Jangadeiros do Nordeste, agora valorizados em livro
Eles fazem parte de nosso cotidiano desde o século 17 pelo menos. Mas, apesar disto, são quase desconhecidos do público, e nunca valorizados. Alguns deles tiveram papel relevante na história recente do País, mesmo assim poucos conhecem a saga de Francisco José do Nascimento, o jangadeiro que entrou para a história com o apelido de Dragão do Mar ao se rebelar contra o transporte de escravos na Fortaleza de 1881; ser recebido em seguida pelo imperador Pedro II, e ter se integrado à luta abolicionista da então capital do Império. Jangadeiros do Nordeste, agora valorizados em livro, é o tema de hoje.
Jangadeiros do Nordeste
O livro a que nos referimos é o saboroso Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste – E as grandes viagens para o Rio de Janeiro, Ilhabela e Buenos Aires, de autoria de Raimundo C. Caruso, editado pela Panam Edições Culturais, em 2004. Você pode encontrar este livro em sebos como o Estante Virtual, entre outros.
É um livro maravilhoso, que resgata os grande momentos destes notáveis navegadores. Já na primeira frase percebe-se o reconhecimento de quem sabe o que fala: ”O jangadeiro é, seguramente, um dos mais extraordinários personagens do litoral brasileiro’.
O Mar Sem Fim conhece e admira estes navegadores. Deixamos aqui nossa pequena contribuição ao contarmos a aventura de outro jangadeiro indômito, o Jacaré.
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Assim começou a saga de Jacaré e a jangada São Pedro que, em 1941, viajou durante dois meses do Ceará até o Rio de Janeiro, quando foi recebido apoteoticamente por Vargas.
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Jacaré virou celebridade, com direito a matéria na revista Time, e até filme com Orson Welles (1942). Mas, por uma destas ironias do destino, o jangadeiro morreu afogado durante a filmagem.
O que não sabíamos é que a viagem de Jacaré foi apenas mais uma na série de viagens com fins de chamar a atenção sobre uma categoria de trabalhadores que quase nunca foi ouvida pelos políticos de plantão: os pescadores artesanais.
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1922, a primeira viagem de jangada, de Fortaleza para Belém do Pará
A primeira grande navegação aconteceu para comemorar o centenário da Independência. Antes dela, houve a viagem de Francisco José do Nascimento, que embarcou em um navio mercante em 1884 junto com sua jangada em direção ao Rio de Janeiro.
Três anos antes, em 1881, ele havia liderado um boicote dos jangadeiros ao transporte de escravos para os navios com destino a São Paulo.
Apelidado pela imprensa de Dragão do Mar, Francisco José foi recebido por D. Pedro II, ‘se integrando em seguida à luta abolicionista na capital do Império’, conta Raimundo Caruso.
Caruso foi sensível aos diversos aspectos da vida dos jangadeiros do Nordeste. ‘Abandonado ao longo do litoral, sem saúde e sem aposentadoria, o jangadeiro teve de escrever com outro tipo de tinta e outra espécie de linguagem a sua causa e as suas exigências’.
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…’O jangadeiro parte em silêncio para uma viagem longínqua, com coisas e alimentos que mal enchem uma mão’.
Eis outros aspecto muito bem realçado no livro. A brutal dificuldade imposta pela jangada: ‘Não têm bússola, carta náutica, conta bancária, capas de chuva, roupas de frio, teto de náilon ou despedidas efusivas’ (antecedendo as muitas viagens).
‘Há jangadeiros que navegaram até a Argentina – pergunte no Brasil quantos veleiros modernos, com radares e computadores, fizeram a mesma coisa – e não têm como recordação nem uma fotografia’.
Raimundo conta que a viagem para Belém do Pará foi feita não por uma, mas por duas jangadas com uma tripulação de oito pescadores. ‘O objetivo foi participar do centenário da independência do Brasil, em 7 de Setembro. Retornaram a Fortaleza em 13 de outubro’.
A terceira viagem
‘Em agosto de 1928, viajam a Belém, para participar das festividades de 7 de Setembro, os jangadeiros Bernardino Fernando do Nascimento (mestre) e José Isidoro dos Santos. Retornaram de navio em 1º de outubro do mesmo ano. Essa viagem inspirará, 65 anos depois, a aventura dos jangadeiros de Prainha do Canto Verde, CE, para o Rio de Janeiro, em protesto contra a pesca predatória da lagosta‘.
Quarta viagem dos jangadeiros do Nordeste
Foi esta viagem, entre Fortaleza e Rio de Janeiro, que contamos em mais detalhes no post A saga de Jacaré e a jangada São Pedro.
Quinta viagem, de Fortaleza para Porto Alegre
O ano era 1951. E, como parte da tripulação, alguns ex-navegadores da jangada São Pedro entre eles Tatá (Raimundo Correia de Lima), então com 62 anos; Manoel Preto (Manuel Pereira da Silva), com 49 anos; e mais dois novos tripulantes, João Batista, com 31 anos, e Manoel Grande, com 61.
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Agora, imagine por um instante o sofrimento destes quatro navegadores, dois deles ‘idosos’, que por cinco meses enfrentaram os humores do mar, desde o mar tropical nordestino, ao temperado do extremo sul do Brasil. Sempre ao relento, ao sabor de ventos, correntes, e tempestades, sem nenhum abrigo que fosse! É inacreditável.
Em cada parada, de noite, nas praias ou vilas do trajeto, ‘desfraldavam as reivindicações dos pescadores do Nordeste’.
Na chegada os jangadeiros do Nordeste foram recebidos pelo prefeito, Hildo Meneghetti, e o governador, Ernesto Dorneles.
Sexta Viagem, 1958, de Fortaleza para Buenos Aires
‘Agora, em 15 de novembro de 1958, o destino é Buenos Aires, a seis mil quilômetros de Fortaleza. Esta será uma das mais longas (seis meses e 19 dias) e perigosas viagens de jangada de todos os tempos, só perdendo em distância para a jangada Kon-Tiki, de Thor Heyerdahl, que em 1947 foi do porto de Callao, no litoral peruano, até o Thaiti, na Polinésia, a sete mil quilômetros’.
‘A jangada cearense, comandada por mestre Jerônimo, chamava-se Maria Tereza Goulart, esposa do vice-presidente João Goulart, líder nacional do PTB, na época partido das causas dos trabalhadores. Foi, mais uma vez, o recurso usado para chamar a atenção do Governo para as dificuldades dos pescadores do Nordeste’.
Jangada de seis paus de piúba, do Ceará até Buenos Aires
‘A jangada, de seis paus de piúba, media mais ou menos um metro e oitenta de largura por oito metros de comprimento. Além de Jerônimo, era tripulada por outros três pescadores: José de Lima, Samuel Isidoro e Luis Garôpa’.
‘Navegavam, sempre que podiam, a umas dez milhas da costa (19 quilômetros), porém muitas vezes perderam a terra de vista. Depois do Rio de Janeiro passaram a enfrentar mares cada vez mais duros, e após o farol de Santa Marta, em Santa Catarina, e no litoral do Rio Grande do Sul, enfrentaram tempestades e ventos fortíssimos, o que nunca aconteceu com a Kon-Tiki’.
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‘Viajaram, trabalharam e dormiam ao relento, expostos à chuva, às ventanias e ao frio. Em certas ocasiões tiveram que se amarrar à jangada para não serem levados para o mar’.
Uma muda de roupa
‘Tinham apenas uma muda de roupa e cozinhavam num fogareiro a carvão. Não usavam cartas náuticas e não possuíam rádio. Na volta, passando pelo Rio de Janeiro, foram recebidos pelo presidente Juscelino Kubitschek, que parece não ter entendido nada do significado daquela viagem’.
Neste capítulo, Caruso faz uma comparação entre as viagens de jangada no litoral brasileiro e a viagem da Kon-Tiki glorificada não só na Noruega, terra de Hayerdhal, mas no mundo. Para constatar que na terra dos jangadeiros a repercussão foi bem diferente.
‘Já de Jerônimo e seus companheiros da viagem de seis mil quilômetros à Argentina, não há quatro fotografias. Ignorados pelas secretarias estaduais, pelos ministérios da Cultura do Brasil, nem se sabe, deles, como viveram, como terminaram seus dias ou o que significaram para a história do litoral do Nordeste e do país’.
‘Jerônimo, mestre jangadeiro instantaneamente esquecido, um dia desapareceu no mar, e hoje – mesmo entre os pescadores e as populações litorâneas – não se recorda mais nada da sua técnica de navegação, da sua personalidade e liderança, das suas inquietações, e das suas singulares aventuras’.
Depoimentos de pescadores e jangadeiros
Ao longo do livro há vários capítulos com depoimentos de pescadores e jangadeiros que são de arrepiar pela crueza e singeleza. Um deles, que deu sua visão da viagem até Buenos Aires, foi o jangadeiro José de Lima entrevistado por Caruso aos 99 anos.
‘O senhor sabe, jangada não tem cobertura, não tem toldo, então quando chove, chove, quando venta, venta, e aí faz frio e quem é que vai poder dormir? Só mesmo morto de sono, e então o jangadeiro se amarra para não ser levado pelo mar, e fecha os olhos por meia hora. E esse é um amém que quase sempre basta.’
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Há fartura de trechos assim, que nos fazem pensar no tremendo feito que é uma viagem de jangada até as latitudes bem mais altas de Buenos Aires. Passamos a respeitar ainda mais estes navegadores.
Sétima e oitava viagens, 1967 e 1968
Apesar das palavras certeiras, da falta de memória, e do absoluto desprezo pelas coisas do mar, houve ainda mais quatro viagens épicas de jangadeiros do Nordeste. A sétima aconteceu em 1967, com destino a Santos. A jangada Menino Deus foi tripulada por cinco pescadores. O objetivo, como sempre, era a defesa de sua profissão.
Neste caso os cinco reivindicavam aposentadoria para os jangadeiros. Chegaram em Santos em fevereiro de 1968, depois de 71 dias no mar. Foram recebidos pelo prefeito Sílvio Fernandes Lopes. A oitava viagem começou em dezembro do mesmo ano, com partida em Maceió e chegada no Rio de Janeiro.
Segundo Caruso, ela foi idealizada ‘por um estudante alagoano chamado Pedro Ernesto, que não conseguimos localizar’. E comandada pelo mestre João Batista Leitão, entrevistado no livro. ‘Segundo João Batista, eles fizeram a viagem apenas pelo gosto da navegada’.
Nona viagem e única que redundou em melhoria para os pescadores
‘Julho de 1972. Liderada pelo mestre jangadeiro José Eremílson Severiano da Silva (também entrevistado no livro), e acompanhado por José Maria da Silva, o Zé Surrão, esta viagem para Ilhabela, litoral de São Paulo, foi a única que trouxe benefícios reais para os pescadores’.
‘Recebido pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, em Brasília, Eremílson voltou para o Ceará com a aposentadoria para os pescadores brasileiros’.
Foram necessárias nove viagens em condições as mais drásticas para que finalmente os pescadores recebessem o que mereciam por direito.
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A décima viagem, para denunciar a pesca predatória de lagosta
Desta vez a partida foi da Prainha do Canto Verde, CE, onde há um bonito trabalho de preservação comandado por um suíço e já comentado neste site.
O objetivo foi protestar e denunciar a pesca predatória de lagosta com compressor em quase todas as praias nordestinas, apesar da legislação ambiental proibir a modalidade.
A largada aconteceu em abril de 1993, com o mestre Mamede Dantas Lima no comando da embarcação, acompanhado pelos pescadores Francisco Abílio, Francisco Valente, e Edilsom.
Eles foram recebidos no Rio por associações de pescadores, ecologistas, e por Dorival Caymmi que soube retratar a saga dos pescadores em suas canções.
‘Na volta’, segundo o autor, ‘tem início a organização sindical autônoma e combativa dos pescadores na maioria das praias do Ceará’.
Mas, a despeito da denúncia e dos protestos, já quase não existe mais a pesca comercial da lagosta. Os desaforos foram muitos, e o crustáceo, que quase provoca uma guerra entre França e Brasil, acabou diminuindo brutalmente das águas cearenses.
Jangadas do Nordeste
De acordo com Caruso são 4.200 jangadas no Nordeste, só no Ceará são 2.100. As jangadas são feitas com tábuas desde meados dos anos 40 do século passado em razão do sumiço do pau-de-jangada, ou piúba. E as do Ceará, um pouco maiores que as dos outros Estados.
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Isso acontece em razão da plataforma continental do Estado ser igualmente maior, com cerca de 100 quilômetros de extensão.
A grande diferença entre uma e outra é a durabilidade. A jangada de piúba durava em média um a dois anos, quando as toras encharcavam era hora de construir uma nova. Já a de tábuas, quando bem feita pode durar décadas.
Há basicamente dois tipos de pesca com jangadas no Ceará. A pesca de dormida, quando a jangada passa cerca de cinco dias fora, e chega a sair até 100 quilômetros da costa atrás de peixes; ou a de ir-e-vir, quando saem de madrugada para pescar lagostas a 20 quilômetros da costa, para voltarem no fim da tarde.
A segurança da jangada
Que o leigo não confunda a absoluta falta de conforto com falta de segurança. Jangadas são seguras.
Vamos nos lembrar que o vento no Nordeste é constante e quase sempre forte. Há duas estações. Inverno e verão. No inverno venta um pouco menos, mas chove. No verão venta muito, às vezes mais de 25 nós.
A jangada de piúba, ‘como era muito leve, jamais afundava’. Quem explica é o carpinteiro de jangadas de Mucuripe, Possidônio Soares.
‘Caso virasse, o jangadeiro poderia até morrer de sede ou de fome, quase nunca afogado. E também era possível desvirar esta jangada, e se nenhum elemento estivesse quebrado, a pesca continuava.’
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Este mesmo processo não acontece com a jangada de tábuas. Com a palavra o pescador Antônio Fernandes de Lima, outro que deu um depoimento para Caruso sobre o naufrágio que sofreu.
‘…devia ser umas cinco da manhã, levantamos o mastro, suspendemos a âncora de pedra (fateixa) e já estávamos voltando, quando deu um vento forte e uma onda que ninguém esperava virou o paquete que era de paus e não de tábuas, como os de hoje’.
‘E ficamos virados, o casco para cima e a vela para baixo. E passou o sábado, a noite de sábado, entramos no domingo, entramos na segunda e quando foi terça-feira à tarde nos encontraram. Eu nem existia mais’…
‘Sorte nossa que a jangada era de seis troncos de piúba, se fosse de tábuas, só a sorte não ia bastar. Pois esta se enche de água fica rente ao mar e com qualquer peso vai ao fundo’.
A originalidade nordestina
Alguns desavisados podem imaginar que a jangada seja uma embarcação de âmbito universal, derivada da mais antiga de todas, as balsas.
Mas é um engano. A jangada é uma ‘invenção nordestina’. Caruso explica: ‘Tampouco há notícia da existência de jangada em qualquer outro país tropical, inclusive no Oriente, e mesmo naqueles que, em algum momento, também tiveram a presença portuguesa ou holandesa’.
‘Assim, a jangada clássica, com vela, bolina e timão, e capaz de navegar contra o vento, só há mesmo no Brasil. E essa é uma originalidade nordestina’.
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Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste
O livro é um primor não só por resgatar estas viagens. Raimundo Caruso entrevistou vários dos protagonistas ainda vivos quando de sua pesquisa. São páginas importantes que guardam parte significativa da vida dos nativos do litoral, e suas centenárias embarcações típicas ainda em uso.
O resgate é completado com dados da história da construção destas rústicas embarcações por aqueles que a estudaram, como Luis da Câmara Cascudo, ou o pesquisador Nearco Barroso Guedes de Araújo.
E ainda há capítulos que explicam a formação da plataforma continental do Nordeste e a pesca; a pesca predatória como um todo; entrevistas com pescadores e jangadeiros; a formação do litoral e as águas (pobres em nutrientes) do Nordeste; um precioso capítulo com o vocabulário do jangadeiro; e ainda uma bela entrevista com o especialista em pesca Adauto Fonteles, entre outros.
Imagem de abertura: Arquivo MSF
Fonte: Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste, de Raimundo C. Caruso. Panam Edições Culturais.