Euclydes da Cunha e Vicente de Carvalho numa furiosa tempestade
Quando pensamos em Euclydes da Cunha a primeira imagem que vem na cabeça é a da Guerra de Canudos, no sertão da Bahia. Em 1897, cobrindo o conflito para o jornal A Província de São Paulo, atual O Estado de S. Paulo, o jornalista produziu a obra que o tornaria célebre, Os Sertões. O trabalho ainda lhe rendeu a entrada na Academia Brasileira de Letras em 1903. Euclydes também foi o criador de dois aforismos que ficaram para a história: A Amazônia tornou-se o Inferno Verde, em suas palavras, e O nordestino é, antes de tudo, um forte.
Mas, será que alguém conhece a viagem à ilha de Búzios, em 1902, no litoral norte paulista em companhia do poeta Vicente de Carvalho? Pois saiba que eles enfrentaram uma furiosa tempestade, magistralmente descrita pelo poeta paulista. Mais que a presença de Euclydes, o que nos entusiasmou nesse périplo marítimo foi a narração do fenômeno climático. O leitor é transportado para bordo do pequeno rebocador Alamiro, com direito até a sentir frio na barriga.
A ilha de Búzios e uma Colônia Penal
Em 1902 o governo de São Paulo planejava construir uma Colônia Penal em uma ilha. Assim, despachou Euclydes da Cunha (1866-1909) para visitar as ilhas de Búzios, e Vitória, em São Sebastião. O escritor deveria produzir um relatório com suas impressões.
Vicente de Carvalho (1866-1924), advogado, jornalista, político, abolicionista, fazendeiro, deputado, poeta e contista, casou-se com Ermelinda Ferreira de Mesquita, irmã do jornalista Júlio Mesquita, da Província de S. Paulo. Os dois tornaram-se amigos. Entre outras atividades conjuntas, ajudaram escravos escondidos no quilombo do Jabaquara.
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Se a maioria das pessoas conhece Euclydes da Cunha (1866-1909), nem todos sabem quem foi Vicente de Carvalho.
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Ele era um visionário, um homem muito à frente de seu tempo. Como Secretário do Interior, no governo de José Alves de Cerqueira César (1835-1911), autorizou a criação da escola Superior de Agricultura, a ESALQ, bem como a Escola de Engenharia que viria a se tornar a Politécnica, da USP. Na área de saneamento, revela o wikipedia, quis trazer Pasteur ao Brasil. Esse mandou seu aluno Felix Le Danc que, entre outras, criou o serviço sanitário no Estado.
Vicente de Carvalho: contra a privatização de praias e favorável à sua preservação
Vicente de Carvalho amava o litoral, sobretudo Santos. Certa vez protestou contra o presidente Epitácio Pessoa (1865-1942) que visitava a cidade. O poeta não queria a privatização das praias, ele estava preocupado com a especulação imobiliária já em 1921, e defendeu sua preservação. Em carta aberta escreveu,
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A viagem no rebocador Alamiro
Agora que você conhece o caráter destes notáveis brasileiros, resta-nos a tempestade.
De acordo com a matéria publicada pelo Estadão em 30 de maio de 1954, o ‘texto de Euclydes fora publicado originalmente na Revista da Academia Brasileira de Letras’. ‘Mas’, diz o redator, ‘o texto é quase desconhecido do grande público. Seus biógrafos nem sequer a ela se referem, razão porque a vamos transcrever hoje’.
Com a palavra, Vicente de Carvalho:
‘Tínhamos sido surpreendidos na ilha deserta de Búzios, por um famoso temporal caído à boca da noite. O pequeno Alamiro, um rebocador que lá nos levara e lá nos esperava, passara a noite de fogos acesos, pronto a fugir do seu abrigo estreito, onde a fúria do mar ameaçava a cada instante, esmagá-los nos costões’.
‘Antes de clarear o dia, repetiam-se os apitos do rebocador, chamando-nos. Nós estávamos no alto de um morro acima do nível do mar; e não podíamos, no escuro da noite, que o temporal da chuva em torrentes fazia mais escura, descer a íngrime escarpa e atravessar o áspero costão, que nos separa do mar’.
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O pequeno Alamiro meteu violentamente a proa no mar
‘Aos primeiros clarões do feio dia que raiava, descemos’.
‘Conseguimos, encharcados da chuva e dos borrifos das ondas, chegar ao Alamiro. E, largando seu perigoso abrigo numa remansosa enseada que a fúria do oceanos violara e pusera a perder, o pequeno Alamiro meteu violentamente a proa no mar largo e no temporal desfeito, que esbravejava e rugia’.
‘Euclydes tinha a incumbência oficial de visitar a ilha da Vitória mais ao largo, que aparecia no horizonte carrancudo, através da chuva que caía, como uma mancha cinzenta e lúgubre’.
‘Mandou aproar para Vitória. Logo ao sair da enseada o pequeno vapor começou os boleios. Tínhamos que segurar-nos aos varões de ferro para não sermos atirados ao mar, varridos pelas ondas que entravam pela proa do Alamiro e iam sair-lhe, espumantes e mugindo, pela popa’.
‘A cada passo, o rebocador subia, vagarosamente, como por uma montanha acima, por uma onda enorme que lhe viera ao encontro; e chegando ao cume, na rapidez da própria marcha e do movimento da vaga em contrário, precipitava-se, como uma flecha, com a proa quase em rumo vertical, ao fundo do mar…’
‘Euclydes, pouco afeito ao oceano, pelo qual sente verdadeiro pavor, conservava-se pálido, com os olhos fitos na mancha longínqua e meio apagada, que designava no horizonte e na imensidão do mar, a ilha Vitória’.
O mestre do barco, um velho lobo do mar
‘O mestre do barco, um velho lobo do mar, que neste se criara como marinheiro da Armada Nacional, veio a custo, aos trambolhões, agarrando-se por onde podia, dizer a Euclydes que a ida à Vitória era um perigo, contra as águas e contra o vento, com aquele mar e aquele tempo’.
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“Ninguém sabe, dizia ele, o que vem atrás do temporal…O que já está aqui é grande: mas não se sabe se lá nos pegará mais bravo ainda…”
“A ordem é ir para a Vitória, é preciso que vamos! – respondeu Euclydes, aterrado, com os lábios franzidos, os dentes cerrados’.
O mar cada vez mais colérico, cada vez se encapelava mais
‘O temporal continuava; e tocado nele, o mar cada vez mais colérico, cada vez se encapelava mais, sacudindo e rolando o Alamiro, como uma casca de noz, entrando e saindo por ele ferozmente, levantando sobre montanhas e precipitando-o ao fundo de verdadeiros vales formados entre as ondas…’
‘E o Alamiro, obedecendo às ordens inflexíveis de Euclydes, avançava para o largo mar, penetrava cada vez mais, no temporal e no perigo…’
‘Afinal, a situação tornou-se grave. O mestre veio novamente procurar Euclydes, e declarou-lhe isto mesmo. Havia risco iminente em continuar aquela rota inflexível’.
Era urgente aproar para São Sebastião
‘Era urgente aproar para São Sebastião, dando costas ao mar e ao vento, demandar a segurança dum porto abrigado…Se continuássemos, era muito possível que numa daquelas descidas em que o vapor se precipitava entre duas ondas, não conseguisse ressurgir…’
Só diante dessa declaração categórica, Euclydes cedeu. Deixou-se vencer. E ainda assim…
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‘Se eu morresse, dizia-me ele, tinha uma bela morte, a morte no cumprimento do dever. A sua é que seria estúpida: morrer num passeio’.
‘Creio que foi por essa razão, de ir ali, a passeio, quem escreve estas linhas, que não morremos. Se o que escrever estas linhas também fosse cumprir deveres, adeus nossas encomendas’.
Como se sabe, ele não teve a morte honrosa com que sonhou. Em 1909, aos 43 anos, Euclydes da Cunha morreu baleado pelo amante de sua mulher, Dilermando de Assis, depois de invadir armado a casa dele, ‘disposto a matar ou morrer’.
Descrição de Euclydes da Cunha sobre os caiçaras da ilha Vitória
Em 18 de abril de 1954, o Estadão publicou o relatório de Euclydes na íntegra. A maior parte são informações técnicas, sem interesse. Contudo, há alguns parágrafos em que o autor d’os Sertões descreve os caiçaras, em texto que encheria os olhos de um antropólogo. Por ser totalmente desconhecido, julgamos oportuno publicá-los.
‘A pequena população de poucas centenas de almas, que existe na Vitória, se bem que sob a jurisdição da comarca de Vila Bela, está de todo segregada do resto do País’.
Não é muito diferente do que ocorre hoje…
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‘Vive sob o patriarcado de um octogenário, Joaquim de Oliveira, que, graças a notável ascendente moral, enfeixando todos os poderes, lhe regula os atos dos que entendem com a organização da família aos que visam a manutenção da ordem e aos que orientam uma atividade resumida em pequenas culturas de cereais e à faina pesada das pescarias no alto do mar’.
Sobre os caiçaras
…são naturalmente homens de compleição robusta, vigorosos e ágeis, afeiçoados aos perigos que afrontam todos os dias, porque, canoeiros eméritos, se distanciam às vezes para sueste até perderem de vista a terra, ou atravessam constantemente o largo braço de mar que os separa de S. Sebastião, principal mercado para onde levam, salgados, os produtos de suas pescarias’.
‘O mar tem sido uma escola de força e de coragem – sendo naturais que a ele devam as únicas tradições locais que de certo modo se prendem a uma fase da nossa história’.
Os navios negreiros e os caiçaras de Vitória e Búzios
‘As ilhas da Vitória e Búzios foram as estações mais avançadas dos vigias que iludiam ou burlavam aquela fiscalização severa (sobre os navios ingleses que vigiavam nosso litoral para impedir o tráfico negreiro). Graças a sinais adrede combinados, de fogueiras acesas ao longo dos costões volvidos para o sul, ou de bandeiras de diversas cores levantadas no mais alto dos morros, os navios negreiros, ao longe, aproavam confiantes para a terra ou amarravam céleres furtando-se aos que os caçavam’.
‘Toda a atividade naqueles pontos se resumia nas aventuras perigosas do contrabando de escravos’.
‘Dali arrancavam em velozes canoas de voga os auxiliares dos traficantes, indo colher em pleno mar os negros manietados que conduziam para os recessos do Sombrio, ao fundo da baía dos Castelhanos, e para o litoral, de preferência na faixa vincada de pequenas angras que se estira de Mocooca às terras que defrontam o Bairro Alto’.
‘Estas empresas arriscadas, nem sempre coradas de êxito, resultam os únicos episódios da história, de todo destituída de interesse, daquelas ilhas. Eles persistem no mesmo estágio rudimental’.
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População da ilha Vitória em 1902
‘Na única realmente povoada, a de Vitória, entre 358 pessoas, somente duas sabem ler e escrever. Um professor que ali esteve, há tempos, pouco se demorou, abandonando-a como quem foge a um degredo inaturável’.
‘Por outro lado nenhum sacerdote houve ainda bastante abnegado para procurar a população esquecida, que é, digamo-lo de passagem, fervorosamente cristã’.
‘Deste modo aqueles lugares, tão próximos do litoral, estão como abandonados sem terem definido os próprios nomes – como se estivessem a desmarcadas distâncias, em pleno Atlântico…’
‘Merecem contudo alguma atenção. Posto que diminutíssima a facção de nossa gente que por ali moureja, numa atividade primitiva, enérgica e penosa, faz jus a melhores destinos. E uma escola – traduziria a mais bela intervenção dos poderes constituídos, no sentido de incorporar a uma Pátria, que não conheçam, aqueles desprotegidos patrícios’.
Finalmente, a Colônia Correcional do Porto das Almas acabou inaugurada em outra ilha próxima, a ilha Anchieta, em 1908, com o prédio principal de autoria de Ramos de Azevedo.
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