prejudicial quando forçada. Ou seja, quando a pessoa não decidiu se isolar, mas é resultado das circunstâncias’.
‘Por outro lado, quando se deseja ficar sozinho, a solidão pode se tornar um paraíso terrestre’. Este é o caso de Zoe Lucas isolada há mais de quarenta anos na ilha Sable, na costa do Canadá, mas segundo a matéria ‘na realidade, ela não está sozinha porque compartilha sua vida com as centenas de cavalos que habitam a ilha’.
O ‘paraíso’ de Zoe
O ‘paraíso’ de Zoe não é lá muito grande, apenas 42 km de comprimento por um de largura. E o clima é péssimo, pouco sol, chuva, frio e neblina. Mas quem se importa?
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Aos 21 anos de idade, na década de 70, Zoe visitou a ilha Sables e nunca mais a esqueceu. Tentou voltar como cozinheira num projeto de pesquisa na região. E não pensava em outra coisa que não fosse voltar para estudar os cerca de 400 cavalos selvagens lá deixados, inúmeras espécies e pássaros e mamíferos marinhos como focas e outros.
Mais tarde participou de outro projeto que cuidava de restaurar a ecologia da ilha. Até que conseguiu nela se fixar. Segundo matéria do site Aventuras da História, ‘Zoe conta com a ajuda externa e os suprimentos são enviados à ela a cada duas semanas’. E, ‘além da alimentação, ela só precisa de alguns elementos especiais, como por exemplo um bloco de anotações e um binóculo para conseguir observar a vida selvagem’.’
Ao contrário do casal que se mudou para a ilha do RUM, Zoe vive exclusivamente só. Ela, os cavalos, a fauna e flora da ilha de Sables. Zoe mora na única casa da ilha que ‘um dia havia sido uma estação de salvamento’. Há cerca de 300 naufrágios ao redor de Sables. Sobre os cavalos? Teriam sido levados numa tentativa de colonização, ainda no século 18.
Mas Zoe não foi a única mulher a optar por viver só numa ilha. Existe um caso muito parecido e bem aqui, no Brasil.
‘Esse lugar acima aí na foto é meu escritório. Não tenham pena de mim. Eu mereço’
‘Esse lugar aí’, é o Atol das Rocas uma nesga de areia no meio do mar a 267 km de Natal, Rio Grande do Norte; e a declaração é de Zelinha, como ficou conhecida Maurizélia de Brito a guardiã, ou ‘xerife’, do Atol das Rocas no Atlântico Sul, e primeira unidade de conservação do bioma marinho. Ali não há sombra, nem água fresca. Apenas vento, muito vento, uma enorme quantidade de aves marinhas, além de sol escaldante quase o tempo todo.
Mesmo assim Zelinha decidiu ser a ‘xerife’ do Atol onde desembarcou em 1991, aos 25 anos de idade. Quatro anos depois, em 1995, ela se tornou a chefe da unidade de conservação, uma reserva biológica, e nunca mais saiu de lá a não ser para breves estadas no continente.
Três anos numa barraca em pleno Atol das Rocas
“Nossa primeira base era um acampamento. Vivemos por três anos em barracas, sem contato com o continente. Debaixo de muito sol, muito sal, tomando bicada de trinta reis e viuvinhas (espécies de aves locais) que também não tinham problema em jogar cocô na cabeça da gente.”
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Já estive no Atol um par de vezes. Apesar da beleza, e da enorme biodiversidade de suas águas, o local é desolador. Milhares de aves gritam sem parar, o sol castiga, bate com força tremenda o dia inteiro, e o vento é implacável. Chega a incomodar depois de algumas horas. Mas foi neste ‘pingo’ de areia em meio a muita água que Zelinha decidiu escolher para trabalhar e viver a maior parte do tempo.
“Passei frio, fome. Mas para mim o isolamento era tudo. Não ter de assinar ponto. Viver com bicho, conversar com bicho. Lavar louça vendo aquele tanto de tubarão… Quando cheguei lá soube que nunca mais seria uma pessoa comum.”
“É uma área de risco, oceânica, de mar aberto. Se pegar uma corrente, vai embora parar no Caribe ou no Ceará. Banheiro é na correnteza. Se não sabe nadar, não pode ir pro Atol. Se tem epilepsia, problema cardíaco, se tem histórico depressivo.”
Em meio à solidão, a amizade com Cida
“A gente não tinha recurso, passava necessidade, passava frio e fome, a gente lutava contra a pesca, e eu ficava conversando com os bichos. A Cida resolveu sair do ninhal e ocupar uma janela da casa. E muitas vezes eu estava na porta e ela ia perto. Eu nunca toquei nesse bicho. Mas a Cida está junto comigo há 22 anos. Ela é o amor da minha vida. Eu me transformei na minha história de luta por causa dela. Eu disse: Cida, a gente vai vencer.”
A luta contra a pesca ilegal
Apesar de o Atol das Rocas ser uma unidade de conservação de proteção integral, de onde não se pode extrair nada, e apesar dos pescadores brasileiros saberem disto, passam por cima das leis e investem contra o Atol como se fosse um depósito de vida marinha à disposição de quem quiser. Sabendo disso, nossa amiga se mudou para lá de mala e cuia…e passou o pão que o diabo amassou afugentando pescadores ilegais.
“Era uma dor muito grande ver os barcos de pesca. O atol foi sempre área de pescador e por cerca de 300 dias por ano eles estavam lá. Às vezes eram oito, dez barcos, pescando com rede, compressor, linha, arpão. E saíam carregados de peixes, lulas.”
Enfrentando pescadores com armas de fogo a bordo
“Eu subia no farol para ver os barcos de pesca – e também a beleza do atol, coisa que sempre gostei muito de fazer – e ficava pensando: ou eu me entrego, ou eu desisto, ou eu mudo a história. Foi quando decidi me transformar na xerife do mar. E corri atrás de muito barco de pesca. Tirava as redes. Salvava os bichos ainda vivos, até que a gente conseguiu.”
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“No início sofremos muita ameaça. Uma vez, estava a 2,5 milhas do atol tirando uma rede, e o pescador reclamou, disse que estava pescando numa boa. “Numa boa, dentro da reserva?”, perguntei. E ele pegou a arma. A sorte foi que tinha um outro pescador que me conhecia desde que nasci e segurou ele.”
“Os pescadores sempre falavam que iam atirar. Eu só dizia: “Bicho…” Subia no barco, mostrava que não tinha arma, conversava. Perguntava o que tinha para comer. A gente tem poder de polícia, eu posso usar arma, mas nunca usei, porque numa área daquela, se desse um tiro… Éramos eu e mais três pessoas isoladas, sem comunicação. Cada barco tem oito homens. Matavam a gente e nunca ninguém nem ia descobrir quem foi.”
“Mas dizia: “Se eu pegar vocês de novo no Atol, a mulher de vocês é bonita? Porque eu vou pegar mulher, filho, galinha, tudo o que eu puder pra mim!” Aí eles riam e assim foi. Eu perseguia mesmo. Deu certo.”
Condições atuais no Atol das Rocas
Passados todos estes anos hoje a situação para Zelinha é um pouco melhor. Há uma pequena casa de madeira pré-fabricada, presente da ONG SOS Mata Atlântica que está de pé desde 2008. Este escriba esteve na viagem em que o pessoal da SOS foi visitar a nova morada de Zelinha em seguida à sua construção.
Mas o resto continua o mesmo. A pesca ilegal ainda é praticada nas imediações, mesmo que os barcos não cheguem mais tão perto por saberem que terão que enfrentar a ira de nossa amiga. Mas a pesca prossegue livre, leve e solta nas imediações não só desta unidade de conservação, mas de todas as outras da costa brasileira.
Não há força no mundo capaz de brecar a pesca
Como já dissemos inúmeras vezes, não há força no mundo capaz de brecar a pesca. Ela só vai parar quando for economicamente inviável, o que não está longe de acontecer.
“Hoje não sou mais xerife do mar. Agora sou só a Zélia. Fui xerife na hora que tinha de ser. Pensava: ou vou morrer ou vou mostrar que sou mais que eles, porque tenho uma legislação a meu favor. Eu me inflava, virava uma super mulher e ia atrás deles. Ia pesado, brigando. Para verem que eu era mulher, mas não tinha medo. Só que eu tinha. Quando voltava, deixava o pesquisador e ia ao banheiro. E chorava tudo o que tinha de chorar.”
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“Até hoje tem pescador mais velho que olha para mim e fala: “A bicha era braba demais”. Se soubessem como chorei com medo deles. Mas eles gostam de mim, porque sabem que lutei pela vida deles também.”
E você, viveria isolado numa ilha?
(As declarações de Zelinha foram extraídas de matéria do jornal O Estado de S. Paulo, cujo link segue abaixo).
Imagem de abertura: Atol das Rocas, arquivo MSF
Fontes: https://www.bbc.com/portuguese/geral-55188233?at_custom3=BBC+Brasil&at_custom1=%5Bpost+type%5D&at_campaign=64&at_medium=custom7&at_custom2=facebook_page&at_custom4=F2FAB2EE-3639-11EB-AD7C-C1610EDC252D&fbclid=IwAR2mbP1JXTGs5XrmxmPv-lmG-w2-mo85pcNLTZzHe9gA4DBjgdsE86edEjc; https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/40-anos-isolada-em-uma-ilha-remota-inacreditavel-historia-de-zoe-lucas.phtml; https://www.resilienciamag.com/esta-mulher-mora-sozinha-em-uma-pequena-ilha-desabitada-no-atlantico-ha-40-anos/?fbclid=IwAR023F64MFFuKNIwMrI19N9g8YKTMgDoodomNjjOPqWst4h9xuzKff8_how; https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,a-historia-de-zelinha-a-xerife-do-mar-que-salvou-o-atol-das-rocas,70002445328.
Muito bom artigo.
Parabéns pela qualidade do material.
Rotina: Parabéns pela matéria.
Depois de ler a matéria sobre Fernão Lopes ninguem me tira da cabeça que Defoe sabia sobre para “criar” o Robinson Crusoé dele. E tenho dito.
Mas nas Rocas, Zelia tem agua doce?
Parabéns pelo texto e por descrever estas histórias sempre fascinantes. Sempre muito agradável a leitura!
Para me ver livre desta Brasil…..
Parabéns pela reportagem! Esta coluna é excelente!
Muito bom!
“Solidão não é estar só. Solidão é estar vazio”.