José de Anchieta…”via-se a morte deante dos olho”…
Origem do nome Abrolhos, e os muitos naufrágios
A primeira vez que estive em Abrolhos (1986) alguém disse que o nome viria dos perigos que os recifes oferecem à navegação. Diz a tradição que os nautas lusos alertavam “Abra os Olhos!”, aos que navegavam aquelas bandas. José de Anchieta foi um deles, e não gostou nada do que passou…
No tempo das caravelas (embarcações a quem tanto devemos) não foram poucos os naufrágios. Mais tarde depois descobri que o vocábulo ‘abrolhos’ é definido pelos dicionários como, “substantivo masculino, formações rochosas situadas à superfície da água.”
Um dos mais famosos naufrágios aconteceu com o “Apóstolo do Brasil”, o Padre José de Anchieta. No livro “José de Anchieta – Cartas Informações Fragmentos Históricos e Sermões (Ed. Universidade de São Paulo)” o sacerdote conta a saga.
Ele viajava em companhia de outros padres, de Salvador para São Vicente, em duas naus. Hoje vamos conhecer este naufrágio histórico em Abrolhos.
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Foi deste esplêndido documento que resumimos a história que vem a seguir. Logo na primeira linha surgem evidentes sinas da brutal curiosidade que a descoberta da nova terra provocava na Europa renascentista.
Anchieta inicia o texto quase pedindo desculpas (ao padre Geral) por ser econômico nos detalhes do dia a dia. “Pelas tuas cartas, que há pouco nos chegaram às mãos, vimos, Reverendo Padre, que desejas que escrevemos acercas do que suceder conosco que seja digno de admiração, ou desconhecido nesta parte do mundo.”
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E humilde, aceita o desafio: “Conformando-me com tão salutar mandato, cumprirei diligentemente, quando me for possível, a prescrita obrigação.” Sorte nossa…
Cenas do dia a dia nas cartas de José de Anchieta
“…então, há não só enchentes de rios, como grandes inundações dos campos; nessas ocasiões, uma imensa multidão de peixes, que saem da água para pôr ovos, deixam-se apanhar sem muito trabalho entre as ervas, e compensam por algum tempo o dano causado pela fome que a trouxera a subversão dos rios.”
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Hoje, fica cada dia mais raro termos um rio de grande porte que ainda conserve o indispensável (para vida marinha) fenômeno da piracema. A vasta maioria dos nossos corpos d’água foi estuprado pelas barragens para geração de energia; ou assoreados e poluídos.
O melhor exemplo deste flagelo é o São Francisco, um dos maiores do Brasil, o ‘rio da integração nacional’ agoniza, muito em razão de suas cinco barragens para geração de energia (15% por cento da energia gerada no País).
Descrições das coisas do litoral do Brasil quinhentista
Se você quer ter ideia do quão espetacular, do ponto de vista da biodiversidade e paisagem, era o nosso litoral, as cartas de Anchieta são um prato cheio. Vejamos como ele descreve um peixe descomunal.
Há um certo peixe a que chamamos boi marinho, os índios o denominam iguaraguá, frequentemente na Capitania do Espírito Santo e em outras localidades para o Norte, onde o frio não é tão rigoroso. É este peixe de tamanho imenso; alimenta-se de ervas. Excede ao boi na corpulência; é coberto de uma pele dura, assemelhando-se à cor do elefante.
Tem junto aos peitos uns como dois braços, com que nada, e embaixo deles tetas com que aleita os próprios filhos. Tem a boca inteiramente semelhante à do boi. É excelente para comer-se, não saberias porém discernir se deve ser considerado como carne ou peixe. Da sua gordura levada ao fogo faz-se um molho que pode bem comparar-se à manteiga, e não sei se a excederá.
A chegada de José de Anchieta em Abrolhos
“Tendo eu e quatro irmãos saído da cidade do Salvador depois de fazermos 240 milhas por um mar tranquilo á feição do vento chegámos a uns bancos de areia que, estendendo-se para o mar na distância de 90 milhas. Eles se parecem com uma muralha em linha réta tornam difícil a navegação
Sondando a profundidade
A í deitando a sonda a cada passo gastamos todo o dia. Fundeada a embarcação, pelo meio de estreitos canais entrincheirados por montes de areia, por onde se costumava navegar. No dia seguinte, porém, reunidos felizmente todos à tarde, os marinheiros julgando-se já livres de perigo. Tranquilizaram-se e não pensaram mais nele quando de repente o leme salta fora dos eixos e encalha o navio; sobrevem ao mesmo tempo uma repentina tempestade de vento e aguaceiros, que nos atira para apertados estreitos. O navio era arrastado sulcando areias e, por causa dos frequentes solavancos, temíamos que se fizesse todo em pedaços.”
Naufrágio histórico em Abrolhos: “Está tudo acabado, gritaram todos…”
“…ninguém podia conservar-se a pé firme, mas andando de gatinhas e para dizer corriam uns pelo tombadilho. Outros cortavam os mastros, aqueloutros preparavam as cordas e amarras. Começamos todos a tremer e a sentir veemente terror: via-se a morte deante dos olhos. Toda a esperança de salvação estava posta em uma corda e, quebrada esta, a nave ia inevitavelmente despedaçar-se nos baixios que a cercavam pela popa e pelos lados. Corre-se á confissão: já não vinha cada um por sua vez, mas dois a dois e o mais depressa que cada qual podia. Em uma palavra, fôra fastidioso contar tudo que se passou: rompe-se a amarra:”Está tudo acabado”! Gritaram todos…”
Todavia…
Todavia, no meio de tudo, isso não deixávamos de confiar em toda a fé em Deus, se bem que cada um contasse com certeza de morrer ali…Entretanto, não nos servido de velas nem de auxílio algum humano. Éramos levados sãos e salvos pelo meio dos escolhos, para onde a corrente nos arrebatava, e esperando a todo momento que se despedaçasse a embarcação.
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José de Anchieta: ‘Expostos à chuva, flagelados por tremenda tempestade, vendo a morte a cada instante…’
Expostos à chuva, flagelados por tremenda tempestade, vendo a morte a cada instante, passamos toda aquela noite sem dormir. Ao romper do dia, recobrando algum alento, consertamos da melhor maneira as velas e, procurando a terra, desejávamos ao menos encalhar o navio na praia. Mas, levados por uma corrente mais favorável do que esperamos, chegamos a um porto bastante seguro, habitado por índios, onde nos acolheram benignamente, e nos trataram com humanidade.
Naufrágio histórico em Abrolhos: a carta foi escrita em 1560
Assim escapou nosso Apóstolo do Brasil.
Ainda uma visão do que foi nosso litoral na visão do naturalista Carl Friedrich Ph. von Martius (1794 – 1868).
Nas notas, ao final do capítulo, explica o editor: “Com a tempestade, que na noite de 20 para 21 de novembro surpreendeu a missão nos Abrolhos, a embarcação de Anchieta ficou bastante danificada e a de Leonardo Nunes (outro sacerdote) inteiramente perdida.”
Imagem de abertura de Naufrágio histórico em Abrolhos: Benedito Calixto
Fonte: José de Anchieta – Cartas Informações Fragmentos Históricos e Sermões (Ed. Universidade de São Paulo)
Interação entre golfinhos e o ser humano – novas descobertas
Obrigado pela matéria
Sim, vi recentemente matas como está na região de Ubatuba, Paraty e Angra e tb na serra da Bocaina. Árvores incríveis, intactas e bromélias de vários tipos, além de samambaias e helicônias deslumbrantes. Naturalmente naquela época havia muito menos ocupação (quase nenhuma talvez). Obvio que devemos preservar o meio ambiente, mas é preciso entender que a população aumentou e que o mundo é outro.
adoro o Joao Lara Mesquita
Como sempre, materias de primeira, baseada em registros historicos, e estas imagens “puras” de pintores, que deviam estar extasiados com o que viam nesta terra maravilhosa.
Sei que você (e muitos outros) é um estudioso e admirador da saga de Sir Ernest Shackleton, comandante do Endurance, mas gostaria que falasse sobre o capitão da embarcação (F. Worsley DSO) e se foi ele , quem conduziu com maestria e com rudimentares recursos nauticos, no pior mar do mundo, navegando em um bote salva vidas, chegou ao seu destino e conseguiu resgatar toda a tripulação.
Maravilhoso registro histórico !
Historicidade raiz !
Excelente matéria, parabéns a todos os envolvidos!
Sim. Matéria boa. Informação histórica é sempre bem vinda, seja boa ou ruim, é histórica. Não adianta chorar o leite derramado.
Quer dizer que gordura derretida de peixe-boi fica parecido com manteiga? nham.. (sqn)
“… chegamos a um porto bastante seguro, habitado por índios, onde nos acolheram benignamente, e nos trataram com humanidade…”. Os pacíficos, generosos e ingênuos donos dessa terra não tinham como imaginar o que seria o
futuro “civilizado”. Não podemos reclamar se empresas estrangeiras compram as nossas, especialmente em tempos de pandemia. Nossos antepassados se fartaram de trocar espelhos por “aquelas pedras amarelas”… Grande artigo! A
natureza se reconstrói, lentamente, com ou sem a presença humana.
Uma bóia salva vidas no meio do oceano de notícias desagradáveis e tristes que permeiam nossos meios de comunicação.
Leio e acompanho trabalho do jornalista , lembrando que , não precisa ser assinante para ter acesso , materiais boas hoje são as que relatam corrupção etc. Senhores voltem a ter educação e respeito pela nossa história . Bando de ignorantes .
Tambem me incorporo àqueles que acharam excelente a matéria. Veja só a força da imagem…se à época não havia fotografia, a capacidade de Von Martius consegue nos transmitir quão frondosa era nossa natureza.
O artigo é excelente! Estou tendo um reforço positivo, ao contrário do ilustre amigo acima…
O artigo é muito bom! Deixe de ser negativista e mal humorado, meu caro amigo. P’ra que tanta amargura?
Matéria excelente! Mais uma razão para eu manter assinatura do Estadão