❯❯ Acessar versão original

Canoa de tolda Luzitânia, preciosidade naval em perigo

Canoa de tolda Luzitânia, do baixo São Francisco, uma preciosidade naval em perigo

Quando eu a vi pela primeira vez, abril de 2006, estava no meio de uma longa viagem pelo litoral do Brasil tendo iniciado a navegação no rio Oiapoque, fronteira norte do Brasil, exatamente um ano antes, abril de 2005. Eu demorara um ano para chegar na divisa entre Alagoas e Sergipe, o rio São Francisco. Isto só já demonstra o empenho em conhecer cada detalhe da costa brasileira sem pressa, com muita calma para descobrir, gravar  e relatar cada detalhe. Pois bem, no São Francisco tive o privilégio de ver as canoas sergipanas com sua imensa área vélica,  conduzidas com maestria por dezenas de nativos. Mas, a que mais me impressionou foi a canoa de tolda Luzitânia, que passava por minucioso processo de restauração por mestre Nivaldo, o último mestre construtor ainda em atividade. Tudo obra de um apaixonado pelo nosso patrimônio naval, Carlos Eduardo Ribeiro Júnior. Agora, em desespero, soube que a Luzitânia está alagada, assentada sobre o fundo do rio no município de Mato da Onça, no Baixo São Francisco.

canoa de tolda Luzitânia
Imagem, canoadetolda.org.br.

Embarcações típicas

O Brasil tem um dos mais ricos acervos de embarcações típicas ainda em atividade. Um bem cultural que a vasta maioria das pessoas sequer sabe da existência; mas que existem, navegam, e foram valorizadas pelo IPHAN que as transformou em  bens culturais de um País que mal conhece sua história.

A Luzitânia já restaurada com suas duas velas trapezoidais, e a típica bolina lateral, herança da construção naval holandesa. Imagem,canoadetolda.org.br.

O órgão não só tombou algumas embarcações, entre elas a Luzitânia, como lançou o Projeto Barcos do Brasil em 2008, com o objetivo de conscientizar o público, preservar e conservar o Patrimônio Naval brasileiro.

Este escriba tem paixão por mais esta riqueza, a ponto de lançar o livro Embarcações Típicas da Costa Brasileira pela editora Terceiro Nome (esgotado em papel, mas disponível em e-book).

Embarcações típicas

Para situar o leitor, trata-se de notável acervo de embarcações ainda em uso como os saveiros na Bahia (restam entre 12 ou 13), as jangadas em boa parte do Nordeste (hoje feitas de tábuas, porque o pau de piúba originalmente usado acabou, sumiu do Nordeste por mau uso); ou os muitos modelos diferentes que navegam no litoral do Maranhão, o Estado com a maior quantidade de tipos em atividade.

Nas regiões Sudeste e Sul o que sobrou deste acervo são as canoas, em seus variados e múltiplos modelos.

PUBLICIDADE

A beleza rústica do saveiro de vela de içar na Baía de Todos os Santos. Acervo MSF.

Há as canoas de um só pau, em São Paulo, e Rio de Janeiro, herança da tradição indígena; as canoas de voga de Ilhabela; ou as canoas bordadas com suas proas lançadas, de Santa Catarina; no Espírito Santo, em Anchieta, fundada pelo Apóstolo do Brasil, há um tipo único, com proa arredondada; e no Rio Grande, ainda existe uma canoa de pranchão, um modelo com mais de cem anos devidamente tombado pelo IPHAN.

Canoa de pau no saco de Mamanguá, RJ. Acervo MSF.

O IPHAN e as embarcações típicas

Por ser dramático, envolvendo a ‘extinção’ de um bem cultural de valor, vale esclarecer ao leigo, mas interessado, que por trás da decisão de ‘credenciá-las’ como bens culturais, repousa uma sugestão de técnicos, e da academia; e chancela pelo Estado já que o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – órgão Federal criado em 1937 e vinculado ao Ministério do Turismo, tem como função a ‘preservação e divulgação do patrimônio material e imaterial do país’.

Dalmo Vieira Filho

Muito desta ‘proteção’, deve-se ao arquiteto Dalmo Vieira Filho, e seus muitos colegas na longa e às vezes ingrata empreitada de mostrar aos brasileiros o que eles têm de bom, aquilo que os distingue de outros povos. Em nosso caso, um destes muitos patrimônios, apesar de quase ignorado pelo grande público, são as embarcações típicas.

Dalmo, para quem não conhece, tem currículo impecável, e ao mesmo tempo admirável pelo exemplo de espírito público. Ele foi Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Santa Catarina, e professor concursado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Representou o Ministério da Cultura no Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e no Conselho Nacional de Turismo.

Foi presidente do Comitê Brasileiro do ICOMOS-UNESCO, e membro do Conselho Consultivo do Iphan. Diretor do Departamento do Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan por mais de cinco anos, até setembro de 2011. Presidente interino do Iphan, nos impedimentos do Presidente, de 2009 a 2011.

Coordenou trabalhos que resultaram no tombamento nacional de aproximadamente 30 cidades e centros históricos brasileiros e dezenas de tombamentos, obras de restauro, socialização de sítios arqueológicos, inventários nacionais, normativas de áreas acauteladas.

Em Santa Catarina criou o Museu Nacional do Mar, em São Francisco  do Sul, que tem um imenso e belíssimo acervo de embarcações, muitas das quais já extintas, em perfeitas condições ao tempo de nossa visita. Um espetáculo que este site passou a admirar e divulgar desde 2007, um orgulho para o País que deu às costas ao mar mas, ainda assim, museu de nível dos melhores do exterior, dentro de nossas possibilidades.

Obra do Dalmo.

PUBLICIDADE

Barcos de todo o Brasil lá estão. Não réplicas, barcos originais comprados, reformados e colocados no acervo. Por sua importância, o Museu Nacional do Mar de São Francisco do Sul, deveria constar em todo e qualquer ‘folder’ turístico que venda o Brasil.

Porque, se este tema toca pouco o público interno, no exterior a virtude é admirada, cultuada, e até mesmo mais conhecida. Europeus, em geral, são fascinados  pela diversidade das embarcações típicas brasileiras.

A mais bela e rica canoa do País

Mas a mais bela e rica canoa do País, é a derradeira canoa de tolda que foi achada imprestável, pelo incansável Carlos Eduardo que fundou a ONG Sociedade Canoa de Tolda para comprá-la, restaurá-la, e mantê-la em atividade. Luzitânia foi restaurada por mestre Nivaldo. Em 2010, Dalmo Vieira Filho, em nome do IPHAN reconheceu os méritos, e tombou a Luzitânia.

Canoa costeira enfrenta o vento, Alcântara, Maranhão. Acervo MSF.

Quando cheguei em Piaçabuçu, um ano depois do início da viagem, fiquei encantado ao descobri-la.

Mestre Nivaldo que utilizou apenas serrote, formão, martelo, compasso e quase nada mais. Acervo MSF.

Canoa de carga

De acordo com o site canoa de tolda.org, ela é uma canoa de carga tradicional do São Francisco, ‘com capacidade de 200 sacos (cada saco corresponde ao padrão de peso de 60 kg)’, e é ‘das mais antigas ainda hoje navegando no Baixo São Francisco. Os registros orais de sua construção remontam aos anos 20’.

Com vento de popa as duas velas se abrem formando uma imensa área vélica que, com uma leve brisa, já faz deslizar a Luzitânia. Imagem, canoadetolda.org.br.

O cangaceiro Lampião navegou na Luzitânia

Além de tudo, tem uma pitoresca história.  Segundo o  projeto, ‘foi utilizada por Lampião e seus cabras (veja o depoimento de Tonho da Ilha do Ferro, no documentário De Barra a Barra), isso já nos anos 30, quando da fase sedentária do cangaceiro estabelecido no Baixo São Francisco. Em seguida veio uma série de proprietários, e a canoa foi engajada no transporte de carga geral como queijo, leite, querosene e gasolina, entre o sertão e a região de Penedo’.

Navegando no São Francisco. Imagem, Nilton Souza.

Finalmente, em 1999, ela foi comprada por Carlos Eduardo, em estado de semiabandono, para ser restaurada e voltar a navegar pelo Baixo São Francisco. Foram quase 10 anos de trabalho até ela estar em condições perfeitas.

PUBLICIDADE

Depois da aquisição, ‘a canoa foi levada definitivamente para o povoado Mato da Onça, sendo retirada da água no início de 2000, pois era grande o risco de naufrágio’.

Cozinhando a bordo para você conhecer o interior da canoa. Imagem, Carlos E. Ribeiro Jr.

Preservar a cultura e história do Baixo São Francisco

Como apregoa o site do projeto, ‘A manutenção da canoa de tolda Luzitânia ativa, além de preservar elemento afetivo da população das margens, também contribui para a preservação da cultura e história do Baixo São Francisco, com suas ramificações aos trechos médio e submédio do rio’.

Luzitânia navegando debaixo de chuva fina. Imagem, Paulo Paes de Andrade.

Começava o processo que tive o privilégio de registrar. Em 2007 a bela canoa foi colocada na água onde ficou até ser alagada em 18 de janeiro.

Imagem, canoadetolda.org.br.

Como todos os outros barcos típicos, a canoa de tolda do São Francisco, depois da conquista do Nordeste pelos holandeses a partir de 1630,  ganhou duas bolinas, uma de cada lado do casco, um avanço na arte da navegação que devemos ao gênio holandês, um dos povos que se destacaram na arte da navegação e construção naval entre os séculos 16 e 17.

Assim são as embarcações típicas. Se fossem doutrinas religiosas, diríamos sincretismo; como são embarcações, preferimos diversidade, fruto da mistura dos saberes indígenas, com o dos negros africanos, e uma pitada dos melhores marinheiros europeus à época da descoberta; portugueses, espanhóis, holandeses, franceses, e ingleses, todos nos visitavam frequentemente.

Ora fundeavam na Baía de Guanabara, como Fernão de Magalhães no século 16; ora em Salvador, Bahia, a primeira capital, como fez  Darwin três séculos depois.

Com estas visitas, os carpinteiros navais que já eram os melhores ao viabilizarem a Carreira das Índias, aprenderam ainda mais.  Provaram talento adaptando as soluções às embarcações que então usavam. Eram profissionais especializados que se espalhavam entre Salvador, Belém, e Rio de Janeiro, os portos mais importantes do período colonial.

PUBLICIDADE

Numa destas visitas por exemplo, adaptaram  a bolina lateral (espécie de quilha que proporciona mais estabilidade) de um navio holandês na canoa de tolda; na noutra, adotaram a ‘armação em cutter’ (sistema de velas) dos navios ingleses, muito simples e eficiente, que foi o escolhido para as canoas costeiras do Maranhão. Quando, não se sabe? Mas, pelo menos, desde que a memória dos mais velhos  nos conta a história, depois recontada por nós, e assim por diante.

Como, da miscigenação de raças, saiu um  povo diferente, único, e talentoso; da mesma forma ‘explodiu’ a variedade ímpar das embarcações de Pindorama. Simples assim. Mas raro assim.

SOS Luzitânia

A Chesf – Companhia Hidrelétrica do São Francisco – aumentou a vazão São Francisco no momento em que a canoa estava aberta para reparos. Ela não aguentou e foi alagada. Agora, por falta de verba, e excesso de burocracia, esta maravilha naval está ameaçada de desaparecer. Desde que foi alagada, Carlos Eduardo luta para conseguir tirá-la d’água e repará-la.

Ele tem falado quase diariamente com o IPHAN pedindo verbas, mas nada até agora. A canoa precisa apenas ser puxada para terra firme. Mas isto custa, e os órgãos competentes agem, como se sabe, a passos de cágado.

Imagem da Luzitânia em 20 de janeiro. Imagem, canoadetolda.org.br.

A canoa de tolda Luzitânia, apesar de coberta, repousa numa margem do Baixo São Francisco alagada. É preciso investimentos. Mas vale a pena, ela é ‘a’ joia do acervo naval tradicional. A única que restou. Não custa lembrar, extinção é para sempre.

O Mar Sem Fim conversou com Carlos Eduardo

… que se mostra desanimado. Entre outras ele disse que ‘não se importam com a cultura do País, não por outro motivo o Museu Nacional pegou fogo (2018) e foi destruído em razão do péssimo estado de conservação’.

‘O que dizer de uma canoa velha?’ Os órgãos encarregados, como o IPHAN, simplesmente não dão pelota ao assunto atualmente. E tudo que ele precisava para tirar a embarcação da água, e repará-la, seria algo em torno de R$ 150 a R$ 200 mil reais. Nada mais.

PUBLICIDADE

O que disse Dalmo Viera Filho à TV

Dalmo, que está fora do País, foi entrevistado pela TV SE1, da globoplay, em 26 de janeiro: “Esta embarcação é um verdadeiro tesouro da cultura popular brasileira. A Luzitânia é a última destas canoas que ainda resistem no São Francisco, (vale dizer) no mundo. Ela é um dicionário de soluções técnicas, de maneiras de construir barcos, e de navegar sobre um rio como o São Francisco. É de um valor inestimável.”

A entrevista  ainda durou mais alguns minutos com Dalmo  chamando a atenção para o desastre que se avizinha se continuar a omissão. ‘A perda de um bem cultural deste valor não pode se dar por mero capricho burocrático’, enfatizou. E concluiu: ‘Seria demais’.

Em 31 de janeiro, a Justiça condenou o IPHAN, em decisão liminar, a arcar com os custos para retirar a Luzitânia de situação em que se encontra mas, incrivelmente o órgão que a tombou, recorreu da decisão.

O sentimento do  Vice-Almirante Bernardo José Pierantoni Gambôa

Como homem do mar, patriota, e amante das nossas tradições navais, Gambôa, que também foi  comandante do belíssimo navio escola Cisne Branco, da Marinha do Brasil, fez questão de se manifestar:

Canoa de tolda Luzitânia é certamente uma das mais belas embarcações típicas brasileiras. Ela é parte da cultura e tradição do nosso País, fazendo parte do Baixo São Francisco zona de grande interesse turístico nacional e internacional. A maritimidade de um povo tem bases sólidas nas suas tradições. Portanto, essa Canoa não pode ser abandonada. Salvemos a Luzitânia!!!

As palavras de Amyr Klink: “Com o desaparecimento da Luzitânia a gente sente uma espécie de amputação cultural.”

Campanha para salvar a Luzitânia

Como o IPHAN não tomou conhecimento da situação, Carlos Eduardo lançou uma campanha para angariar fundos. Participe, não deixe esta joia naval desaparecer. Clique neste link e faça sua doação.

Assista ao vídeo e saiba da importância desta joia naval

Imagem de abertura: Nilton Souza

Descoberto recife de coral gigante no Taiti

Sair da versão mobile