Navios de Calígula, ou os ‘iates’ do Imperador
Caio Júlio César Augusto Germânico era seu nome. Foi imperador por menos de cinco anos, de 37 d.C até 41 d.C. Entrou para a história com o apelido de Calígula, dado pelos soldados por usar, desde pequeno, máscaras de legionário com pequenas cáligas, ou botinas militares em português, nos pés. Era filho de Germânico e Agripina, ele, um grande general. Tinha dois irmãos e três irmãs. Contudo, apesar de menos de cinco anos de poder interrompido por um assassinato tão comum na Roma antiga, a crônica registra uma vida tão desregrada e amalucada que o nome ‘Calígula’ até hoje remete a desvario, demência, além de medo. Mas, o que nos interessa são os navios de Calígula que, assim como seu dono, entraram para a história, neste caso, a história marítima mundial.
Os prazeres de Calígula
O biógrafo Suetônio sustenta que a mãe de Calígula, Agripina, depois de presa foi açoitada com tanta violência que perdeu um olho e logo depois morreu (ou foi morta) no exílio. O irmão, Druso, passou tanta fome na prisão que tentou comer parte do colchão. O outro irmão evitou um destino semelhante cometendo suicídio, informa a BBC.
Antecipamos que, como informa a BBC, ‘o biógrafo escreveu um século depois, quando já estava bem estabelecida a fama de Calígula como um lunático.’
Naquele tempo, a escrita ainda engatinhava, como conta Irene Vallejo em seu delicioso Infinito Em Um Junco – A invenção dos livros no mundo antigo – indicado como ‘um dos melhores do ano’ pelo New York Times.
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Sim, até pouco tempo antes do relato de Suetônio a cultura mundial era repassada de pai para filho de forma oral. Antes de mais nada, a primeira biblioteca mundial surgiu em Alexandria (fundada por Alexandre, o Grande, em 331 a.C.).
A biblioteca foi mais um fruto da dinastia ptolemaica iniciada no Egito pelo pupilo mais famoso de Aristóteles.
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Em outras palavras, ‘o desejo de reunir todos os saberes conhecidos em forma de 54.800 rolos – os ‘livros’ de papiro de então – (para outros historiadores antigos eram 700 mil na Biblioteca de Alexandria) fora destruído justamente no período de anexação do Império egípcio pelos romanos em 48 a.C.
Para se ter uma ideia do imenso conteúdo, apenas um destes ‘rolos’ que sobreviveu e hoje está no Museu Britânico, o papiro Harris, tem nada menos que 42 metros. Ou seja, ’42 metros’ de história da civilização.
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Contudo, alguns dos ‘feitos’ de Calígula, que até os leigos recitam de cor, é que ele teria feito de seu cavalo um senador (não confirmado). Outro, relato de Suetônio, diz que o imperador ‘gostava de fazer sexo com suas irmãs durante os banquetes, enquanto os convidados olhavam horrorizados.’
Mito ou verdade, fazer sexo com irmãos não era incomum à época, ao contrário. No Egito antigo era corriqueiro. Cleópatra, por exemplo, casou-se com seu irmão caçula. E ela não foi a única a fazê-lo. Para nós pode parecer estranho, para os ‘reis’ do antigo Egito, entretanto, era comum.
Mas, de uma coisa que lhe fazia gosto ninguém duvida, festas e orgias aos borbotões. E para torná-las ainda mais inesquecíveis, o imperador mandou construir dois imensos navios depois colocados no lago Nemi, 30 quilômetros ao sul de Roma.
Estes barcos remetem aos superiates dos oligarcas russos da atualidade. Acima de tudo, são imensos e recheados de luxo e ostentação para impressionar convidados especiais.
Naquele época Roma dominava os mares, tomando o lugar que fora de gregos e persas, egípcios, e antes ainda, cartagineses e fenícios. Não por acaso, o Mediterrâneo era conhecido como Mare Nostrum.
O lago Nemi e seus segredos
Durante séculos, os pescadores medievais que navegavam as águas do Lago Nemi conheciam um segredo. Ao passarem redes no pequeno corpo d’água, não era incomum trazerem à tona pedaços trabalhados de madeira.
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O lago Nemi, de origem vulcânica, tinha apenas 1,6 Km2, com profundidade máxima de 33 metros, nos conta Dalton Delfini Mazieiro, em seu interessante livro onde resgata a história do mergulho ao longo dos séculos, A Profundeza do Mar Azul.
Segundo o autor, especulava-se que os pedaços de madeira trazidos em redes ou ganchos ‘pertenciam a um templo submerso ou um naufrágio.’
1446, o início da procura
‘No ano de 1446 o arquiteto, humanista e poeta Leio Battista Alberti, com apoio financeiro do Cardeal Prospero Colonna, investigou as descobertas pessoalmente.’
Para as operações de resgate, conta Mazieiro, Alberti contratou mergulhadores genoveses, que amarravam cordas com ganchos na estrutura de madeira, tentando erguê-la para a superfície, com ajuda de guindastes construídos em plataformas flutuantes.
Mazieiro diz que a partir deste momento ficou claro que se tratava de um grande naufrágio, ‘devido à descrição dos mergulhadores sobre um gigantesco casco de madeira.’
Mas a experiência foi em vão. Tudo que conseguiram ‘foi arrancar alguns pedaços do barco.’
1535, nova tentativa de resgate no Lago Nemi
Segundo a obra de Dalton Delfini Mazieiro, ‘em 1535, Francesco De Marchi e Guglielmo de Lorena realizaram o que pode ser considerada a primeira investigação arqueológica da história.’
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‘Guglielmo havia inventado um Sino de Mergulho com um sistema de respiração até então inovador…’
‘Eles mergulharam – a serviço de Alessandro Médicis – nas águas turvas do Nemi com auxílio do novo aparelho. Fizeram diversos mergulhos, com duração variada, e conseguiram coletar e trazer à superfície grande quantidade de artefatos.’
Para o autor de A Profundeza do Mar Azul, ‘o que nos surpreende nestes mergulhos – os primeiros iniciados em 15 de julho de 1532 – é sua duração. Francesco relata que conseguiram permanecer entre 30 a 120 minutos abaixo d’água, e que o fator limitante não era a falta de ar, mas sim o cansaço e o frio das profundezas.’
Desta feita, surgiram ‘peças de bronze, cobre, chumbo, pedaços de mármore e vigas de madeira.’
Mas foi tudo.
1895, confirmada a existência de dois navios naufragados
A curiosidade, surgida séculos antes, persistia. Dalton Delfini Mazieiro, conta que ‘com apoio do Ministério da Educação italiana, Eliseo Borghi conseguiu resgatar peças que confirmavam a existência não de um templo, mas de dois navios naufragados separadamente.’
‘O primeiro deles com a popa a 7 metros de profundidade, e a proa a 14 metros. O segundo navio encontrava-se a 19 metros. Ele conseguiu trazer à tona dois lemes de diferentes aspectos e algumas cabeças de bronze com a representação de animais.’
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Contudo, muitos anos se passaram sem novidades. Porém, no início do século 20 surgiria a novidade que finalmente revelaria os navios de Calígula: A ascensão do ditador Benito Mussolini que, ‘visando à criação de símbolos nacionais, mandou drenar o lago.’
Uma extraordinária surpresa estava por vir.
Benito Mussolini e a drenagem do Lago Nemi
De acordo com Dalton Delfini Mazieiro, ‘a operação teve início em outubro de 1928. Passados cinco meses o nível da agua já tinha baixado 5 metros, revelando partes dos navios.’
‘Em junho de 1931, o primeiro deles foi recuperado, e o segundo já era visível em quase sua totalidade.’ Mazieiro diz que o segundo navio não foi recuperado quando o lago estava mais baixo em razão ‘de um estrato de lama que irrompeu na margem, prejudicando o resgate da segunda nave.’
‘Com a interrupção dos trabalhos, o nível do lago voltou a subir, submergindo pela segunda vez os destroços do navio.’
Entretanto, explica, ‘com a retomada do projeto em fevereiro de 1932 – agora de responsabilidade do Ministério de Educação e do Ministério da Marinha – o lago foi finalmente drenado e o segundo barco recuperado integralmente, fazendo parte permanente de um museu local inaugurado em janeiro de 1936.’
‘A esta altura, a história já era conhecida. Eles foram construídos a mando do Imperador romano Calígula, para saciar seus luxos e luxurias, pois funcionavam não exatamente para navegar, mas como palcos flutuantes de festas e orgias extravagantes.’
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Segundo o wwwdiscovermagazine.com, ‘Os navios eram vastos, entre os maiores já recuperados do mundo antigo. O maior tinha 80 metros de comprimento, o mesmo de um Airbus A380, e media pouco mais de 26 metros de diâmetro.’
Os navios de Calígula
‘Eram repletos de mosaicos, estátuas, banhos termais, galerias de arte e adornos dignos de um palácio imperial. Ambos movidos a remo, e com palácios construídos sobre eles.’
‘As naus foram submersas de forma proposital, no ano de 41 d.C., pouco depois do assassinato do imperador, como parte das ações do Senado Romano em apagar os feitos desmedidos de Calígula.’
O fim das embarcações
Apesar dos imensos esforços que começaram ainda no século 15, uma hecatombe mundial deu conta de ambos. Com a palavra, Mazieiro: ‘os navios de Calígula não chegaram aos tempos atuais. Foram destruídos na noite de 31 de maio de 1944, durante a II Guerra Mundial.’
‘Desde então surgiram acusações de ambos os lados – EUA e Alemanha – sobre os responsáveis pelo desastre. As tropas alemãs haviam estabelecido uma pequena base a cerca de 100 metros do museu naval.’
Bombardeios na II Grande Guerra
‘Segundo relatos, as forças americanas bombardearam a região, mas não com força suficiente para a destruição do museu. Poucas horas após o bombardeio, observou-se fumaça saindo do local e um incêndio tomou conta dos caibros e vigas recuperados do naufrágio.’
‘Posteriormente surgiu uma versão na qual o fogo havia sido ateado pelos próprios soldados alemães. As poucas peças que sobraram, juntamente com novas réplicas dos navios em escala, foram organizadas para uma reinauguração em 1953, onde se encontram até hoje.’
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Em tempo, ‘o uso das mais modernas bombas e turbinas hidráulicas de sucção foram usadas por Guido Ucelli no esvaziamento do lago em 1927.’
Navio da época de Calígula encontrado nos anos 50
Apesar dos mais famosos navios – os do Lago Nemi – terem se perdido para sempre, um navio de transporte da época de Calígula foi encontrado durante o desenvolvimento do Aeroporto Internacional Leonardo da Vinci em Fiumicino, na década de 1950.
Segundo o no.wikipedia.org/wiki/Caligulas_storskip, ‘O naufrágio foi presumivelmente de uma grande barcaça ou barcaça romana que tinha 95 metros de comprimento e 21 metros de largura. Isso é maior do que qualquer um dos navios de grãos, que negociavam com o Egito e carregavam 1.000 toneladas.’
‘Acredita-se que os romanos copiaram os navios egípcios que navegavam no Nilo em um navio oceânico especial para o transporte do Egito para Roma.’
Leituras sugeridas:
A Profundeza Do Mar Azul – Os primeiros caçadores de tesouros e suas incríveis máquinas de mergulho. De Dalton Delfini Mazieiro, Ed. Clube dos Autores.
Para se aprofundar mais, Le Navi de Nemi, de Guido Ucelli, Ed. Istituto Poligrafico E Zecca Dello Stato.