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Algumas questões sobre arquitetos e seus projetos no litoral

Algumas questões sobre os arquitetos e seus projetos no litoral

Recentemente, assisti um documentário sobre os Irmãos Roberto no canal Curta. Eles lideraram o MMM Roberto, um escritório chave da Arquitetura Moderna Brasileira. Impressionado com seus principais conceitos, fiz algumas pesquisas. Isso me fez perceber a falta que faz a arquitetura de qualidade no litoral hoje. A especulação imobiliária está destruindo a beleza da zona costeira a um ritmo alarmante. Isso se deve, entre outras, ao egoísmo de arquitetos focados apenas no lucro. O exemplo mais marcante, mas não o único, é o que acontece no Estado de Santa Catarina, em especial, Balneário Camboriú. Essa perversão se espalha para outras praias como Perequê, e as de FlorianópolisItajaí. A maioria das casas de segunda residência, geralmente de pessoas ricas, também negligencia a preservação da paisagem natural em toda a orla brasileira. E essa paisagem é protegida por todas as Constituições recentes, de 1937, até a atual,  de 1988.

Como qualificar o arquiteto que ‘pariu’ esta monstruosidade na praia das Toninhas, Ubatuba?

A noção da importância da relação do edifício com a paisagem

É intrigante observar a falta de críticas incisivas e regulares, tanto da grande mídia quanto de instituições renomadas, como o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), sobre o desenvolvimento desordenado nas áreas litorâneas.

Um hotel ‘perfeitamente integrado’ à paisagem da praia de Pernambuco, Guarujá.

O Brasil, reconhecido por sua rica tradição em arquitetura, abrigou ícones como Oscar Niemeyer, um dos arquitetos mais admirados mundialmente. Além dele, o País teve influentes profissionais como Lúcio Costa, os Irmãos Roberto, Paulo Mendes da Rocha, Márcio Kogan, Lina Bo Bardi, Roberto Burle Marx, Rosa Kliass, Vilanova Artigas, e tantos outros. Todos eles contribuíram significativamente para engrandecer a atividade.

Garopaba. E não pense que estas imagens são exceções. Elas estão se tornando a regra no litoral do Brasil.

Quem frequenta o litoral se surpreende apesar do artigo 225, inciso 4, da Constituição

Art. 225. “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Inciso 4: “…a Zona Costeira é patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.”

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No entanto, quem visita o litoral brasileiro se surpreende negativamente com a desordem urbanística que se alastra por essas belas paisagens costeiras. O que se observa é uma crescente desarmonia arquitetônica, sem que haja uma oposição forte ou uma crítica consistente ao que parece ser um crime contra o patrimônio natural. Este cenário contrasta fortemente com o legado e a qualidade arquitetônica que o Brasil já demonstrou ter. A falta de uma voz crítica, do próprio meio, mais ativa e presente nessas questões é inaceitável especialmente pelo impacto duradouro dessas construções no meio ambiente e cultura local.

O poder público e a destruição do litoral

A situação piora com a maioria dos prefeitos de cidades costeiras envolvidos ou liderando a especulação imobiliária. Isso ocorre tanto em pequenas cidades como Caraguatatuba quanto em capitais. Um caso marcante é Florianópolis. A recente aprovação do Plano Diretor causou indignação na população mais crítica. Eles veem o PD como ‘um golpe do setor imobiliário’.

Contudo, mesmo com o movimento apontando 26 inconstitucionalidades, incluindo mudanças nas Áreas de Preservação Permanente, o plano foi aprovado com apoio da Justiça. Essa voracidade, somada à alienação de muitos arquitetos, cria um sentimento de isolamento na luta contra as aberrações urbanas do litoral. Por isso, é vital lembrar dos ícones da arquitetura do passado.

Santos Dumont, 1937, Rio de Janeiro então a capital

Antes de iniciar abaixo uma seleção de especialistas ressaltando as inúmeras qualidades dos projetos dos Irmãos, saiba que o mais conhecido é o prédio do aeroporto Santos Dumont. “Os irmãos Marcelo e Milton Roberto foram os vencedores do concurso para escolha do projeto do novo Aeroporto”. Entretanto, para o usuário atual é difícil acreditar que ele foi pensado e desenhado em 1937, e ainda permanece jovem aos nossos olhos, como se tivesse sido construído poucos anos atrás.

Não à toa, é “considerado um dos maiores exemplos da arquitetura modernista brasileira”. “Aproveitaram (os irmãos Roberto) muito bem a localização à beira da baía de Guanabara, usando os princípios fundamentais da arquitetura moderna para integrar-se com a paisagem’, diz Bruna Castro em www.monolitho.wordpress.com.

As leituras sobre os Irmãos Roberto, especialmente aquelas feitas por acadêmicos e pesquisadores, como Fabiana Geneoso De Izaga, doutoranda do PROURB na FAU-UFRJ, enfatizam um aspecto crucial do trabalho do famoso trio: “a importância da relação do edifício com a paisagem natural.”

Balneário Camboriú é mais uma prova da erosão moral dos arquitetos. Este tipo de ocupação está se tornando a regra em Santa Catarina.

Luiz Felipe Machado Coelho de Souza, Arquiteto Urbanista, FAU/UFRJ; Doutor em História da Arte, Universiré Paris I – Sorbonne; também destacou as qualidades dos Irmãos.

‘O pensar antes de realizar’

“Marcelo pregava a aproximação entre arquitetos, engenheiros, industriais, cientistas, professores e homens de negócio; também a abolição de estimativas a grosso modo e o pensar antes de realizar.”

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Coelho de Souza foi além. No tocante às questões ambientais, a preocupação dos Roberto direcionou-se no sentido de respeitar as características naturais das regiões.”

Tanto quem encomendou, como o arquiteto que desenhou, não pensaram antes de realizar mas a ‘vista para o mar’ foi contemplada.

Pensar antes de realizar, e respeitar as características naturais das regiões, são preocupações que passam ao largo da maioria dos arquitetos que hoje atuam no litoral. E onde estão os especialistas, ou as referências na atividade, como os citados para darem luz a estas questões?

Plano Cabo Frio-Búzios, 1955 – muito à frente de seu tempo

Este foi um dos muitos planos oferecidos pelos irmãos ao poder público que, entretanto, não saíram do papel. Contudo, o especialista Ivo Barreto, arquiteto e professor universitário, Mestre em Projeto e Patrimônio escreveu sobre o trabalho. Destacamos o trecho:

“Em meio à transformação que sobretudo a partir dos anos 50 a região de Cabo Frio viria sofrer, quando o turismo de veraneio se fortalece na pauta política e econômica, os modernos já vinham atuando por aqui, propondo caminhos não apenas na arquitetura, mas buscando alternativas para a transformação que se avizinhava, como é o caso do Plano Cabo Frio-Búzios, do mesmo MM Roberto, que propõe, em 1955, uma imensa cidade-jardim que se estendia desde a Boca da Barra do Canal do Itajuru à foz do Rio São João, cojurando propostas em linha direta com os preceitos elaborado por Ebenezer Howard, uma das tentativas do nascimento do urbanismo, na busca por alternativas em conciliar homem e paisagem, nesta sua invenção das cidades como modo de vida no planeta.”

Cabo Frio hoje.

Os Irmãos Roberto tiveram sorte de não verem Cabo Frio se tornar a confusão que é hoje. Eles sonhavam com uma grande cidade-jardim, unindo homem e paisagem. Porém, apesar de muita pesquisa, não encontrei críticas ao caos urbano atual da cidade costeira. Por quê? Até o especialista Ivo se cala ante a depravação urbana em que se transformou o município. Sem críticas fortes e públicas, a erosão moral dos arquitetos atuais na costa não vai cessar.

A realidade da ‘união do homem com a natureza’ no litoral. E toda esta destruição aconteceu em 60 anos, um átimo para um planeta com 4,5 bilhões de anos.

Alienação e egoísmo dos ricos

Da mesma forma, a alienação de quem encomenda os edifícios e casas que vemos nas imagens, provavelmente também continuará. Vale destacar que, além da alienação, estes ‘ricos’ demonstram profundo egoísmo.

A natureza levou eras para formar a praia do litoral leste do Ceará. Mas o cara-pálida passou por cima da legislação e construiu na areia! Mais uma vez, para ter vista para o mar. A foto foi feita em 2006. A esta altura a erosão já deu conta desta casa.

Grande parte constrói em locais proibidos pela Legislação Ambiental  como topos e encostas de morros, na areia da praia, em manguezais ou restingas que são extirpados, e tudo em nome de ‘ter vista para o mar’.

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A relação dos Roberto com a especulação imobiliária

Para encerrar, selecionamos trecho de um artigo publicado pela PUC do Rio de Janeiro, intitulado Construção da Poética dos Roberto.

“Através de suas poucas entrevistas, por exemplo, fica fácil entender que a relação dos Roberto com a especulação imobiliária configura-se de forma tensa. Como ilustração, pode-se citar uma delas, de Marcelo Roberto (concedida em outubro de 1955 e publicada inicialmente no Correio da Manhã), onde discorre sobre a relação entre os arquitetos e os que buscam explorar ao máximo o potencial econômico do solo”:

Sei e afirmo é que não existe docilidade alguma. Se ela existisse, os arquitetos teriam muito mais serviço do que tem na realidade. Qualquer escritório de arquitetura que se preza rejeita mais do que aceita trabalho. Basta ver o número astronômico de prédios que se constróem e a percentagem insignificante dos que são confiados a arquitetos de verdade.

A única exceção: o Estado da Paraíba

Contudo, há uma exceção que nos traz alguma esperança. Como já mostramos diversas vezes, a Constituição Estadual da Paraíba impede espigões na orla. Ela domou a especulação imobiliária e seus inúmeros flagelos.

Quando escreviam sua Constituição em 1989, logo depois da promulgação da Federal (1988), um grupo de instituições paraibanas, ONGs, professores e ambientalistas, se reuniu para oferecer à Assembléia Legislativa o capítulo de Meio Ambiente.

Naquela época, um dos assuntos mais discutidos na mídia era a preparação da Eco 92, que aconteceu no Rio de Janeiro. A proteção ao meio ambiente era assunto dominante.

Não foi difícil reunir um grupo eclético, do qual faziam parte entre outros, a Universidade Federal, OAB,  associações de classe, além das Ongs APAN (Associação Paraibana dos Amigos da Natureza), e ABES (Associação Brasileira de Engenharia).

O governo, à época, aceitou a sugestão que foi incorporada na Lei Maior do Estado. E assim se mantém até hoje, apesar das inúmeras tentativas de governadores posteriores de mudar este aspecto. Mas, cada vez que isto acontece a população ameaça sair à rua. Hoje, o litoral da Paraíba é o único não detonado pelo insustentável concreto armado. E os paraibanos aproveitam o seu litoral tanto quanto paulistas ou cariocas. É a prova que falta apenas vontade nos demais 16 Estados.

Assista ao documentário e nos ajude nesta cruzada

70 milhões de pessoas ameaçadas pela inundação marítima até 2050

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